Por dez anos, em algum momento entre os séculos XII e XIII a.C.,
gregos e troianos se confrontaram nas portas da cidade de Tróia. O conflito que
envolveu homens e deuses foi narrado por Homero, educou os gregos antigos e
marcou o fim de um período importante da história da Hélade
POR RODRIGO GALLO
POR RODRIGO GALLO
Quadro do pintor alemão Johann Georg Trautmann
(1713-1769) mostra o momento em que os gregos conseguiram invadir a cidade de
Tróia usando o cavalo de madeira, o famoso "presente de
grego"
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Nem mesmo Zeus, o senhor dos deuses, deixou de acompanhar aqueles dez anos de
conflito. Até ele, que havia destronado o próprio pai e se imposto como
soberano, desceu do Olimpo para assistir aos grandes combates, enquanto
Posêidon, seu irmão, e Apolo, o arqueiro, interferiam diretamente no desfecho
dos combates entre os heróis. E assim, uma década se passou em Tróia, cidade
localizada na costa leste do Mar Egeu, onde troianos e aqueus se enfrentaram com
ferocidade: e tudo por causa da "mulher mais linda do mundo". Desta forma, o
futuro de toda a Grécia foi decidido, em algum momento entre os séculos XII e
XIII antes de Cristo. Muitos helenos tombaram naquela guerra, cruzando o rio
Styx e adentrando as terras de Hades, o deus dos mortos, e, novamente, vale
lembrar o motivo: o rapto de uma rainha.
HISTÓRIA GREGA
Obra do artista italiano Federico Barocci (1528-1612)
dramatiza a queda de Tróia e mostra o guerreiro troiano Enéias carregando sua
família para fora da cidade
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Alguns eventos históricos são assim. De tão incríveis e gloriosos, os poetas,
eufóricos, passam a descrevê-los de forma ainda mais heróica, carregados de
elementos míticos e divinos. A realidade, no fim, funde-se ao mitológico e, com
este formato, a narrativa passa para as gerações futuras, que em muitas
situações aceitam os fatos descritos e passam a tratá-los como verdades
absolutas.
Os conflitos narrados pelo poeta cego Homero não fogem a esta regra. De tão
sensacionais, passaram a incorporar não apenas a crença dos antigos gregos, mas
também a educação dos jovens. Os helenos realmente acreditavam na
invulnerabilidade de Aquiles, por exemplo. O narrador mostra que a guerra de
Tróia foi tão gloriosa que nem mesmo os soberanos do Olimpo contiveram-se e
desceram dos céus para acompanhar seus campeões lutarem de frente às muralhas da
cidade, naquela que seria "uma das maiores batalhas da Antiguidade".
O LEGADO TROIANO
A cidade de Tróia realmente existiu, conforme ficou comprovado após a
bem-sucedida expedição do arqueólogo amador alemão Heinrich Schliemann, mas
ninguém sabe ao certo se a lendária guerra ocorreu da forma como Homero a
descreveu. Contudo, o poema foi tão importante que deuses e heróis lendários
tornaram-se fundamentais para a vida dos helenos daquele período e mesmo para
aqueles que viveram nos séculos posteriores. Tróia, no fim, simboliza o modo de
vida e os anseios dos povos daquele período, retratando inclusive seus defeitos,
fraquezas e crenças - é o relato mais próximo e completo da sociedade da
época.
Estátua de Ares, o deus da guerra
selvagem, na vila de Adriano, em
Roma
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O conflito de Tróia, que o poeta narra na Ilíada, parou o mundo
helênico por uma década, fez deuses conspirarem contra reis e opôs heróis das
duas grandes potências em um dos combates mais ferozes do mundo Antigo. Os
confrontos, reais ou fictícios, mudaram os rumos da Antiguidade grega e, mais do
que isso, serviram de inspiração para centenas de milhares de guerreiros durante
incontáveis séculos: do espartano Leônidas, que evocou Apolo nas Termópilas
antes de tombar perante os persas, ao macedônio Alexandre, que visitou a cidade
antes de iniciar sua campanha rumo à Ásia, todos os grandes generais helenos
celebravam os feitos de Aquiles, Páris e Ajax.
