Como nobres decadentes da Idade Média originaram ideais que resistiram à modernidade e moldaram o Romantismo
POR MARCOS ANTÔNIO LOPES
Antes de concluir estas notas exploratórias, é preciso afirmar que o romance de cavalaria foi um gênero sincrético e cada livro era uma obra aberta que podia reunir, de modo orgânico, alguns traços do ideal aventureiro da antiga epopéia clássica, o sentimentalismo trovadoresco das canções de gesta, certos traços mundanos da literatura picaresca, bem como diversas dimensões de outras formas literárias. O romance cavaleiresco fundia ainda elementos sagrados e profanos: guerras, milagres, virtudes cristãs, amor e aventuras eram os principais ingredientes do gênero. Mas, para além dos motivos explorados pela imaginação, os romances de cavalaria possuíram outros sentidos e outras aplicações. Lucien Febvre explica a importância cultural e a função social dessa literatura: “Os romances de cavalaria não tratam única e exclusivamente do amor. Não tratam única e exclusivamente do casamento. Tratam de problemas tão graves na ordem política e nacional (...). Tratam da honra, e do ponto de honra. Elaboram e espalham uma moral da honra que é individualista em sua essência, e egotista” 14.
REFERÊNCIAS
1 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 152.
2 Cf. PERROY, E. “A nova primavera da Europa: séculos XI-XII”. In: ——. A Idade Média. São Paulo: Difel, 1974. p. 13s.
3 DUBY, G. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques LE GOFF & Pierre
NORA. (Org.). ——.História: novos problemas. In: LE GOFF, J. & NORA, N. (Org.). —— .História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998. p. 142.
4 BLOCH, M. “Le code chevaleresque”. In: ——. La société féodale. Paris: Albin Michel, 1968. p. 443.
5 HUIZINGA, J. “A idéia da cavalaria”. In: ——. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/Edusp, 1978. p. 65.
6 HOLANDA, S.B. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 33.
7 HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 56.
8 PERROY, E. “Les transformations de la société chevaleresque”. In: ——. Histoire de la France. Paris: Gallimard, 1950. p. 148.
9 HUIZINGA, J. “O sonho do heroísmo e do amor”. In: ——. Op. cit., p. 74.
10 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 129.
11 CARPEAUX, O.M. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959. p. 298.
12 HUIZINGA, J. “O valor político e militar das idéias da cavalaria”. In: ——. Op. cit., p. 89.
13 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 148.
14 FEBVRE, L. Michelet e a Renascença. São Paulo: Scritta, 1995. p. 421.
15 WATT, I. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 68.
16 Cf. ELIAS, N. O processo civlizador: formação do Estado moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Vol. 2. p. 21.
POR MARCOS ANTÔNIO LOPES
No tempo das Cruzadas, e bem depois de cessado esse fenômeno histórico de longa duração, a figura do cavaleiro estava ligada ao indivíduo que, pertencendo à nobreza, não herdara bens de família, a não ser os recursos necessários para a aquisição de suas armas, além da dignidade que lhe conferia o direito de sagrar-se cavaleiro. Isso só era possível após um longo aprendizado, que incluía etapas como palafreneiro, pajem e escudeiro de um senhor de expressão no interior da ordem feudal, normalmente um ancião de sua linhagem que, a partir desse rito de passagem, tornava- se seu suserano. Esses fidalgos levavam uma existência apertada no interior da ordem aristocrática feudal. Quando se lançavam à vida aventurosa, faziam-no premidos pelas necessidades de sua condição. As turbulências da juventude feudal têm a sua origem no interior do círculo familiar: “conflito com o pai, conflito sobretudo com o irmão mais velho, herdeiro dos bens paternos. Muitos desses jovens são precisamente filhos mais novos, e essa situação contribui fortemente para o seu vaguear”.1 A condição de secundogênitos em famílias normalmente numerosas mal lhes propiciava os recursos para a aquisição e manutenção de suas armas. Segundo o medievalista francês Edouard Perroy, no século XI uma couraça de cavaleiro custava o equivalente aos rendimentos agrícolas de uma gleba de proporções médias.2 Armar-se cavaleiro e arcar com os custos das peças ofensivas e defensivas de armamento, cavalo apropriado e escudeiro, implicava consideráveis despesas que, no interior da ordem aristocrática, apenas uma minoria privilegiada podia sustentar em sua própria região de origem. Com o tempo, a cavalaria foi tornando-se hereditária, e os grandes cavaleiros passaram a distinguir-se pelos brasões de família.
