Ubuntu
Nem choro nem vela. Foi com chuva constante, considerada uma bênção divina pelos sul-africanos, diferentemente do que representa para os fluminenses alagados anualmente há décadas, que se deram as primeiras cerimônias fúnebres de Nelson Mandela. Um enorme bundalelê.
Uma comemoração de sua vida e “de tudo o que ele fez por nós” diz a moça sul-africana emocionada ao repórter, ao vivo, na TV. Celebração da vida, de um homem que fez da própria vida o que quis fazer, como qualquer um poderia, e aliás, pode. Nelson Mandela preso era mais livre do que muita gente solta por aí, ou em regime semiaberto, que seja. Um homem que deixa como legado a coragem e a persistência para conseguir dar um enorme passo, importantíssimo para a realização do sonho do homem que disse “eu tenho um sonho” e que inspirou muitos outros, como o homem que disse “sim, nós podemos”.
Os rabugentos entenderam como falta de educação o comportamento dos presentes, mas, como dizem, ninguém morre diferente de como viveu. Uma cerimônia solene, de ar condoído, em múltiplas variações de cinza, chumbo e bege dos trajes das autoridades, debaixo de um telhado de guarda-chuvas pretos não combina com Nelson Mandela. Pois, justamente, ele dedicou a vida àquilo mesmo que aconteceu no estádio. A alegria é a prova dos nove, já dizia o poeta. Tristes por não poderem mais viver com Nelson Mandela, alegres por ele ter existido. Alegres porque chove. Porque Nelson Mandela é um deles.
Porque paqueras inter-raciais são uma das coisas pelas quais ele muito lutou. Dançando nas ruas, cantando, apaixonadamente, agradecidos, orgulhosos de terem dado ao mundo um homem dessa estatura. Os rabugentos ruminam que ele foi não mais do que o homem certo na hora certa, mas o que é afinal um herói? Resmungam que teria traído seus próprios ideais. Argumentam até que as camisas com estampas africanas que Mandela passou a usar eram um ato estrategicamente calculado. Nunca fui boa de cálculo e jamais aprendi ou aprenderei matemática, que meu problema é nunca saber o que fazer com as vírgulas, quer em língua portuguesa ou matemática. Sou um zero à esquerda em vírgulas, mas que tipo de cálculo há na escolha de um homem africano de vestir-se com roupas africanas?
A propósito, não “veste-se” uma roupa africana, você é vestido por ela, você carrega a África no corpo quando usa seus panos. Cada turbante daqueles na festa de celebração da vida de Mandela, cada tipo de amarração estava dizendo alguma coisa.
Uma amiga angolana amarrou um turbante na minha cabeça para um show que fiz em Luanda. Ela escolheu a amarração, finalizou e então me ensinou o porte e, sobretudo, o espírito para carregá-lo. Um turbante que, com uma ponta central para cima, apontando para o alto, está dizendo que aquela mulher não acaba ali, onde acaba a sua altura. Ela é maior, muito mais alta, passa do seu próprio corpo, significando, muito mais do que sua posição social, a força de todas as mulheres africanas. Há que ter atitude para poder usar.
Nas arquibancadas, na geral do estádio, as combinações de rosas, amarelos, verdes, azuis berrantes, dançando e cantando, uma festa para as retinas, me lembraram de uma proposição de Hélio Oiticica: um jogo de sinuca. Cada jogador vai, é claro, se mover em função da disposição das bolas, e assim o que determina o movimento da cor no ar é o jogo, o acaso. A cor está no espaço em movimento sem predeterminação. Pois assim me pareceram as arquibancadas do estádio em Johannesburgo, milhares de cores dispostas pelo acaso, em movimento, resultando em alegre pintura gigante móvel, no espaço, não na tela. Nas sombrinhas coloridas, nenhuma igual à outra, com combinações de cores impensáveis, nenhum sóbrio xadrez. Imagino que, por ser a chuva uma bênção, sombrinhas alegres para agradecer deva ser o belo raciocínio.
Vinicius de Moraes com seu “Orfeu”, que na tela de um cinema do Kansas (nos anos 1950?) arrebatou uma moça de classe média americana, branca, a ponto de ela se apaixonar por um homem negro do Quênia, muito parecido com o ator que vive o protagonista no filme, e com ele ter um filho, Barack Obama, o primeiro presidente americano mulato da História.
Em seu discurso, ali mesmo no estádio, esse mulato que não existiria sem o empurrãozinho de Vinicius e a inspiração em Mandela disse que Nelson Mandela o tornara um homem melhor. Mandela nos tornou a todos melhores com seu exemplo. A palavra “ubuntu” vem do Bantu e é impossível de ser traduzida literalmente. Ubuntu é uma ética, uma filosofia de vida, mas acabou ficando conhecida como, em resumo, “eu sou porque você é”. É bem mais do que uma palavra, mas como palavra ou expressão, exata para a ocasião. Assistiríamos a um aperto de mão em gesto espontâneo, ao vivo, entre um presidente mulato americano e Raúl Castro em 2013 se Mandela não tivesse existido? Nunca saberemos. Sem palavras para agradecer, Madiba, ubuntu, e até mais.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/ubuntu-11071621#ixzz2oEdIJ91J
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