Analisar o embate troiano é fundamental para entender o modo de vida das
pessoas da Mediterépoca, pois retrata exatamente as relações sociais, políticas
e, no limite, a proximidade dos gregos com a religião. A guerra também foi
responsável pelo início de transformações sociais fundamentais para que, tempos
mais tarde, os gregos estivessem prontos para criar sua mais importante
estrutura política: a democracia.
Pintura do francês Jacques-Louis David (1748-1825)
expõe o amor de Helena e Páris
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No chamado período homérico, lembra o arqueólogo Alvaro Allegrette, da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, a estrutura da sociedade
era bastante distinta daquela que ganharia notoriedade séculos depois, na era
clássica. "Antes, nos tempos descritos por Homero, o sistema político era
monárquico. Depois, com as mudanças, a Grécia passou a ter uma relação de
comunidade e unidade", afirma.
Segundo o poema de
Homero, o destino de Tróia foi selado no momento em que Páris, filho do rei
Príamo, nasceu
MITOLOGIA HOMÉRICA
Segundo o poema de Homero, o destino de Tróia havia sido selado no
momento em que Páris nasceu. De acordo com uma profecia, aquele bebê, no futuro,
seria a ruína da cidade de Príamo, seu pai. Por conta disso, a criança foi
encaminhada à morte, mas foi poupada secretamente pelo sacerdote que havia sido
incumbido de executá-la sumariamente. Anos depois, voltaria ao lar e seria bem
recebido pelo rei e por seus inúmeros irmãos.
Durante os anos em que permaneceu longe, Páris (que era chamado de
Alexandre) foi procurado por três deusas. Atena, Afrodite e Hera. Elas passavam
por um dilema: queriam saber qual era a mais bela, e solicitaram que o jovem
entregasse um pomo para aquela que ele julgasse ser a mais bonita. Atena e Hera
prometeram dar-lhe poder e riqueza. Afrodite, no entanto, foi mais astuta e
prometeu lançar um feitiço sob a famosa Helena de Esparta e, com isso, torná-la
apaixonada pelo jovem troiano. Conhecendo a fama da beleza da espartana, ele não
teve dúvidas e, então, o pomo da Discórdia foi entregue a Afrodite. Ressentidas,
as outras duas deusas manipularam os fatos dos anos seguintes para, por
intermédio de Páris, jogar aqueus contra troianos.
Para entender a importância da narrativa de Homero é preciso
voltar àquele período descrito no poema e analisar o funcionamento da sociedade
da época. Séculos antes da democracia, as cidades da Grécia eram dominadas por
monarcas com mãos-de-ferro, que assumiam o trono por direito hereditário ou por
conquista militar. Era uma estrutura de sucessão política rígida, na qual as
pessoas comuns não tinham muitos direitos naturais. Ao povo, restava apenas
trabalhar nas colheitas, pagar impostos e lutar em guerras, quando convocados
pelos soberanos.
Assim era o tempo de Agamenon, o soberano de Micenas que, após
derrotar inúmeras nações no Peloponeso e a Grécia Central, pretendia expandir
seus domínios para anexar às suas posses os portos localizados na costa leste do
Mediterrâneo. Era justamente onde Tróia ficava, uma grande potência naval que
dominava o comércio de grãos, armas e especiarias na região. Portanto, era um
local estratégico para quem queria enriquecer à custa dos comerciantes
asiáticos.
Afrodite protege Páris contra Menelaus, na obra do
pintor alemão Peter von Cornelius
(1783-1867)
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Nesse universo de grandes monarcas, Helena ficara encantada pelo
jovem Páris, que a conheceu pessoalmente durante uma missão em Esparta chefiada
por ele. Apaixonada, a rainha espartana decidiu segui-lo até Tróia. Os aqueus,
contudo, acreditaram que ela havia sido seqüestrada pelo filho de Príamo. O rei
traído, Menelau, buscou ajuda do irmão, Agamenon, que convocou as cidades
aliadas e marchou rumo à guerra: finalmente, ele havia encontrado um pretexto
excelente para atacar.
Aos soldados, restou apenas reunir os homens de seus clãs, deixar
as fazendas sob o cuidado das esposas e dos mais jovens e embarcar rumo à Tróia,
localizada onde hoje fica a Turquia. No total, descreve o poeta, 1,2 mil naus
foram reunidas para ir ao combate. Munidos de escudos em formato de "oito" e
carros de guerra, os guerreiros foram à luta pela honra de Menelau.