O cavaleiro de Sayn e os Gnomos, de Emanuel Gottlieb Leutze (1816-1868)
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"A ética feudal, a representação ideal do cavaleiro perfeito, portanto, atingiu uma considerável e duradoura influência. (...) Assim, O IDEAL CAVALEIRESCO SOBREVIVEU A TODAS AS CATÁSTROFES QUE FERIRAM O FEUDALISMO NO DECORRER DOS SÉCULOS. Sobreviveu mesmo ao Dom Quixote de Cervantes, que interpretou o problema da maneira mais perfeita pelo seu brilho."
Eric AUERBACH. Mimesis
VIRIS AVENTURAS VIRTUOSAS
Originadas em grande medida por necessidades dessa natureza, as aventuras cavaleirescas não poderiam deixar de ser a história de roubos, de raptos e de outras tantas ações em que a virilidade virtuosa era o principal elemento de definição. Soi Preux era a palavra de ordem dos cavaleiros franceses na Idade Média. E toda rapinagem cavaleiresca podia ficar encoberta já que ser valente era possuir liberdade de ação para garantir o próprio sustento. “Os valores que fundamentam a ideologia cavaleiresca”, escrevia Georges Duby, “a exaltação da proeza, da rapina, da festa dos sentidos e da alegria de viver, evidentemente são construídos a partir de uma recusa resoluta do espírito de penitência e das renúncias pregadas pelos homens da oração.”3 Naturalmente, o catálogo dos valores morais no interior da ordem cavaleiresca possuía o seu grau específico de complexidade. Nesse sentido, as fronteiras que separavam ou uniam as virtudes eram muito tênues e, em certos momentos, valentia e crueldade podiam adquirir sentidos equivalentes.
Originadas em grande medida por necessidades dessa natureza, as aventuras cavaleirescas não poderiam deixar de ser a história de roubos, de raptos e de outras tantas ações em que a virilidade virtuosa era o principal elemento de definição. Soi Preux era a palavra de ordem dos cavaleiros franceses na Idade Média. E toda rapinagem cavaleiresca podia ficar encoberta já que ser valente era possuir liberdade de ação para garantir o próprio sustento. “Os valores que fundamentam a ideologia cavaleiresca”, escrevia Georges Duby, “a exaltação da proeza, da rapina, da festa dos sentidos e da alegria de viver, evidentemente são construídos a partir de uma recusa resoluta do espírito de penitência e das renúncias pregadas pelos homens da oração.”3 Naturalmente, o catálogo dos valores morais no interior da ordem cavaleiresca possuía o seu grau específico de complexidade. Nesse sentido, as fronteiras que separavam ou uniam as virtudes eram muito tênues e, em certos momentos, valentia e crueldade podiam adquirir sentidos equivalentes.
A justiça da época não via problemas reais em duelos, roubos e assassinatos, considerados pecadilhos sem relevo quando cometidos por cavaleiros. Aliás, o chamado “grito do sangue” — o duelo — era ilícito aos burgueses. No interior da ordem aristocrática, os nobres julgavam-se merecedores de uma morte heróica, a não ser em casos excepcionais considerados hediondos, como a história de um cavaleiro que assassinou a própria mulher, sendo atirado ao rio dentro de um saco costurado. Nesse caso, o crime foi punido com uma morte considerada indigna. Como lembra Perroy, não há pior castigo para um cavaleiro do que ser tratado como vilão. Conforme explica um escritor do Antigo Regime, Montesquieu, a vilania feria os códigos de honra dos cavaleiros medievais e constituí- se em injúria, a ser lavada com sangue. Apenas os vilões poderiam receber golpes na face, pois somente eles combatiam com o rosto descoberto. Um cavaleiro que tivesse recebido uma bofetada no rosto “havia sido tratado como vilão”.
