O homem que serviu à humanidade
A coragem e a benevolência de Nelson Mandela caberiam na personalidade de um herói de cinema. Seus feitos e brilhantes citações parecem parte de um enredo que só pode ter sido inspirado por alguma divindade africana
Por Oswaldo Faustino e Celso Fontana
Por Oswaldo Faustino e Celso Fontana
Imaginemos um filme em que a primeira cena é um belo nascer do sol na savana africana, cortada por um rio caudaloso. Inicia-se uma canção Xhosa, que parte do silêncio e cresce até que, no auge, surge, de repente, a imagem de uma anciã com um bebê nas mãos. Ela o eleva ao alto, entoando um misto de brado e canto: "Rolihlahla!". Imediatamente, com as línguas vibrando uma sonoridade aguda, uma multidão de homens, mulheres e crianças surge de todos os lados e se põe em torno da velha mulher, agitando seus braços erguidos.
O orgulho presente nos festejos daqueles que presenciaram o nascimento de Nelson Mandela certamente se mantém até hoje, multiplicado por milhões de admiradores ao redor do mundo. Na língua Xhosa, "Rolihlahla" é aquele que está sempre à procura de uma boa encrenca. Se encrenca serve como sinônimo de luta, então Mandela não poderia ter recebido nome mais digno, afinal, foi o homem responsável por acabar com a política branca do apartheid, regime que segregou os negros de 1948 a 1994, na África do Sul.
ORIGEM
Rolihlahla Dalibhunga Mandela, um dos 13 filhos de Gaddla Mandela com Nosekeni Fanny, sua terceira esposa, nasceu em 18 de julho de 1918, às margens do Rio Mbashe, próximo de Umbata, no seio da nação Xhosa. Passou seus primeiros anos correndo livre pelas terras de Qunu, uma reserva nativa, onde vive ainda hoje o povo Th embu. Herdeiro direto da casa real do povo liderado por seu pai, chefe do clã dos Mandela, aos 7 anos entrou para a escola primária e recebeu um nome inglês: Nelson. No ano seguinte, perdeu o pai, a quem descreveu como "orgulhoso e rebelde, com um senso obstinado de justiça". Foi então tutorado por seu tio Jongintaba Dalindyebo. A expectativa da família era de que o jovem Rolihlahla herdasse a chefia do povo Th embu. Uma das condições era que se casasse com uma jovem que nem sequer conhecia. Rebelde, fugiu para não se casar.
A PRIMEIRA MÃO BRANCA
Anos antes dessa fuga, sonhando preparar o sobrinho para substituí-lo como líder de seu povo, o tio o levou pessoalmente para matricular-se na escola metodista, dirigida pelo reverendo branco Cecil Harris. Depois de explicar que ele teria seus horizontes ampliados para além dos limites de suas terras e de informar que, após as aulas, ele iria trabalhar no jardim do colégio, o diretor lhe estendeu a mão. Em sua autobiografia, Mandela conta que titubeou a tocá-la, pois jamais apertara uma mão branca. Muitas décadas depois, ao ser libertado após 27 anos de prisão e o fim do apartheid, ele repetiria este gesto, contrariando os que acreditavam que se tornaria um homem vingativo.
Nas primeiras etapas de sua formação, frequentou escolas administradas por religiosos metodistas, dedicadas a uma elite do povo negro sul-africano. Muitos destes aristocratas tornaram-se líderes revolucionários. Na universidade, conviveu com os amigos que, mais tarde, formariam com ele o Congresso Nacional Africano (CNA), partido banido durante o apartheid e que hoje se encontra no poder. Naquela época, participou de uma manifestação universitária contra a má qualidade da comida, que visava boicotar a eleição do conselho estudantil. Acabou sendo eleito pelos colegas para comandar o conselho, cargo que se recusou a assumir. O diretor disse-lhe, então, que só havia duas alternativas: ou assumia o cargo ou abandonava a instituição. Preferiu a segunda.