As previsões de um oráculo apontavam que a cidade sitiada só
cairia após dez anos de pelejas. Homero começa sua obra justamente no décimo e
último ano do conflito, em um momento crucial para ambos os exércitos. Agamenon
havia tomado a cativa Brisêides para ele, desagradando Aquiles, que era amante
da jovem. O líder dos mirmidões, então, decide abandonar a guerra, deixando os
aqueus enfraquecidos. Ele só decide voltar à luta após seu amigo Pátroclo ser
morto em combate - novamente, por influência dos deuses.
A DESCOBERTA DE
TRÓIA
A lenda tornou-se realidade em 1870,
quando Heinrich Schliemann, um aventureiro alemão obcecado pela história da
Ilíada, encontrou os destroços da antiga cidade no território da
Turquia
Até a segunda metade do século XVIII
da era cristã, a cidade de Tróia não passava de uma lenda supostamente criada
por um escritor grego e relatada em um poema composto a partir da tradição oral
dos aedos. Contudo, o arqueólogo amador alemão Heinrich Schliemann
provou que a história contada por Homero pode ser muito mais
real.
O arqueólogo, na realidade, era um
sonhador que havia se apaixonado pela narrativa de Tróia durante a infância, e
encontrá-la tornou-se sua grande obsessão - mesmo que todos tentassem demovê-lo
da idéia de buscar o fictício lar de Príamo.
Após anos de escavação, Schliemann
finalmente encontrou a cidade, em 1870, localizada na costa da atual Turquia, no
Helesponto (agora chamado de estreito de Dardanelos). Contudo, a glória da
descoberta logo foi transformada em mais dúvidas: ele, na verdade, descobriu
indícios de mais de um assentamento no local, datados de períodos e tipos de
ocupações distintos. Restava, portanto, descobrir qual era a Tróia relatada por
Homero.
Esse impasse foi resolvido pouco tempo
depois. A Ílion destruída pelos aqueus é a de número VI, embora outra ruína
também guarde elementos daquele mesmo período.
O arqueólogo, no entanto, valeu- se de
métodos pouco ortodoxos para expor sua descoberta ao mundo. Ele afirmou ter
encontrado o tesouro do próprio Príamo nas ruínas, algo que nunca conseguiu
provar de fato. "Assim como Howard Carter (egiptólogo inglês que descobriu a
tumba de Tutancâmon), Schliemann era um aventureiro que queria fama e riqueza",
conta o arqueólogo Vagner Porto, coordenador da pós-graduação em arqueologia da
Unisa.
De qualquer forma, sua descoberta foi
fundamental para provar a existência da cidade e da guerra de Tróia. É possível,
portanto, afirmar que Heitor, Aquiles e Pátroclo podem mesmo ter existido. Só
não se sabe se era da mesma forma descrita por
Homero.
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Os troianos queimam barcos, no quadro do francês
Claude Lorrain (1600-1682)
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CONHEÇA AS TRÓIAS TRÓIA I A ocupação da cidade data de 3000 antes de Cristo, no início da Era do Bronze. TRÓIA II Apresenta indícios de ser uma cidade já cercada por muralhas. TRÓIA III Considerada uma cidade de transição entre a estrutura da segunda Tróia para as seguintes, em uma era de mais riquezas. TRÓIA IV Há indícios de que a cidade tenha passado por um retrocesso, ficando isolada por um período. TRÓIA V A população cresce novamente, fortalecendo o comércio. Há indícios da existência de torres e uma fortificação. TRÓIA VI (A DA GUERRA) Provavelmente é a Tróia descrita por Homero, que foi destruída pelas chamas na guerra, em cerca de 1.300 a.C. TRÓIA VII Uma tentativa de reconstruir a cidade de Príamo, na transição da Idade do Bronze para a Idade do Ferro.
Colônia grega que atraía peregrinos e viajantes, como o próprio Homero. TRÓIA IX Mais uma colônia, desta vez fundada pelos romanos, durante o reinado de Augusto, e abandonada no século V da era cristã. |
Durante as batalhas, segundo a narrativa de Homero, os soldados de ambos os lados paravam de lutar para ver de perto os confrontos entre os grandes heróis de ambos os lados. Aquiles, Ajax e Odisseu lutavam sob o estandarte dos aqueus, enquanto Páris, Heitor e Enéias empunhavam suas lanças para proteger a sitiada Tróia. Esses personagens travaram verdadeiras aretéias, ou seja, combates singulares e heróicos. E tudo foi causado pelos deuses.