Aos romances de cavalaria dos finais da Idade Média e dos inícios da Época Moderna coube a tarefa de dissimular as vagabundagens heróicas dos velhos tempos. A literatura criou a ilusão de que as virtudes viris dos cavaleiros andantes eram mesmo a realização de um ideal de justiça. Na teoria, após a investidura, o cavaleiro tornava-se um servo de Cristo e, a partir dos séculos XII e XIII, as guerras que travava tinham as suas normas estabelecidas pela Igreja. A cavalaria era um estilo de vida marcado por regras de civilidade definidas pelas autoridades eclesiásticas: “Desse modo, uma discriminação de interesse capital introduzia-se no velho ideal da guerra pela guerra, ou pelo ganho. Com sua espada, o adubado defenderá a Santa Igreja, particularmente contra os pagãos. Ele perseguirá os malfeitores”.4 A partir do século XI a Igreja assumiu o controle do cerimonial da investidura, e a sagração do cavaleiro ganhou uma nova complexidade. Ao adubamento — do francês medieval adoubement, aqui aplicado no sentido de “equipado”, “munido” dos instrumentos necessários — do cavaleiro antecedia a vigília das armas, na qual ele ouvia a missa para, só depois de uma noite de orações, receber as armas das mãos de um clérigo. “Quanto ao tapa”, lembra o medievalista francês Jean Flori, “ele tem por única função trazer ao cavaleiro a lembrança daquele que o investiu”. Após a investidura, tornava-se um cristão defensor de sua fé. O seu compromisso, assumido com todos os efeitos de uma missão cristã, era o de proteger a Igreja, as viúvas, os órfãos, os peregrinos, os pobres e os oprimidos de todas as extrações. Nobres sem chão, ou melhor, sem a posse de terras, ao sagraremse cavaleiros, saíam em busca de vida aventurosa.
As ordens de cavalaria podem ter surgido a partir da continuidade de tradições germânicas pré-cristãs. A Ordem Teutônica foi criada na cidade palestina de São João do Acre durante as cruzadas, no fim do séc. XII. Acima, Cavaleiros Teutônicos na Polônia (1875), de Wojciech Gerson
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BONS TEMPOS DE FÉ
De acordo com a interpretação de alguns medievalistas, os “bons e gloriosos” tempos da literatura cavaleiresca parecem coincidir com os séculos XII e XIII. Essa foi a época de maior esplendor da cavalaria medieval. O prestígio dessa instituição militar nas sociedades de época deu origem a uma rica literatura ilustrativa de seus valores morais. Como instituição essencialmente militar, e sem desconsiderar as suas motivações religiosas, a cavalaria existiu em toda a Europa. Mas foi a França a sua pátria de origem. De fato, a literatura derivada desse fenômeno constituiu-se, durante longo tempo, em um produto francês de exportação. Entretanto, a cavalaria foi igualmente forte na Inglaterra, em Portugal, na Itália e na Alemanha. Na pátria de Dom Quixote ela também existiu, acompanhada de rica literatura, sob a influência direta da tradição francesa. Dentre algumas das ordens cavaleirescas mais importantes destacaram- se a dos Templários, a dos Hospitalários, a de Aviz, a de Calatrava e a dos Cavaleiros Teutônicos. Historiadores da Idade Média acreditam que as matrizes históricas mais remotas das ordens cavaleirescas estejam associadas às instituições militares romanas. Contudo, a tese mais aceita é a de que os seus principais fundamentos são de origem teutônica.
De acordo com a interpretação de alguns medievalistas, os “bons e gloriosos” tempos da literatura cavaleiresca parecem coincidir com os séculos XII e XIII. Essa foi a época de maior esplendor da cavalaria medieval. O prestígio dessa instituição militar nas sociedades de época deu origem a uma rica literatura ilustrativa de seus valores morais. Como instituição essencialmente militar, e sem desconsiderar as suas motivações religiosas, a cavalaria existiu em toda a Europa. Mas foi a França a sua pátria de origem. De fato, a literatura derivada desse fenômeno constituiu-se, durante longo tempo, em um produto francês de exportação. Entretanto, a cavalaria foi igualmente forte na Inglaterra, em Portugal, na Itália e na Alemanha. Na pátria de Dom Quixote ela também existiu, acompanhada de rica literatura, sob a influência direta da tradição francesa. Dentre algumas das ordens cavaleirescas mais importantes destacaram- se a dos Templários, a dos Hospitalários, a de Aviz, a de Calatrava e a dos Cavaleiros Teutônicos. Historiadores da Idade Média acreditam que as matrizes históricas mais remotas das ordens cavaleirescas estejam associadas às instituições militares romanas. Contudo, a tese mais aceita é a de que os seus principais fundamentos são de origem teutônica.
