Dois casos de adolescentes que se mataram após terem sua intimidade exposta na rede mostram o quanto os jovens são suscetíveis a esse tipo de crime virtual e como a legislação brasileira ainda é falha
Fabíola Perez
Um levantamento realizado pela ONG SaferNet Brasil, especializada em crimes cibernéticos, revelou que, neste ano, 34% dos jovens entre 16 e 23 anos já namoraram pelo menos uma vez pela rede usando ferramentas de produção de vídeo. O registro de cenas íntimas, seguido da divulgação nas redes sociais, tem causado sérias consequências para as vítimas, como o abandono da vida escolar, humilhações e, em situações mais extremas, o suicídio. O caso mais recente aconteceu na quinta-feira 14, em Veranópolis, no Rio Grande do Sul. Uma jovem de 16 anos se matou depois de descobrir que o ex-namorado teria espalhado imagens dela seminua nas redes sociais. De acordo com o delegado Marcelo dos Santos Ferrugem, responsável pelo caso, os culpados serão enquadrados no Estatuto da Criança e do Adolescente, que considera crime grave a divulgação de fotos e vídeos de crianças e jovens em situação de sexo explícito ou pornografia. No caso da menina de Veranópolis, o principal suspeito é um jovem que teve o nome gravado no chat utilizado para registrar as imagens.
VÍTIMAS
Com quatro dias de intervalo, adolescentes do Rio Grande do Sul (acima)
e do Piauí (abaixo) cometem suicídio para escapar das humilhações
sociais por terem vídeos íntimos vazados na internet. Abaixo,
Júlia deixa um recado no Twitter para sua mãe
Com quatro dias de intervalo, adolescentes do Rio Grande do Sul (acima)
e do Piauí (abaixo) cometem suicídio para escapar das humilhações
sociais por terem vídeos íntimos vazados na internet. Abaixo,
Júlia deixa um recado no Twitter para sua mãe
Quatro dias antes da morte da adolescente gaúcha, outra garota experimentou o mesmo drama. Em Parnaíba, no Piauí, Júlia Rebeca, de 17 anos, foi encontrada morta em seu quarto após ter um vídeo íntimo publicado na internet. As imagens da menina tendo relações sexuais com um garoto e outra adolescente vazaram nas redes sociais e foram distribuídas por celulares. A polícia continua apurando o caso, mas como a jovem foi encontrada pela tia com um fio de uma prancha alisadora enrolado no pescoço, a principal hipótese é a de suicídio. Retraída nas últimas semanas, Júlia escreveu uma mensagem de despedida em seu Instagram e no Twitter: “É daqui a pouco que tudo acaba”. Para a secretária-adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Rosangela Maria Rigo, a divulgação de conteúdos íntimos pela internet é um crime que equivale à violência doméstica. “Casais podem filmar a vida íntima, o problema é quem tem o controle dessas imagens.”
Se antes a maior ameaça vinha de desconhecidos que invadiam os dispositivos móveis e espalhavam fotos íntimas, os casos mais recentes mostram que o risco agora vem do namorado ou do marido que, ressentido com o término do relacionamento, está disposto a tudo para se vingar. O fenômeno cresceu tanto que ganhou um nome, “pornovingança”. Aconteceu em 2006 com a paranaense Rose Leonel. Sete anos depois de ser exposta por um ex-namorado, ela ainda se lembra do sofrimento. “Ele pedia constantemente para fazermos fotos íntimas até que um dia eu aceitei, para agradá-lo.” Rose conta que eles chegaram a gravar CDs com imagens e vídeos. “Ele prometeu que guardaria tudo em um cofre.” Mais tarde, descobriu que o ex-namorado negociou a abertura de um site com fotos suas por R$ 1 mil. Rose terminou o relacionamento e a ameaça veio em seguida: “Ele disse que destruiria minha vida.”
A paranaense perdeu emprego, amigos e nunca mais saiu de casa sozinha. Até que, em março deste ano, criou a ONG Marias da Internet, para dar apoio psicológico e jurídico a mulheres que foram vítimas de crimes cibernéticos. “Recebo denúncias frequentemente por telefone e redes sociais e quero fazer alguma coisa para ajudar as pessoas a enfrentar esse problema”, diz. Outro triste caso que ganhou notoriedade no País foi a exposição de um vídeo íntimo de Francyelle dos Santos Pires, de 19 anos, que vive em Goiânia. Mãe de uma menina de 2 anos, ela teve de mudar a aparência e parar de trabalhar depois de ser massacrada por mensagens na internet. “Não tenho mais vida, não consigo sair, estudar nem trabalhar”, afirma. A suspeita é de que a divulgação tenha sido feita por um ex, Sérgio Henrique de Almeida Alves, de 22 anos. Para o presidente da ONG SaferNet Brasil, Thiago Tavares de Oliveira, a legislação para punir os responsáveis por crimes virtuais ainda engatinha no País. “O Brasil vive um vácuo no que diz respeito à privacidade na rede.”
Duas propostas, no entanto, foram lançadas recentemente para diminuir a incidência desses crimes. Um projeto em tramitação no Congresso Nacional quer estender a Lei Maria da Penha para delitos virtuais. Ele prevê que qualquer divulgação de imagens, informações, vídeos ou áudios obtidos a partir de relações domésticas, sem o consentimento da mulher, passe a ser entendido como violação de intimidade. Em outubro, o deputado federal Romário (PSB-RJ) também apresentou um projeto de lei que criminaliza a publicação indevida de vídeos. “O criminoso se aproveita da vulnerabilidade gerada pela confiança da pessoa”, diz ele. Para Tamara Biolo Soares, diretora de Direitos Humanos e Cidadania de Justiça da Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul, a sociedade pode ajudar, desautorizando a prática. “As pessoas não podem naturalizar e compartilhar crimes como esses.”
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