As divindades não assumiram uma posição na guerra apenas em seu
início, mas sim, durante todo o confronto, ora beneficiando os invasores, ora
ajudando os atacados. "Atena colocou-se do lado dos aqueus, para ajudá-los,
enquanto Ares, o deus que se alegra com a guerra, foi para o lado dos troianos.
Deuses e homens misturavam-se na terrível disputa. Também estavam presentes
Deimos e Fobos, filhos de Ares, que semeiam o pavor por onde passam, e Éris, a
discórdia, irmã de Ares", conta o helenista turco Menelaos Stephanides, em seu
livro Ilíada: a guerra de Tróia.
Ílion, no entanto, era mesmo inexpugnável. Do alto das enormes
muralhas, os soldados sitiados repeliam os inimigos com lanças, dardos e
flechas. As numerosas bigas aquéias eram inúteis naquela situação. Os invasores,
então, construíram um enorme cavalo de madeira e deixaram nos portões da cidade.
Acreditando ser um presente dos deuses, os troianos levaram a estátua para
dentro da cidade e banquetearam até o meio da madrugada. Porém, os melhores
heróis de Agamenon estavam escondidos dentro do construto: eles desembarcaram e
abriram as portas para o restante do exército. Os inimigos foram massacrados e,
finalmente, após dez anos de batalhas, Tróia era destruída.
Nem tudo é verdade na narrativa da guerra, mas os gregos daquela
época acreditavam integralmente na história. Os deuses, para os helenos,
realmente estiveram naquele conflito. E não estavam na costa do Egeu apenas como
expectadores. "Nessa guerra não combateram apenas homens, mas também deuses, que
lutaram ainda com maior obstinação que os mortais. Na verdade, a guerra funesta
não teria eclodido se os deuses não a houvessem desejado primeiro. Nisso
acreditavam os homens daquela época", escreveu Stephanides.
De fato, aqueus e troianos devem mesmo ter se batido por dez anos
no século XVIII a.C. Micenas, provaram os arqueólogos, realmente tinha relações
comerciais com povos asiáticos e com a própria Tróia. A questão é que quem
dominasse os portos da cidade de Príamo teria a hegemonia do Egeu.
ILÍADA E EDUCAÇÃO
Os combates entre esses heróis e a influência dos deuses, segundo
o helenista alemão Werner Jaeger, foram usados por Homero para despertar a
virtude, chamada de arete - era um atributo próprio da nobreza, só
alcançado por aqueles que impeliam na batalha de forma verdadeiramente heróica.
O poeta, continua o pesquisador, considera que virtude era a qualidade moral ou
espiritual dos homens, além de seu empenho em busca da glória e da perfeição.
"No conceito cavalheiresco, a vitória e a luta são a prova autêntica da virtude
humana."
A Ilíada, para Jaeger, é um "testemunho da elevada
consciência educadora da nobreza grega primitiva", pois desde aquele período já
se mirava na busca pela virtude suprema. Os mitos dos heróis, portanto, eram
essenciais para mostrar às pessoas que a ânsia pela honra e pela glória eram
sinais claros de arete. Até mesmo o sábio Platão considerava Homero
como o grande educador da Hélade.
A narrativa mitológica da batalha, portanto, é muito mais do que
um simples estilo estético e literário usado para engrandecer o relato de um
conflito bélico. Mais importante do que isso, os elementos míticos eram
fundamentais para transmitir essa idéia de glória baseada no sacrifício ao povo.
"Uma prova da íntima conexão entre a epopéia e o mito é o fato de Homero usar
exemplos míticos para todas as situações imagináveis da vida em que um homem
pode estar na presença de outro para o aconselhálo, advertir, admoestar, exortar
e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa", explica Jaeger.
Aquiles ataca Heitor - obra de Peter Paul Rubens
(1577-1640). Segundo a mitologia, Tróia nunca cairia enquanto Heitor estivesse
vivo
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O helenista continua, em seu livro Paidéia: "O mito serve
sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma
coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício, embora
originalmente seja sem dúvida alguma o sedimento de acontecimentos histórico que
alcançaram a imortalidade atrás de uma longa tradição e de interpretação
enaltecedora da fantasia criadora da posteridade."