Durante as Cruzadas, a Igreja criou várias ordens de cavalaria, com o propósito de proteção das fronteiras naturais da Cristandade. Com o fim das Cruzadas, as ordens cavaleirescas européias perderam muito do seu campo de ação. Tornando-se parcialmente ociosas, seus combates restringiram-se à participação na luta contra os infiéis, na guerra de Reconquista da Espanha. Foi preciso buscar novas funções sociais para guerreiros desocupados. Em parte, os torneios criados no espaço vazio deixado pelas Cruzadas, reduziram a pressão negativa exercida pelos cavaleiros entre os demais segmentos da sociedade feudal. Contudo, até os finais do século XII, os torneios eram uma espécie de “réplica codificada” das guerras de verdade, o que levou a Igreja a manifestar-se contra a realização dessas atividades. Mas, houve aí um processo civilizador. Como explica um escritor do Antigo Regime, Montesquieu: “A idéia de paladinos protetores da virtude e da beleza das mulheres levou à noção de galanteria. Esse espírito perpetuou-se pela prática dos torneios, que, unindo ao mesmo tempo os direitos do valor e do amor, deram também à galanteria uma grande importância.” A Igreja se engajou na civilização dos costumes de homens cuja força física era inversamente proporcional ao conhecimento e à cultura.
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Como afirma Johan Huizinga, “o pensamento medieval não permitia formas ideais de nobreza independentes da religião. Por essa razão, a piedade e a virtude têm de ser a essência da vida do cavaleiro. A cavalaria, porém, nunca virá a realizar perfeitamente esta função ética. A sua origem terrena impede-a.”5 Tanto isso é um dado de realidade que a história da cavalaria, se é composta por idealismo e nobres princípios, inclui também muita força bruta e complexas maquinações políticas. Os confrontos entre o rei francês Filipe, o Belo, e a ordem dos Templários, demonstram a dureza desses conflitos, em que entrava em jogo algo mais do que profissões de fé. Em meio a uma crise aguda das finanças, o monarca quis apossar- se do patrimônio da Ordem. As diferenças entre o monarca e os Templários culminaram com a condenação de Jacques de Molay e demais eminências da ordem à fogueira, no início do ano de 1314.
Combate de cavaleiros no campo (1834) de Eugene Delacroix
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Felipe, o Belo (1268 – 1314), rei da França, tentou centralizar o poder da monarquia com um aparato burocrático. Por conta de uma aguda crise financeira no Estado, o monarca perseguiu a Ordem dos Templários, que concentrava um grande poder financeiro e político
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ODISSÉIA DO SACRIFÍCIO
O romance de cavalaria foi o primeiro gênero literário de alcance continental escrito nas línguas vernáculas emergentes. Mas foi além da Europa. No tempo das grandes navegações, romances cavaleirescos desembarcaram nas Américas. No século XVI, livros de cavalaria chegavam às Índias de Castela pelas mãos dos conquistadores espanhóis, conforme afirma Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, “É fora de dúvida que os romances de cavalaria constituíram a leitura dileta e a inspiração de muitos conquistadores espanhóis”. 6 E essa inspiração foi fonte alimentadora de nossa literatura romântica. Como o próprio Sérgio Buarque analisa, em outro livro, ao explicar o espírito empreendedor típico do colonizador português — pautado pela aventura e a intemperança —, a conversão de símbolos literários medievais europeus para uma adaptação nos trópicos marcou a vida intelectual no Brasil imperial. Em Raízes do Brasil o historiador aponta o esforço da produção literária em ajustar os costumes heróicos dos guerreiros da Idade Média à bravura natural dos aborígines: “(...) escritores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentarse, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde.”7
O romance de cavalaria foi o primeiro gênero literário de alcance continental escrito nas línguas vernáculas emergentes. Mas foi além da Europa. No tempo das grandes navegações, romances cavaleirescos desembarcaram nas Américas. No século XVI, livros de cavalaria chegavam às Índias de Castela pelas mãos dos conquistadores espanhóis, conforme afirma Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, “É fora de dúvida que os romances de cavalaria constituíram a leitura dileta e a inspiração de muitos conquistadores espanhóis”. 6 E essa inspiração foi fonte alimentadora de nossa literatura romântica. Como o próprio Sérgio Buarque analisa, em outro livro, ao explicar o espírito empreendedor típico do colonizador português — pautado pela aventura e a intemperança —, a conversão de símbolos literários medievais europeus para uma adaptação nos trópicos marcou a vida intelectual no Brasil imperial. Em Raízes do Brasil o historiador aponta o esforço da produção literária em ajustar os costumes heróicos dos guerreiros da Idade Média à bravura natural dos aborígines: “(...) escritores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentarse, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde.”7
Nos fins da Idade Média, o romance de cavalaria foi a prosa de ficção de maior sucesso de público, num tempo que viu nascer e frutificar gêneros literários variados. O historiador Edouard Perroy dá uma boa medida da riqueza da criação literária no período final da Idade Média francesa: “Espelhos de uma sociedade, o romance da cavalaria, o conto alegórico, a narrativa histórica ou o lirismo cortês se endereçam a uma aristocracia que permanece orgulhosa de seu passado”.8 Sem dúvida, o gênero agradava aos homens e às mulheres pelo conteúdo fantástico das façanhas de seus protagonistas, em meio a sociedades que cultivavam o herói guerreiro como figura máxima das virtudes cristãs e que, acima de tudo, era opositor e vencedor infalível de infiéis, de bandidos e de monstros.
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O romance de cavalaria agradava tanto homens quanto mulheres e emprestava valores para a aristocracia muito após o fim da Idade Média
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O paladino da história cavaleiresca é quase sempre uma espécie de Ulisses cristianizado, o justiceiro que vai salvar a sua amada e o seu povo das ações de usurpadores. Naturalmente, a ação militar exercia fascínio entre homens de costumes rústicos, e o conteúdo romântico da narrativa atingia em cheio ao coração das donzelas sonhadoras. Como demonstrou Huizinga, havia algo mais que força e ferocidade nessa literatura: “O cavaleiro e sua dama, ou, por outras palavras, o herói que serve por amor — é este o motivo primário e invariável de onde a fantasia erótica partirá sempre. É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de correr perigos, de ser forte, de sofrer e sangrar diante da amada.”9
TEMA E VARIAÇÕES
Em uma perspectiva abrangente do gênero, pode-se afirmar que os romances de cavalaria foram variações de um só enredo. Eles sempre realçavam as vitórias gloriosas do herói sobre os opressores dos desvalidos. Decorrido certo tempo da narrativa, ouve-se apenas o pranto dos inocentes oprimidos pelos sequazes de algum poderoso de péssima índole, até que o paladino toma ciência das injustiças cometidas. Daí em diante, é a escalada da mais pura energia virtuosa, um verdadeiro festival de punições dos agravos, uma torrente de força que restaura a ordem natural das coisas. Essa base de heroísmo é acrescida de uma complicada trama romanesca cheia de interditos e desencontros amorosos. Isso porque, na composição do romance cavaleiresco, não pode faltar uma intensa paixão, daquelas que removem montanhas.
Em uma perspectiva abrangente do gênero, pode-se afirmar que os romances de cavalaria foram variações de um só enredo. Eles sempre realçavam as vitórias gloriosas do herói sobre os opressores dos desvalidos. Decorrido certo tempo da narrativa, ouve-se apenas o pranto dos inocentes oprimidos pelos sequazes de algum poderoso de péssima índole, até que o paladino toma ciência das injustiças cometidas. Daí em diante, é a escalada da mais pura energia virtuosa, um verdadeiro festival de punições dos agravos, uma torrente de força que restaura a ordem natural das coisas. Essa base de heroísmo é acrescida de uma complicada trama romanesca cheia de interditos e desencontros amorosos. Isso porque, na composição do romance cavaleiresco, não pode faltar uma intensa paixão, daquelas que removem montanhas.
A presença de uma dama de excepcional beleza é um dos elementos vitais da estrutura do romance, e ainda mais na última fase dessa literatura, na qual se acentua a galanteria. À beleza superlativa da mulher é preciso acrescentar as virtudes do sexo frágil: fidelidade e pureza em primeiro plano. A fi- gura feminina era indispensável ao cavaleiro, porque só se realizavam verdadeiras façanhas se existisse o combustível da paixão por uma donzela. A única recompensa em jogo era a “resposta” que o cavaleiro receberia da dama de seus pensamentos. Mas, junto às experiências fantásticas, foi o erotismo o elemento que, na composição do romance, acrescentou os diferenciais que livraram o gênero da toada monocórdia das façanhas de armas dos cavaleiros. Por sua amada, os cavaleiros faziam promessas como, por exemplo, andar com um dos olhos vendados enquanto não conseguissem dar cabo de uma proeza; por ela deixa-se crescer a barba, à espera da realização de um feito de armas, etc.
As recorrências do fantástico e do maravilhoso — monstros, espíritos, gigantes — completam o tripé dos motivos dessa literatura, que não sabia distinguir o que era realidade efetiva e o que pertencia à criação ficcional: o real e o figurativo fundiam- se num mesmo conjunto de alegorias. Para Jacques Le Goff , “os romances do século XII são, de fato, “simbólicos”, no sentido de que os seus autores nos falam do “sem” (sentido) escondido dos seus poemas”10. A base de apoio do romance cortês é constituída por heroísmo, amor e aventura. Como afirmado acima, o gênero era um sucesso de público em toda a Europa, e mais ainda quando passou a ser escrito em prosa. Segundo Otto Maria Carpeaux, “a prosa, em vez do verso, facilita muito a tradução, torna possível a surpreendente divulgação internacional dos Romans courtois por todas as nações, em todas as literaturas, da Espanha à Islândia, da Inglaterra à Bulgária. (...) Romans courtois em verso e Romans courtois em prosa, juntos constituem a literatura internacional da época”11.
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PÚBLICO E O HERÓI MEDIEVAL
Mas qual era o público dessa literatura? O historiador holandês Johan Huizinga esclarece que eram escassos os círculos de leitores dos romances de cavalaria, uma vez que “O ideal da elegante vida heróica só podia ser cultivado dentro dos limites de uma casta fechada”12. Na avaliação de Jacques Le Goff , “o romance, obra escrita e destinada a ser lida, exclui deliberadamente o público misto que escutava as chansons de geste. Só as duas ordens maiores, chevalerie e clergie, são comensais do romance”13. Tratou-se, portanto, de um gênero destinado à fruição das elites, de uma literatura a ser desfrutada nos castelos e que, segundo a ironia de Voltaire, destinava-se a preencher o vazio da existência e a alimentar a imaginação de aristocratas ociosos em suas longas tardes de inverno. Foi a “imaginação criativa” nascida e impulsionada por essa literatura dos castelos o que propiciou, segundo o filósofo iluminista, a aparição dos tratados de demonologia e todo um cortejo abundante de fantasmagorias literárias, para a vergonha do gênero humano.
Mas qual era o público dessa literatura? O historiador holandês Johan Huizinga esclarece que eram escassos os círculos de leitores dos romances de cavalaria, uma vez que “O ideal da elegante vida heróica só podia ser cultivado dentro dos limites de uma casta fechada”12. Na avaliação de Jacques Le Goff , “o romance, obra escrita e destinada a ser lida, exclui deliberadamente o público misto que escutava as chansons de geste. Só as duas ordens maiores, chevalerie e clergie, são comensais do romance”13. Tratou-se, portanto, de um gênero destinado à fruição das elites, de uma literatura a ser desfrutada nos castelos e que, segundo a ironia de Voltaire, destinava-se a preencher o vazio da existência e a alimentar a imaginação de aristocratas ociosos em suas longas tardes de inverno. Foi a “imaginação criativa” nascida e impulsionada por essa literatura dos castelos o que propiciou, segundo o filósofo iluminista, a aparição dos tratados de demonologia e todo um cortejo abundante de fantasmagorias literárias, para a vergonha do gênero humano.
Tendo possuído uma longa existência histórica, o motivo central dessa literatura genuinamente cristã — já que, do ponto de vista de sua estrutura formal, não possuiu antecedentes clássicos como a tragédia, por exemplo — são as façanhas de algum indivíduo cuja têmpera excepcional o credencia a protagonizar ações inconcebíveis a um homem comum. Serão essas virtudes hipertrofiadas do herói da Idade Média o elemento central para o descrédito desse gênero de romance a partir dos inícios do século XVIII, com a aparição de um público leitor interessado em tramas mais próximas das dimensões existenciais da vida.
Antes de concluir estas notas exploratórias, é preciso afirmar que o romance de cavalaria foi um gênero sincrético e cada livro era uma obra aberta que podia reunir, de modo orgânico, alguns traços do ideal aventureiro da antiga epopéia clássica, o sentimentalismo trovadoresco das canções de gesta, certos traços mundanos da literatura picaresca, bem como diversas dimensões de outras formas literárias. O romance cavaleiresco fundia ainda elementos sagrados e profanos: guerras, milagres, virtudes cristãs, amor e aventuras eram os principais ingredientes do gênero. Mas, para além dos motivos explorados pela imaginação, os romances de cavalaria possuíram outros sentidos e outras aplicações. Lucien Febvre explica a importância cultural e a função social dessa literatura: “Os romances de cavalaria não tratam única e exclusivamente do amor. Não tratam única e exclusivamente do casamento. