segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Personalidade - Padre Vieira, o principe dos Jesuítas





Padre Vieira o príncipe dos Jesuítas
Há 400 anos, nascia um jesuíta tão eloqüente que aconselhava o rei português e argumentava com Deus em pessoa

Por MARCOS ANTÔNIO LOPES
        
Antônio Vieira nasceu em Lisboa, no dia 6 de fevereiro de 1608. Veio para o Brasil com sua família em 1614, com destino à Bahia. Entre a Bahia, Pernambuco e o Maranhão, Vieira passou mais da metade de sua vida no Brasil. Em 1623, à revelia dos pais, entrou para o noviciado da Companhia de Jesus. Em seus primeiros tempos na Ordem dos Jesuítas, o noviço se destacou de tal maneira - pela agudeza de espírito, pelo talento literário e conhecimento do latim - que seus superiores o encarregaram de escrever, em 1626, o conjunto dos sucessos relativos à ordem religiosa - a Carta Ânua -, relatório endereçado ao Geral da Companhia, em Roma. Depois de passar oito anos no Colégio dos Jesuítas de Olinda, recebe as ordens sacerdotais, em 1634.
Retrato do Padre Vieira feito logo após sua morte, de autor desconhecido. O livro de sua autoria Clavis Prophetarum, em que ele repousa a mão, só foi publicada no ano 2.000
Sua estréia como pregador deu-se na Igreja da Conceição, em 6 de março de 1633. Nessa altura, tinha vinte e cinco anos. No início de 1641 foi enviado a Portugal, na comitiva organizada para demonstrar o apoio dos brasileiros à recém-restaurada monarquia lusitana. Quando chegou em Lisboa, para adentrar a corte do rei D. João IV, já possuía reconhecidos os seus talentos de pregador. Com efeito, na Bahia, tornara-se respeitado como hábil artífice na arte de engendrar boas idéias com belas palavras. Vieira foi recebido na corte no mês de abril de 1641. Em breve tempo tornou-se valido do monarca. A sua escalada foi realmente muito rápida. Para além do virtuosismo da oratória sagrada, não demorou quase nada o reconhecimento de suas demais qualidades, dentre as quais se destacaram as de analista econômico, conselheiro político e diplomata. Em questão de meses, ele se tornara homem de confiança de D. João IV, que o fez pregador régio, confessor da rainha, além de preceptor do príncipe, D. Teodósio. Entre o rei e o clérigo nascia uma amizade sincera e duradoura que terminou apenas com a morte de D. João, em 1656. Durante quase vinte anos, nos tempos de D. João IV e da regência de Dona Luísa de Gusmão - que governou Portugal na fase da menoridade de D. Afonso VI -, Vieira gozou de elevado prestígio. Voltou à Bahia em 1681, após quarenta anos de ausência. Morreu aos 89 anos, em 18 de julho de 1697.
AÇÃO PELAS PALAVRAS
Foi na Bahia que ele descobriu o poder da expressão oratória, ou melhor, o poder da força persuasiva das palavras, principalmente quando pronunciadas do púlpito. Em sua prosa rica e vigorosa, as palavras eram trabalhadas, arranjadas e metaforizadas com tanto engenho, ao ponto de servirem como instrumentos de transformação da realidade. Com Vieira, o sermão passou a possuir a força cortante de uma espada, cuja função era abrir caminho diante das mais difíceis circunstâncias. Os sermões de Vieira pretendem convencer pela energia das idéias, por sua vez expressas por meio de frases sonoras e cheias de efeitos. E ele soube, em mais de sessenta anos de quase incessante atividade intelectual, utilizar a erudição clássica e bíblica ao bom serviço da criação literária. Com Vieira, a eloqüência sagrada atingiu a máxima expressão em língua portuguesa. A maestria do autor nesse campo de atividades levou alguns comentadores de sua obra a compará-lo a outro gigante da eloqüência sagrada: Bossuet, o autor mais destacado da doutrina absolutista do direito divino dos reis.
REPRODUÇÃO
RETÓRICA CLÁSSICA: O bispo francês Jacques- Bénigne Bossuet (1627 - 1704) advogava em favor do absolutismo argumentando que o governo era divino e os reis,escolhidos por Deus. Contemporâneo do Padre Vieira, seu estilo recorria muito mais às estruturas do discurso clássico do que às imagens bíblicas utilizadas pelo português.
Mas, se as comparações entre os dois eclesiásticos são realmente inevitáveis - viveram no mesmo século, foram defensores do poder régio e grandes estilistas em suas respectivas línguas -, existem diferenças significativas entre ambos. Na concepção de alguns críticos, "Bossuet, principal figura intelectual da Igreja Francesa - o 'último doutor da Igreja' - substituiu, quanto possível, a alegoria bíblica ou a sutileza escolástica por uma oratória que se dirige ao senso comum do público geral contemporâneo e à sua imaginação, e que está muito mais próximo da eloqüência ciceroniana do que da pregação medieval".1 Ao contrastá-lo com Bossuet, António José Saraiva e Oscar Lopes acentuam nessa análise a evidência de que Vieira é autor rico e versátil em suas composições, com destaque para o emprego de metáforas bíblicas e naturais. Acerca desses paralelos freqüentes entre ambos, o historiador português Hernani Cidade argumenta que "Quando se compara Vieira com Bossuet (...) reconhece-se a mais funda gravidade do pensamento deste, o maior bulício vital da imaginação daquele. (...) Bossuet era o tipo do homem de pensamento e pôde sê-lo exclusivamente, num grande país em que tantos estímulos lho expunham em exercício. Vieira era o tipo de homem de ação, e foi para ela, exercida como missionário, político e diplomata, que mil circunstâncias o impeliram".2 De fato, representante dos interesses de Portugal na emaranhada tapeçaria política traçada pelas disputas entre as grandes nações da Europa e, de quebra, aguerrido defensor dos índios do Norte do Brasil contra a exploração desumana que os atingia, levou uma longa e agitada existência. Do Maranhão, foi embarcado à força para Portugal, porque os colonos irados não mais admitiam as intervenções dos jesuítas nas questões de mão-de-obra nas lavouras. Chegando a Portugal, e sofrendo de impaludismo, foi "embarcado" numa outra viagem não menos penosa: o processo inquisitorial a que teve que responder por alguns anos em Coimbra.

Nos célebres sermões, como é natural, Vieira apoiava-se em textos ou passagens bíblicas.
No Brasil da primeira metade do século XVII, os sermões de Vieira constituíam um espetáculo curioso. Assistidos por pessoas de diferentes posições sociais, os sermões atiçavam a imaginação. Nos sermões, como é natural, Vieira apoiava-se, em textos ou passagens bíblicas. Aliados ao estilo barroco, os sermões apresentam componentes clássicos. O principal elemento do classicismo em Vieira é a clareza, a força e, sobretudo, o sentido de unidade, pois, como ele mesmo diz no Sermão da Sexagésima, "O sermão deve ter um só sentido e uma só matéria". De fato, pode-se observar em diversos sermões de sua autoria, um assunto único, ainda que, para isso, ele se utilize de uma vasta argumentação, o que pode embaralhar as vista do leitor desatento.
Em sua retórica, observa-se o uso das mais diversas figuras de linguagem e de pensamento, utilizadas com o fito de tornar atraente um discurso que podia se prolongar por duas ou três horas, ou até por mais tempo. Nesse sentido, toda a arte e a técnica do orador estavam voltadas para certos fins pragmáticos: induzir os ouvintes a um tipo de reflexão que orientasse o fiel a tomar atitudes efetivas contra as mazelas do mundo, que necessitavam de urgente correção, e que dependiam da boa vontade e da ação humana.
REPRODUÇÃO
Pintura de Victor Meireles (1831-1903) retratando as Batalha dos Guararapes,(1648-49) vencidas pelos luso-brasileiros da insurreição pernambucana. As batalhas puseram um fim às invasões holandesas e são o marco de criação do Exército Brasileiro.
 
Quando jovem na Bahia, Vieira testemunhou os assaltos dos holandeses ao litoral brasileiro. Acerca das invasões holandesas ele escreveu o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda, texto muito apropriado para ilustrar o poder persuasivo da eloqüência sagrada por ele desenvolvida. Este sermão foi pregado na igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Salvador, em maio de 1640, no tempo em que o povo baiano - frágil e desarmado diante da potência inimiga -, esperava a interferência de Deus contra os invasores holandeses. O Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal foi o último de uma série de quinze pronunciados nas igrejas da cidade. Em foco, estava a necessidade de uma ação rápida e eficaz da Providência, para a salvação do rebanho de Cristo. Por Providência, o autor concebia aquela Potência que tudo vê com antecipação para, segundo o merecimento, desencadear favoravelmente os sucessos, ou seja, "pró" gênero humano. No Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, Vieira revela os ardis típicos que caracterizaram o seu talento para a construção das mais complexas peças de retórica religiosa. No referido sermão, ele se dirige a Deus de forma extremada. Utiliza-se do tom próprio de quem possui plena convicção do mérito de sua diligência. De forma destemida, clama a Deus proteção para a cidade do Salvador que, só pelo nome já deveria ser objeto preferencial e, portanto, merecedora de auxílio eficaz contra a invasão das heresias.
Sem dúvida, o Sermão... possui uma energia comparável a poucos textos da mesma natureza. É bom lembrar que foram mais de duzentos sermões da lavra de Vieira. No sermão em foco, Vieira emprega os seus dotes de eloqüência para persuadir ninguém menos do que Deus. Tal audácia surge da necessidade extrema já que os recursos humanos disponíveis aos homens de boa fé não eram suficientes para prover a segurança da cidade à beira de sucumbir diante do inimigo.
REPRODUÇÃO
Segundo Vieira, os povos não catequisados perderiam a fé no Deus cristão se o desamparo continuasse. Acima, dança Tapuia pintada por Albert Eckhout em meados do séc. XVII.
No Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, o autor discorre sobre a legitimidade do desesperado pleito. A intervenção divina não poderia tardar. Do contrário, a obra civilizadora que os católicos promoveram a duras penas nessas terras poderia perder-se facilmente. Ora, muitas e graves conseqüências colocariam abaixo todo o esforço realizado em nome de Deus. A derrota para os holandeses faria com que os indígenas e negros recémcatequizados formassem uma imagem pouco positiva acerca do poder divino. Assim, tais povos poderiam ser levados a se bandearem para as tradições heréticas dos holandeses. Acerca do tema, vejamos o tom de gravidade utilizado por Vieira em seu texto: "Olhai, Senhor, que vivemos entre gentios, uns que o são, outros que o foram ontem; e estes que dirão? Que dirá o Tapuia bárbaro sem conhecimento de Deus? Que dirá o Índio inconstante, a quem falta a pia afeição da nossa Fé? Que dirá o Etíope boçal que, apenas foi molhado com a água do batismo sem mais doutrina? Não há dúvida que todos estes, como não têm capacidade para sondar o profundo de vossos juízos, beberão o erro pelos olhos. Dirão, pelos efeitos que vêem, que a nossa Fé é falsa, e a dos holandeses a verdadeira, e crerão que são mais cristãos, sendo como eles...".3
REPRODUÇÃO
Para providenciar um salto emocional exemplar em seus sermões, o padre Vieira recorria às alegorias bíblicas com o a de Davi queixando-se da ausência divina na necessidade. Abaixo, Davi e Golias (1600), de Caravaggio
O argumento é persuasivo. E o autor vai modulando progressivamente a ênfase para se entender com a esfera celestial, mas sempre no sentido de amplificar a sua aparente cólera contra a até então completa imobilidade do Criador. Mas, como disse um estudioso, o seu discurso é "engenhoso". Para conter o inconfundível tom de revolta contra a inércia de Deus diante de episódio tão crítico para os católicos da Bahia, Vieira logo reúne os ingredientes de que necessita. As Sagradas Escrituras dão a receita. As suas divergências mais enfáticas com Deus são logo substituídas por um tom menos enérgico. No Salmo XLIII que, de acordo com Vieira "não parece senão cortado para os tempos e ocasião presente", ele encontra o tom mais adequado de comunicação com o Senhor: "Levanta- te! Por que dormes, Senhor? Levanta-te e não repilas para sempre. Por que voltas a face? Esqueceste da nossa miséria e da nossa tribulação? Levanta-te, Senhor, ajuda-nos e redime-nos por amor do teu nome".4 Afinal, haveria contradição mais surpreendente do que um simples mortal atrever-se a dar um ultimato a Deus, escudando-se justamente na Bíblia? Os seus "estranhamentos reverentes" diante do que até então lhe parece "desatenções divinas" constituem-se num traço de grande curiosidade.
De elevada cultura, nem por isso Vieira deixou de comungar de crenças populares
Destemido, ele não se acanha, e se ampara em Davi para corroborar sua argumentação: "Não prega Davi ao povo, não o exorta ou repreende, não faz contra ele invectivas, posto que bem merecidas; mas todo arrebatado de um novo e extraordinário espírito, se volta não só a Deus, mas piedosamente atrevido contra ele. Assim como Marta disse a Cristo: Domine, non est tibi curae? Assim estranha Davi reverentemente a Deus e quase o acusa de descuidado. Queixa-se das desatenções de sua misericórdia e providência, que isso é considerar a Deus dormindo...".5
REPRODUÇÃO
João IV (1604-1656) restaurou a independência de Portugal em 1640 e fundou a dinastia de Bragança. Vieira cria no anúncio de sua ressurreição
AS CHAVES INTERPRETATIVAS DE UM PADRE
Para além da lógica interna do texto, pode-se observar que numerosos sermões de Vieira foram concebidos como instrumento de intervenção na história real. Sob uma realidade tão desfavorável, não bastaria apenas persuadir os homens. Por isso, o autor não se intimida em buscar os recursos necessários para atuar junto a outras esferas. E não se pode perder de vista que se trata de um homem de fé, que pertenceu a um sistema de crenças no qual o milagre estava perfeitamente integrado como um componente natural da cultura vigente naquele tempo. Homem de elevada cultura, nem por isso Vieira deixou de comungar de crenças populares muito difundidas em sua época. Para ele, estava fora de dúvida, por exemplo, a veracidade das trovas do sapateiro Bandarra. Mas, leitor engenhoso, produziu um sentido original para a mensagem do poeta-sapateiro. Na análise de Sérgio Buarque de Holanda, "Antônio Vieira, com sua lucidez e dialética, admiráveis às vezes, mesmo para os nossos dias, não entendia, como os antigos entendiam os oráculos, aquela algaravia das trovas do Bandarra? E assim como acreditava firmemente, lendo-as a seu gosto, que as rimas do poeta sapateiro profetizavam a ressurreição de el-rei D. João IV e o Quinto Império, em vez da volta de D. Sebastião esperada pelos menos esclarecidos ...".6
Vieira utiliza-se de alegorias para extrair um sentido novo dos textos antigos utilizadosos
Nos sermões, Vieira converte mensagens bíblicas em crítica das circunstâncias históricas do presente. Esse é um aspecto surpreendente haja vista que a retórica vieiriana se distingue, entre outros aspectos, pela energia criadora de suas imagens alegóricas. Para Vieira, o texto bíblico reveste-se de um sentido "atemporal". No Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal o autor estabelece conexões entre a mensagem bíblica e a realidade do Brasil colonial. Como afirmou o historiador Sérgio Buarque de Holanda, Vieira "... não duvidava que este ou aquele passo das Sagradas Escrituras queria referirse diretamente a sucessos de seu tempo, de sua Bahia de Todos os Santos ou do Pernambuco apossado pelos holandeses".7 Essa peculiar interpretação do presente é reconhecida por historiadores da literatura como o método alegórico, por meio do qual a realidade histórica de um passado distante abre caminho à produção de um sentido apropriado às circunstâncias autorais. O recurso à alegoria presta-se muito bem a uma interpretação do passado que, certamente é anacrônica. Assim sendo, a alegoria é uma leitura do antigo, sobre o qual se decalca um novo modelo. O esquema alegórico de análise das ações históricas antigas é um ato interpretativo de apropriação, ou seja, um "furto" que se comete em nome de uma atribuição de sentido que é significativa para o intérprete. Isso porque o sentido original é substituído pelas novas intenções do leitor. No presente caso, algumas circunstâncias históricas do Velho Testamento são transpostas para a Bahia seiscentista. Nos sermões, Vieira utiliza-se da alegoria como uma ferramenta indispensável para "extrair" dos textos antigos um sentido novo que, a rigor, não lhes é inerente. Creio que, para os critérios hermenêuticos empregados por Vieira, caberia lembrar a reflexão de Michel Foucault. Como afirma o autor em As palavras e as coisas, na análise de textos sempre haverá campo para diferentes interpretações, o que não deve encorajar a crermos que haverá possibilidade para qualquer interpretação. No tempo de Vieira, as "chaves interpretativas" das quais ele se serviu não eram certamente uma questão de gosto ou livre capricho das subjetividades autorais, o que significa que o recurso à alegoria possuía regras reconhecidas e compartilhadas por uma comunidade de leitores.
Foi nos finais do século em que Vieira levou a sua existência quase centenária, e a partir dos próprios círculos eclesiásticos, que surgiram novidades significativas nas formas de ler e interpretar as Sagradas Escrituras. As novas tendências interpretativas dos textos sagrados conduziam a um novo conhecimento, por meio de um domínio criterioso das línguas antigas. Naquele momento, o latim passou a não bastar mais. Entraram em cena o grego, o hebraico e o aramaico. Esta nova competência instrumental era mais um dentre os instrumentos que a filologia do século XVII propunha como método de abordagem das Escrituras. A própria exegese bíblica empreendida nos círculos religiosos contribuiu para acelerar o processo de dessacralização da história, num confronto de criatividade entre católicos e protestantes. Desse modo, os estudiosos continuaram o seu trabalho desvendando novos sentidos nos textos antigos. Mas, não foi apenas a exegese bíblica a fonte de onde brotou a artilharia mais pesada que ajudou a revelar a montoeira de mitos e superstições presentes nos sistemas de crenças e nas doutrinas políticas do Antigo Regime. O horror do bispo Bossuet ao padre Richard Simon, de sua própria ordem (eram oratorianos), e que ousara fazer das Escrituras simples "gramática", foi também acompanhado pelo temor em relação aos filósofos impregnados de "maquiavelismo político", porque todas as novidades naturalmente se opunham às veneráveis tradições.
Ora, no Norte da Europa ao tempo de Vieira, os ingleses Hobbes e Locke, os alemães Altussius e Pufendorf, e os holandeses Grotius e Spinoza estavam fazendo algumas "diabruras" no campo das letras filosóficas. Das mentes criativas desses pensadores surgiram concepções desafiadoras que atacavam toda a base do conhecimento bíblico ainda em voga, incluindo os velhos esquemas alegóricos de análise do passado. Nesse sentido, as novidades contidas na nova exegese bíblica do século XVII fizeram desmoronar muitos aspectos do sistema de crenças predominante há séculos. A ruína completa do sistema empregado por Vieira certamente foi obra do Iluminismo, que retomou muitas das novas idéias surgidas no contexto da "crise da consciência européia" - momento de superação dos antigos valores, situado entre os anos 1685-1715 -, aprofundando a crítica, vulgarizando idéias complexas, enfim, fazendo com que as pessoas comuns tomassem conhecimento de que as sociedades eram "artifícios humanos", e não o resultado de um projeto divinamente concebido. Dessa perspectiva secularizante resultou o declínio da imaginação na interpretação do passado, obrigada a ceder seu lugar à razão.8
Primeira página da edição de 1718 de História do Futuro
Na Península Ibérica, foi pequena a influência exercida por essas novas vertentes da modernidade na história das idéias. Com efeito, a alegoria como recurso da análise do tempo presente foi um instrumento utilizado com freqüência pelo padre Vieira. É dessa forma que a realidade concreta perde muito do seu vigor, sendo sobrepujada por uma representação figurada. Aliás, nos círculos eclesiásticos do século XVII, essa forma de representação - que segundo Eric Auerbach remonta aos séculos da baixa Idade Média - ainda estava bem viva. Na interpretação de Erich Auerbach, na Europa medieval representações dos acontecimentos bíblicos foram comuns no que dizia respeito às ocorrências da vida cotidiana.9 É nesse sentido que a "significação figurada" torna-se útil para a compreensão dos curiosos anacronismos que aparecem, por exemplo, na História do Futuro.
Nos textos históricos e políticos escritos por Vieira - como na História do Futuro e em vários sermões nos quais, colados à eloqüência sagrada, predominam aspectos políticos -, parece ser possível identificar numerosas exemplificações desses esquemas alegóricos. Como afirmou um de seus mais autorizados biógrafos, João Lúcio Azevedo, "a sua capacidade de crer no maravilhoso era enorme, sem nisso se distinguir da média dos contemporâneos".10
Da perspectiva secularizante resultou o declínio da imaginação interpretativa
A ELOQÜÊNCIA BARROCA DO JESUÍTA
(Trechos extraídos do Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda).
"Parece-vos bem, Senhor, que a mim que sou vosso servo, me oprimais e aflijais, e aos ímpios, aos inimigos vossos os favoreçais e ajudeis. Parece-vos bem que sejam eles os prosperados e assistidos de vossa providência, e nós os deixados de vossa mão?" (...) "Já que não quereis, Senhor, desistir ou moderar o tormento, já que não quereis senão continuar o rigor e chegar com ele ao cabo, seja muito embora: matai-me, consumi-me, enterrai-me: Ecce nunc pulvere dormiam; mas só vos digo e vos lembro uma coisa: que se me buscardes amanhã, que não me haveis de achar". (p. 31).
"Nós os esquecidos de vossa memória? Nós o exemplo de vossos rigores? Nós o despojo de vossa ira? (...) que quereis que diga o mesmo Sol, não parado nem emudecido? Que quereis que digam a Lua e as estrelas, já cansadas de ver nossas misérias? Que quereis que digam todos esses céus criados, não para apregoar vossas justiças, senão para cantar vossas glórias?". (p. 46).
"Confesso Deus meu, que assim é, e todos confessamos que somos grandíssimos pecadores. Mas tão longe estou de me aquietar com esta resposta, que antes esses mesmos pecados muitos e grandes são um novo e poderoso motivo dado por vós mesmo para mais convencer vossa bondade. A maior força dos meus argumentos não consistiu em outro fundamento até agora, que no crédito, na honra e na glória de vosso santíssimo nome: Propter nomen tuum. E que motivo posso eu oferecer mais glorioso ao mesmo nome, que serem muitos e grandes os nossos pecados? Propter nomen tuum, Domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim: Por amor de vosso nome, Senhor, estou certo - dizia Davi - que me haveis de perdoar meus pecados, porque não são quaisquer pecados, senão muitos e grandes."