De acordo com Homero, o ponto de partida para a educação nasce a
partir do cultivo das qualidades do herói. Sendo assim, os mitos presentes em
sua obra serviam de exemplo para mostrar aos gregos quais eram as
características essenciais e inexoráveis de um legítimo filho da Hélade, dotado
de arete e sempre disposto a se sacrificar por um bem maior, ou seja,
havia muito altruísmo naquela sociedade.
Uma prova dessa "utilidade" educadora do mito em prol da virtude
está presente em uma fala de Heitor na Ilíada. Na passagem, o príncipe
troiano afirma que "lutar pela pátria é um bom augúrio". Vale ressaltar que esse
mesmo personagem é morto nas portas da cidade, sob o olhar de centenas de
conterrâneos, em uma luta individual contra Aquiles. De forma dramática, ele é
estocado no pescoço pelo herói aqueu e morre em agonia. Seu corpo, depois, é
violado pelo inimigo: o filho de Tétis amarra o rival em sua biga e o arrasta
até o acampamento de Agamenon.
Para Jaeger, a Ilíada é o "testemunho da elevada
consciência educadora da nobreza grega primitiva".
DA MONARQUIA À
DEMOCRACIA
Alguns séculos depois da guerra de Tróia, os tempos mudaram na
Hélade e muitos costumes locais foram substituídos. Os gregos já não podiam mais
viver sob aquele tipo de sociedade, na qual monarcas mandavam com poderes
irrestritos, e isso demandava alterações radicais. Contudo, vale lembrar que
Ílion não foi o único reino destruído naquela época. Segundo o historiador
Robert Drews, da Universidade de Vanderbilt (Estados Unidos), inúmeros palácios
caíram naquele período, causando o fim da Idade do Bronze. Tebas, Micenas,
Tirinto e Canaã tiveram o mesmo destino da cidade de Príamo.
Um dos motivos foi a mudança na estrutura militar. No caso da
Hélade, os gregos abriram mão das eficientes cavalarias e, com isso,
desenvolveram um novo tipo de estratégia bélica para fortalecer as infantarias.
O problema é que, até então, os carros de guerra eram as armas mais eficazes de
combate: um condutor bem treinado guiava a biga enquanto "passageiros" atiravam
lanças e flechas nos inimigos. Os novos exércitos foram obrigados a encontrar
formas de combater essas máquinas militares de forma mais eficiente.
Com isso, as batalhas envolvendo cavalarias e bigas foram
substituídas por pelejas entre homens a pé, os cidadãos-soldados: pessoas que
passavam a fazer parte da sociedade de forma mais incisiva e, além disso,
vivenciavam a rotina do exército e da polis.
Assim, os clãs foram extintos, para que todos os homens fossem
agrupados em uma mesma cidade, onde poderiam treinar em conjunto por mais tempo
para se preparar melhor para a guerra. Isso fez que não tivessem apenas relações
familiares, mas sim com os pares, criando um sentimento de cidadania coletiva.
Era uma forma de despertar conceitos cívicos nas pessoas. Além disso, os heróis
também se transformaram em figuras ultrapassadas. Não havia mais espaço para
guerreiros como Aquiles e Heitor, que deixavam os companheiros para trás a fim
de ir de encontro ao adversário para obter glórias individuais. Tudo passa a
girar em torno da sobrevivência da cidade: os soldados deveriam permanecer
unidos no campo de batalha para minimizar os riscos de derrota e, desta forma,
resguardar a polis. "O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda
sobreviver na pessoa do hippeis; já não tem muita coisa em comum com
o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava no primeiro era a
façanha individual, a proeza feita em combate singular", explica o helenista
Jean-Pierre Vernant em seu clássico As origens do pensamento grego.
"Mas o hoplita não conhece o combate singular; deve recusar, se lhe
oferecer, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de
braço a braço, da luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar
em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da
peleja, de não deixar sem posto."
