A derrubada do viaduto da Perimetral, no Rio de Janeiro, equivale a tirar uma tampa sobre a história da cidade e, por extensão, sobre a história do Brasil.
Desde 1958, quando foi plantado à beira-mar, em pleno coração da cidade, o intruso lançou sua sombra sobre a antiga Casa do Trem (depósito do arsenal bélico), hoje sede do Museu Histórico Nacional, e cortou a relação da Igreja da Candelária e do solar de Grandjean de Montigny, hoje Casa França-Brasil, com o mar.
No local que já se chamou Terreiro do Carmo, depois Largo do Paço e, finalmente, por desígnio (e vingança) dos vitoriosos de 1889, Praça Quinze de Novembro, o estrago foi maior.
O monstrengo insinuou-se no território em que convivem o Paço Imperial, no qual residiram e despacharam dom João VI e os Pedros I e II; a Igreja do Carmo, que por mais de um século serviu de catedral, e o respectivo convento; o Chafariz do Mestre Valentim e o Arco do Teles – monumentos que compunham o cenário de onde emanava o poder durante os períodos colonial e imperial.
A praça prolongava-se até o mar, debruçando-se sobre o antigo cais Pharoux e a Estação das Barcas. Não mais. A sinistra via elevada veio a fatiá-la, como ocorreria a uma sala de visitas em cujo centro se erguesse um tabique.
Uma primeira parte do viaduto da Perimetral – a que corre sobre a Avenida Rodrigues Alves, junto à Zona Portuária – foi implodida na semana passada. O trecho que passa pelo centro não poderá ser posto abaixo pelo mesmo método, dado o perigo de abalar a estrutura das edificações históricas; será desmontado, numa próxima etapa.
A decisão de desativar o viaduto representa um ponto de inflexão no modo de gerir as cidades no Brasil. Até onde a vista alcança, foi o mais decisivo golpe na ideia, há tantos anos prevalecente, de que a prioridade das prioridades das administrações municipais é facilitar a circulação dos carros.
De quebra, representa um desafio ao tabu de que obra pública tão grande e cara não deve ser destruída. As vias elevadas, tão em moda nos anos 1950-1960, constituem um caso particularmente danoso da ideologia de opção preferencial pelos carros.
Ao pairarem sobre extensas áreas edificadas, lançam à maldição da sombra o que lhe fica embaixo, provocando-lhes a degradação e convidando ao crime. Em seguida à implosão da semana passada, as mais eloquentes manifestações de júbilo eram pelo fato de o sol ter voltado à Avenida Rodrigues Alves. Ganhar de volta o sol, para um trecho de cidade, equivale a ganhar a liberdade para um preso.
Impor barreiras no tecido urbano é outro efeito das vias elevadas. Num belo texto jornalístico datado dos idos de novembro de 1889, o escritor Raul Pompéia descreveu, postado a uma janela do ainda Largo do Paço, a saída da deposta família real rumo ao exílio.
Eram 3 da madrugada quando, primeiro, “duas senhoras de negro, cobertas de véu”, em seguida os demais, deixaram o paço e subiram “num coche negro, puxado a passo por dois cavalos, que se adiantavam de cabeça baixa, como se dormissem andando”.
O coche venceu os poucos metros até o cais Pharoux. “`É aqui o embarque?’, perguntou uma das senhoras de preto aos militares.” Quando o carro parou, dom Pedro II apeou “para pisar pela última vez a terra da pátria”.
Pompéia, mesmo àquela hora da madrugada, divisava a praça inteira, de seu ponto de observação. Houvesse à época, por absurdo, um viaduto a trancar-lhe a continuidade, e seu relato ficaria pela metade.
A derrubada da Perimetral vai devolver a integridade à Praça Quinze de Novembro. Considerada a região central como um todo, vai integrar num corredor cultural sítios e monumentos históricos hoje impedidos de falar uns com os outros.
Consta ainda do projeto a implantação de um extenso e largo passeio à beira-mar. Tudo somado, a maior barreira que cairá junto com o viaduto é a que ele projetou entre a cidade do Rio de Janeiro e a Baía de Guanabara. Uma é a razão de existir da outra. Não existiria a cidade se naquele lugar não houvesse a baía. E não seria a baía tão conhecida e celebrada se não tivesse uma cidade às suas margens.
Daí, mais do que de qualquer outro fator, se evidencia a maligna excrescência representada pela via aérea assentada entre uma e outra. De resto, para o colunista que nasceu e vive em São Paulo, sobra a inveja. Quando teremos nesta ponta da Via Dutra um dirigente com coragem de derrubar o Minhocão?
Revista Veja
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