REPRODUÇÃO
Don Quixote e Sancho Pança (1838) de Honoré Daumier. A obra de Cervantes, publicada em dois volumes, em 1605 e 1614, é uma das fundadoras da literatura ocidental moderna e anunciava a chegada dos novos tempos ao debochar da ética de cavalaria em declínio
O historiador norte-americano Stuart Schwartz considera que o século XVII europeu produziu grandes figuras literárias, mas por toda parte que se olhe, seja na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha, nenhum grande vulto das letras poderia ser situado acima de Vieira. Entre outros motivos porque o conjunto de sua obra constitui um dos maiores e mais notáveis legados da época. Com efeito, ele fez das imagens vivas de sua literatura um instrumento de combate contra os males de seu tempo. Em questão, sempre os infortúnios vividos pelo reino de Portugal, que ele desejava ver numa posição de destaque no concerto das grandes monarquias européias, anseio que o levou a conceber a imaginativa História do Futuro. Num momento avançado de sua vida, pela própria natureza movediça da vida política - da qual ele participou ativamente desde a sua chegada à corte, em 1641 -, os ideais corajosamente defendidos passaram a encontrar considerável resistência nos mais altos círculos da corte portuguesa. O orador brilhante, uma verdadeira usina ambulante de idéias - que tanto atuava no plano abstrato como por meio de ações concretas -, teve de se render à realidade desfavorável. Tardiamente, percebeu que os tempos heróicos da restauração haviam chegado ao fim, que perdera os seus interlocutores, que os seus adversários estavam mais fortes e numerosos. Sem audiência para suas propostas de estratego econômico e conselheiro político, convenceu-se de que era chegada a hora de bater em retirada. Retornou à Bahia em 1681, não sem deixar o seu rastro de idealista polêmico. Neste mesmo ano de 1681, o defensor da tolerância religiosa e do abrandamento dos métodos inquisitoriais, foi queimado em efígie na cidade de Coimbra, com os estudantes da Universidade à frente. A multidão fanática comemorava o retorno dos autos-de-fé, até então suspensos por Roma.
Dito isso, cabe lembrar que no ano de 2005 o mundo das letras foi marcado pelas comemorações em torno dos quatrocentos anos do fantástico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Nos anos anteriores e, sobretudo, em 2005, os espanhóis fomentaram eventos e edições comemorativas, e a cultura ocidental como um todo vibrou de orgulho por possuir um patrimônio intelectual de tal envergadura. Neste 2008 será a vez de outros quatrocentos. O ilustre escritor luso-brasileiro completará os seus quatrocentos anos de nascimento e, ainda que não se possa falar em um legado de alcance tão universal como a obra ficcional de Cervantes, o conjunto dos textos de Vieira possui, para portugueses e brasileiros, valor a que se compara apenas uma gama muito reduzida de obras em nossa língua. Sem dúvida, foram quatro longos séculos de densa história, mas ele continuou vivíssimo. Defensor da tolerância religiosa, ativista em prol da causa indígena, a atualidade de muitos aspectos da obra de Vieira fazem dele um homem para todas as estações. Com as suas concepções ousadas, com os seus exemplos de ação, ele se mantém na "crista da onda" da cultura


REFERÊNCIAS
1 SARAIVA, António José e LOPES, Oscar. "Pe. António Vieira". In: --. História da literatura portuguesa, p. 521. Porto: Porto Editora, 1996.
2 CIDADE, Hernani. Portugal Histórico e Cultural. p. 186 Lisboa: Círculo de Leitores, 1973.
3 VIEIRA, , Antônio. Sermões - antologia. p. 25, Rio de Janeiro: Editora Agir, 1975.
4 VIEIRA, Antônio. Id. Ib., p. 15.
5 VIEIRA, Antônio. Op. cit., p. 18.
6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. p. 147, São Paulo: Brasiliense, 1994. HESÍODO . Teogonia
7 - Id. Ib.
8 Cf. as análises de RUSSELL, B. História da filosofia Ocidental. Brasília: Editora da UnB, 1982
9 Cf. AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002.
10 AZEVEDO, João Lúcio. A evolução do sebastianismo. p. 63, Lisboa: Editorial Presença, 1984.
MARCOS ANTÔNIO LOPES - é doutor em História pela USP. Professor do Depto. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do CNPq (Produtividade em Pesquisa). Autor de Voltaire Político: espelhos para príncipes de um novo tempo (Editora Unesp), co-autor de A peste das almas: histórias de fanatismo (Editora FGV, 2006) e organizador de Idéias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder (Eduel).

Nenhum comentário:

Postar um comentário