Os troianos arrastam o cavalo deixado pelos gregos
para dentro de Tróia - obra do pintor italiano Giovanni Domenico Tiepolo (1727-
1804)argumenta que o desejo está sempre relacionado à autodenominação do
sujeito
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Depois da guerra de
Tróia, não havia mais espaço para guerreiros como Aquiles e Heitor, que buscavam
glórias individuais
Nesse novo conceito de exército, as infantarias dependiam muito da
força do conjunto e da unidade, portanto, todos os homens deveriam se unir como
um só bloco para vencer as batalhas. Surgem aí as temíveis falanges, em que os
guerreiros passavam a vida toda treinando para desenvolver uma "dependência" de
um para com o outro. Deste modo, os generais formavam unidades de combate
sólidas e coesas - como ocorreu com a eficiente infantaria de Esparta, que de
tão competente foi apelidada de "usina de cadáveres" durante a Segunda Guerra
Médica.
Com a mudança, os monarcas também perderam seu espaço, afinal, os
homens já viviam em conjunto para o bem comum da polis, então,
sentiam-se capazes de decidir os rumos políticos da cidade-estado. O cidadão
passa a se confundir com o soldado, pois a partir do momento em que ganha
direitos, também assume seus deveres com a defesa da pátria. Os reis espartanos
foram reduzidos a meros generais, sem desempenhar funções administrativas, mas
apenas militares. Em seu lugar, quem passou a tomar as decisões políticas foram
os conselhos criados pelo legislador Licurgo, que na verdade são os primeiros
focos de instituições democráticas no Mundo Antigo.
O período da grande batalha de Tróia e das memoráveis
aretéias entre heróis lendários chegava ao fim porque os homens,
treinados para ficar unidos nas guerras, passaram a querer lutar juntos para
decidir os rumos da comunidade, de forma coletiva. Caem os reis e, no lugar,
ergue-se a imponente democracia. "A formação do exército no período clássico
carrega elementos das relações sociais, tanto no caso dos espartanos como dos
atenienses", explica Álvaro Allegrette, da PUC. "Com as mudanças sociais, as
pessoas passaram a viver em comunidade e, assim, as relações entre os cidadãos
fica mais evidente."
Depois de Tróia, surgiram as falanges gregas, um novo
tipo de exército em que os guerreiros dependiam uns dos
outros
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A polis, explica Werner Jaeger, representa um princípio
novo para os helenos, com reflexos importantes para a vida nas cidades, e surge
também a definição de Estado, criado em Esparta: essa instituição pública
representa, pela primeira vez, o agente educador do povo.
Hesíodo, outro poeta grego da Antiguidade, dizia que o heroísmo
não surge apenas nos combates. Segundo ele, em O Trabalho e os Dias, o
verdadeiro herói mítico e exemplar é forjado em qualquer situação nas quais a
disciplina é necessária para enaltecer as qualidades humanas. Um desses momentos
era o ato erguer-se na ágora e, dotado de um senso cidadão apurado, incitar o
povo a votar por mudanças importantes para a vida coletiva. Isso reforça a idéia
de que era fundamental aprimorar a erudição do povo. A educação seria, portanto,
uma forma de obter mais condições de tomar decisões coletivas corretas. Surgem,
assim, os políticos (a própria palavra deriva de polis).
A fuga da bela Helena com Páris foi o estopim para a
Guerra de Tróia, quadro do pintor Francesco
Primaticcio
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REFERÊNCIAS
CAMPOS, Haroldo (tradução). Ilíada: Volume I. São Paulo: 2002, Editora Arx. ________________________. Ilíada: Volume II. São Paulo: 2002, Editora Arx.
DREWS, Robert. The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe 1200 B.C. New Jersey: 1993, Princeton University Press.
HOMERO. The Iliad. Londres: 2003, Wordsworth Classics.
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: 1995, Martins Fontes.
STEPHANIDES, Menelaos. Ilíada: a guerra de Tróia. São Paulo: 2004, Odysseys, 3ª edição.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: 1998, Bertrand Brasil, 10ª edição.
CAMPOS, Haroldo (tradução). Ilíada: Volume I. São Paulo: 2002, Editora Arx. ________________________. Ilíada: Volume II. São Paulo: 2002, Editora Arx.
DREWS, Robert. The end of the Bronze Age: changes in warfare and the catastrophe 1200 B.C. New Jersey: 1993, Princeton University Press.
HOMERO. The Iliad. Londres: 2003, Wordsworth Classics.
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: 1995, Martins Fontes.
STEPHANIDES, Menelaos. Ilíada: a guerra de Tróia. São Paulo: 2004, Odysseys, 3ª edição.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: 1998, Bertrand Brasil, 10ª edição.
RODRIGO GALLO é
jornalista e escreve para esta publicação.
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