"DEMOCRACIA COM FOME, SEM EDUCAÇÃO E SAÚDE PARA A MAIORIA, É UMA CONCHA VAZIA"
CASAMENTO ARRANJADO, DE NOVO?
De volta ao lar, foi recebido por um tio enfurecido. Para tornar o retorno ainda mais conturbado, seu primo e amigo inseparável, Justice - filho de Jongintaba -, seguiu os seus passos e também abandonou a universidade. Só uma atitude aplacaria a fúria real: ambos teriam de se casar com duas jovens desconhecidas para atender aos interesses políticos do rei. Se antes isso já era repulsivo para Mandela, na ocasião, havia se tornado impossível, por conta das concepções assimiladas nas escolas religiosas, diferentes dos costumes locais. Novamente, a solução foi a fuga, desta vez para Johannesburgo, a maior cidade sul-africana.
A dupla passou a viver em condições precárias em uma favela no subúrbio de Alexandra, cidade da província de Gauteng. Para se sustentarem, trabalhavam como vigias em uma mina. Obstinados, estudavam Direito à noite. Em 1941, Mandela tornou-se inquilino do líder sindical Walter Sisulu, que o convidou a ingressar para o CNA e lhe arranjou um estágio numa empresa de advocacia. Sisulu declarou: "O CNA sonhava em transformar-se num movimento de massa e, um dia, um líder de massa foi morar em casa".
Ao graduar-se, Mandela se associou a Oliver Tambo, formando o primeiro escritório de advogados negros do país. Por vir da nobreza de seu povo e pelas boas relações entre os reis e os dominadores brancos, ele não tinha se dado conta das grandes diferenças raciais na África do Sul. A realidade em Johannesburgo, porém, abriu seus olhos para a questão.
UM NOVO TEMPO, UM NOVO OLHAR
O ano de 1944 foi marcante na vida de Mandela, que se casou com Evelyn Mase, parente de Sisulu. A união durou 12 anos e resultou no nascimento da menina Maki, que morreu ainda bebê, do menino Thembi, de outra garota também chamada Maki e, por fim, o caçula Kgatho. No mesmo ano, com Sisulu e Tambo, ele fundou a Liga Juvenil do CNA, que lançou o manifesto "Um homem, um voto", denunciando a ilegalidade da dominação da minoria branca, até então vista com naturalidade. Começou a experimentar a popularidade e suas consequências exatamente nesse período.
Com a sua ascensão na estrutura do CNA, disputou as eleições de 1948, mas perdeu para o Partido Nacional de extrema direita, que estabeleceu o regime segregacionista do apartheid e promoveu a cultura africânder dos descendentes de colonos calvinistas holandeses, chamados bôeres, e demais europeus oriundos de outros países. Estes decidiram tomar as terras dos negros, mestiços e indianos, e criaram os bantustões - assentamentos reservados para a população não branca -, dos quais os moradores só podiam sair para trabalhar nos bairros dos brancos mediante a apresentação de um passe, que limitava o trânsito de sul-africanos pelo país.
À medida que a opressão aumentava, os manifestos se multiplicavam. Inicialmente pacíficos, como a ocupação pelos negros dos espaços reservados aos brancos. A primeira prisão de Mandela durou apenas dois dias. Outras a sucederam, com aumento do tempo de encarceramento, até ele ser condenado a nove meses de trabalhos forçados, sob a acusação de envolvimento com o comunismo. A pena acabou sendo suspensa, mas ele ficou proibido de qualquer atividade política.
Seu discurso, porém, mudou em 1953, quando conclamou ao enfrentamento. No ano seguinte, todos os não brancos oprimidos se uniram no Congresso do Povo, que realizou um grande encontro em Soweto. Apesar da forte repressão, Mandela e Sisulu escaparam ilesos. A grande dedicação à causa de seu povo lhe custou o fim da união com Evelyn, embora o casal tenha permanecido na mesma casa com os filhos até a invasão da polícia, que resultou em sua prisão e na de outras 144 pessoas, todas acusadas de traição.
WINNIE, NO CORAÇÃO CLANDESTINO
Respondendo às acusações em liberdade novamente, Nelson Mandela conheceu a enfermeira Winifred Zanyiwe Madikizela, a Winnie, 16 anos mais jovem. Eles se casaram durante um recesso do julgamento. Da união nasceram duas filhas, Zindziswa e Zenani. Antes, porém, Mandela passou um ano na prisão. Durante esse período, em 21 de março de 1960, ocorreu em Shaperville uma manifestação de cinco mil pessoas contra a Lei do Passe. Em luta com a multidão, a polícia matou 69 manifestantes e feriu aproximadamente 180. Nove anos depois, a ONU decretou o 21 de março como Dia Internacional contra a Discriminação Racial.
Quando Mandela saiu da prisão, se uniu à resistência armada. Tornou-se comandante e chefe do braço armado do CNA, batizado de "Lança da Nação". Entrou para a clandestinidade e só conseguia se encontrar com a esposa de maneira esporádica e às escondidas. Logo começaram os treinamentos paramilitares, além de viagens de Mandela e Tambo a Londres e a vários países africanos. Encontraram-se com líderes como Haile Sellasie, da Etiópia, o herói da resistência contra a invasão italiana a seu país. Ao retornarem, iniciaram as ações guerrilheiras, mas foram presos. Durante o julgamento, Mandela admitiu ter participado de sabotagens. Em pronunciamento que durou quatro horas, disse que estava disposto a morrer pelo ideal de ajudar a construir "uma sociedade livre e democrática, na qual as pessoas vivam juntas, em harmonia e com oportunidades iguais". Em 11 de junho de 1964, os juízes decidiram a pena: prisão perpétua.
A DEPURAÇÃO DO SER
Seus raros contatos com o mundo exterior na prisão da ilha de Robben aconteciam em visitas anuais da mãe, que não entendia sua luta, e de Winnie. Na pequena cela, o prisioneiro 466/64 passou por todas as fases amargas dos sentimentos humanos, do desespero à revolta, do arrependimento à angústia. Mas também, certamente, encontrou em si próprio, como antídoto, a esperança, a busca do autoconhecimento e a certeza de que seus sonhos eram compartilhados por todo o povo sul-africano.
As más notícias se sucediam: a morte da mãe; a do filho Thembi, em acidente de automóvel; o recrudescimento das limitações aos sul-africanos negros; a repressão à revolta de Soweto, em 1976, que resultou em centenas de mortes; e o assassinato, com uma carta-bomba, da parceira de luta Ruth First, que vivia exilada em Moçambique, em 1982.
Após várias transferências de prisão, uma lenta melhora das condições carcerárias foi acontecendo, as visitas dos familiares tornaram-se mais constantes e as notícias da campanha por sua libertação, que Winnie empreendia mundo afora, chegaram aos seus ouvidos.
DE NEGOCIADOR A PRESIDENTE
Mesmo a contragosto dos companheiros do CNA, dirigido por Tambo, que estava exilado na Zâmbia, Mandela começou a negociar sua libertação com o governo de Pieter Botha. No interior do partido, seu gesto foi repudiado, mas o mundo o aplaudia: o City College, de Nova Iorque, lhe concedeu o doutorado em Direito; e a cidade de Olímpia, na Grécia, o título de cidadão honorário. O governo admitia libertá-lo e a seus companheiros presos, caso aceitassem o confinamento no bantustão de Umtata. Recusaram-se. Os assentamentos eram a principal marca do apartheid, e admiti-los significava reconhecer o regime.
Após vários encontros com o próprio Botha, que adoeceu gravemente e foi obrigado a afastar-se do governo, Mandela, também com a saúde debilitada, passou a negociar com F. W. de Klerk, seu sucessor. Finalmente, em 11 de fevereiro de 1990, 27 anos após seu encarceramento, ele se apresentou livre, com o punho direito elevado ao alto, para aclamação da multidão. O gesto se repetiu em outras aparições públicas, com seu brado: "Amandla!" (poder), e a resposta vibrante da massa: "Awethu!" (para o povo).
O líder superstar revelou-se também um grande estadista. "Não há nada como regressar a um lugar que está igual para descobrir o quanto a gente mudou", declarou. Para contragosto dos radicais, o "Amandla" de Mandela não significava a erradicação de seus antigos algozes, mas uma conciliação. A estes, tinha uma única resposta: "Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou, ainda, por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar". A multidão passou a chamá-lo pelo título honorífico máximo do clã dos Mandela: "Madiba".
Em campanha presidencial e viajando pelo mundo todo, Mandela teve a oportunidade de colocar em prática um de seus pensamentos mais famosos: "Sonho com o dia em que todos se levantarão e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos". Foi eleito, em 1993, o primeiro presidente negro da África do Sul, com F. W. de Klerk como vice. Ambos foram agraciados com o Prêmio Nobel da Paz.
"A EDUCAÇÃO É A ARMA MAIS PODEROSA QUE VOCÊ PODE USAR PARA MUDAR O MUNDO"
SAI WINNIE, ENTRA GRAÇA
Motivos pessoais e políticos o afastaram de seu antigo amor, a principal porta-voz da luta pela sua libertação. Acusações contra Winnie, que incluíam conspiração, roubo, fraude, assassinato e infidelidade, culminaram no divórcio do casal, em 1996. Considerados culpados de 43 dos 58 crimes dos quais foram acusados, Winnie e seu secretário Addy Moolman foram condenados a cinco anos de prisão em 2003.
Durante o processo de divórcio, o coração de Mandela já pulsava no compasso de outra militante histórica pelos direitos humanos, a professora universitária Graça Machel, viúva do primeiro presidente de Moçambique após a independência, Samora Machel, morto em 1986, num acidente aéreo. Em 1998, ela se tornou a primeira dama da África do Sul.
"NÃO HÁ NADA COMO REGRESSAR A UM LUGAR QUE ESTÁ IGUAL PARA DESCOBRIR O QUANTO A GENTE MUDOU"
A experiência de Graça durante os 14 anos em que foi ministra de Educação e Cultura em seu país, foi de encontro aos planos do presidente sul-africano, para quem "a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo". É dele também o pensamento: "Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia".
A principal palavra de ordem do governo Mandela foi conciliação. A Nkosi Sikolele Africa, canção-símbolo do CNA, foi mesclada ao Die Stein, dos antigos dominadores, na formação de um novo hino para o país. Criou-se uma nova bandeira e se mudou a constituição. Mesmo com algumas críticas por reformas estruturais não ocorridas e por uma melhor distribuição de renda - muitas delas feitas por outro combatente do apartheid, o amigo e arcebispo Desmond Tutu -, o presidente conseguiu eleger seu sucessor, Thabo Mbeki. Em 2009, Mbeki foi sucedido por Jacob Zuma, também membro do CNA.
A APOSENTADORIA DO HERÓI
Quando deixou a presidência da África do Sul, em 1999, Mandela se aposentou. Numa das raras tréguas à vida tranquila da aposentadoria, o herói sul-africano voltou a rugir feito um leão, desta vez contra seu protegido, o presidente Mbeki, que se negou a distribuir os medicamentos de combate ao vírus HIV, mesmo em meio ao crescimento da epidemia de AIDS que, inclusive, vitimara seu filho Kgatho. Essa intervenção interna não foi a única tentativa do grande líder do século XX de mudar a história contemporânea. Externamente, também se manifestou, às vésperas da invasão do Iraque, criticando os EUA e a Inglaterra, e tentando negociar pessoalmente a renúncia de Saddam Hussein. Sua tentativa, porém, foi em vão, e os acontecimentos rumaram para o trágico final.
A expectativa de sua aparição, aos 92 anos, na festa de abertura da Copa do Mundo da África do Sul, em 11 de junho de 2010, no mesmo estádio onde proferiu seu principal discurso após a libertação, foi frustrada pela morte da bisneta Zenani em um acidente de carro, quando retornava dos festejos pelo evento, em Soweto. No encerramento da competição, ele surgiu no gramado, ao lado da esposa, num carrinho elétrico. Acenou para a multidão por apenas três minutos e foi embora.
Após a primeira década do século XXI, Nelson Mandela, que voltou a residir na Qunu de sua infância, revezou períodos de ostracismo com internações hospitalares que atraíram o foco da mídia mundial e geraram grande comoção na população sul-africana. Há muito não se ouve uma única declaração política de "Madiba", que jamais se afastou do CNA. Ele, porém, foi evocado pela líder de um partido recém-surgido no país, o Agang - que em língua Sesotho quer dizer "deixe-nos construir" -, a médica e ex-diretora administrativa do Banco Mundial, Mamphela Ramphele, companheira de luta do mártir Steve Biko e candidata à presidência nas eleições do próximo ano.
No dia 18 de julho, o grande herói negro completou 95 anos de vida internado em um hospital em Pretória, onde está desde o dia 8 de junho, devido a complicações causadas por uma infecção pulmonar. Apesar do estado delicado de saúde, ocorreram várias atividades na África do Sul para celebrar o Dia de Mandela - data oficialmente definida em 2010 em sua homenagem pelas Nações Unidas.
Nelson Mandela e Vital Nolasco se cumprimentam durante assembleia no plenário do Palácio 9 de Julho, em São Paulo, dia 2 de agosto de 1991
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Na ocasião, Mandela presidiu simbolicamente a Assembleia Paulista e fez discurso para representantes de dezenas de entidades negras, populares e sindicais de todas as regiões do Brasil
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NELSON MANDELA NO BRASIL
Após sua libertação, em 1990, Mandela foi eleito presidente do Congresso Nacional Africano (CNA), o partido das maiorias negras da África do Sul. Em posse desse cargo e já em campanha para a presidência do país, nas eleições que aconteceriam em 1994, ele desembarcou no Rio de Janeiro, em 1º de agosto de 1991, numa visita que durou seis dias e incluiu passagens por São Paulo e Brasília.
Uma das histórias mais marcantes da visita ao Brasil ocorreu durante sua estadia na capital paulista, quando participou de uma sessão ordinária no plenário maior do Palácio 9 de Julho (que tem o nome Juscelino Kubitscheck), no dia 2 de agosto. A assembleia atraiu grande público nas galerias: eram representantes de dezenas de entidades negras, populares e sindicais de todas as regiões do Brasil. Entre os parlamentares presentes naquela sessão presidida por Carlos Apolinário, estavam Teodosina Ribeiro - primeira mulher negra a exercer o mandato de deputada estadual -, Luiza Erundina, a prefeita de São Paulo na época, e destacaram-se o então deputado Jamil Murad, autor do projeto que criou o SOS Racismo da Assembleia, e o vereador paulistano Vital Nolasco, autor do projeto que concedeu o título de Cidadão Paulista a Nelson Mandela, ambos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). "Enquanto Mandela esteve encarcerado, fizemos um ato em São Paulo para apoiar sua libertação. Personalidades como João do Vale, Beth Carvalho e Martinho da Vila participaram daquela manifestação, que foi a nossa maneira de prestar solidariedade ao povo africano. Tempos depois, quando soube que ele viria para o Brasil, resolvi lhe prestar a singela homenagem. O grande estadista Mandela demonstrou-se extremamente simples, mas com grande convicção de suas ideias. Além disso, o homem esbanjava felicidade", recorda Nolasco, hoje secretário de finanças do PCdoB.
"O GRANDE ESTADISTA MANDELA DEMONSTROU-SE EXTREMAMENTE SIMPLES, MAS COM GRANDE CONVICÇÃO DE SUAS IDEIAS" diz Vital
A deputada Célia Leão, do PSDB, também fez discurso notório. Diversos parlamentares quiseram fazer uso da palavra, mas Mandela estava muito cansado, pois, na véspera, havia participado de diversos eventos e homenagens no Rio de Janeiro, acompanhado pelo governador Leonel Brizola.
Conforme relata o autor Celso Fontana, em seu e-book "... E Mandela presidiu a Assembleia Paulista...", obra que descreve as homenagens ao grande líder sul-africano, "os funcionários dos vários setores da Assembleia, em especial os envolvidos na recepção e nos trabalhos de plenário, estavam visivelmente emocionados". A associação e o sindicato dos funcionários da Assembleia, Afalesp e Sinfalesp (atual Sindalesp), apoiaram a homenagem. A Coordenadora do Quilombhoje Literatura, Esmeralda Ribeiro, recebeu os cumprimentos em nome dos artistas que se apresentaram durante o evento. Por fim, Mandela presidiu, simbolicamente, a Assembleia Paulista.
SÁBIAS PALAVRAS (POR CELSO FONTANA)
O discurso de Mandela demonstrou elegância, humildade, gratidão, convicção, motivação, honestidade de propósitos, consciência da oportunidade e a necessidade da vitória "não amanhã, mas hoje!". Dos valores listados por Mandela na carta à esposa, em 1975, na prisão, ainda há outros três: sinceridade, simplicidade e generosidade. A compatibilidade do que escreveu com o seu comportamento pode ser sintetizada como coerência. Nelson Mandela é o homem mais importante do século XX. Soube manter a esperança e o equilíbrio mesmo nas masmorras. foi um estadista libertador, ou ainda mais, um estrategista da paz. Abaixo segue o discurso daquele 2 de agosto, feito após o presidente da Assembleia, Carlos Apolinário, oferecer-lhe a palavra:
"Senhoras e senhores, essa é uma indicação da profundidade do apoio que o povo de São Paulo tem dado à nossa causa, à nossa luta. A Assembleia Legislativa é a mais alta autoridade legal no país, e a concessão à posição simbólica de presidente desse órgão é, sem dúvida, uma fonte de força para o povo que luta na África do Sul. Agradeço muito ao presidente pela honra que me concede. É algo único, que nunca me foi concedido nos 40 países que visitei desde que fui liberado. os representantes do povo do Brasil, a vitória da democracia contra a tirania e a ditadura, tudo foi um desenvolvimento que inspirou a todos nós. E é por essa razão que estamos tão determinados a destruir o governo apartheid na África do Sul. Muito obrigado".
Como reconheceu Mandela em seu discurso, as entidades negras brasileiras apoiaram firmemente sua libertação. todas elas colocavam palavras de ordem em seus panfletos e materiais de divulgação: "Pela libertação imediata de Nelson Mandela","Pelo fim do apartheid" e "Pela ruptura das relações diplomáticas com o governo racista da África do Sul".
Os grupos protestavam em frente à embaixada e aos consulados e faziam manifestações de rua. Entre as realizações do movimento negro brasileiro, naquela ocasião, temos a memorável Carta Aberta a Mandela, escrita por Hamilton Cardoso. o grande poeta Arnaldo Xavier redigiu o discurso que Flávio Jorge leu na Prefeitura. A Subcomissão do Negro da OAB escreveu em suas faixas para o evento ecumênico na Catedral da Sé: "We also have apartheid here".
Mandela acreditava, inicialmente, como muitos africanos, que havia democracia racial no Brasil. Mas o movimento, em especial na Bahia, mostrou a ele que não era bem assim, mostrou que se tratava muito mais de um discurso do que de uma prática, por ausência da implementação de medidas reparatórias pós-escravidão. o racismo se renova e está presente até hoje no comportamento de milhões de brasileiros. Mais grave ainda, existe racismo institucional na magistratura, no parlamento, no ministério público, na advocacia, nas forças armadas e no meio empresarial.
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Revista Raça Brasil
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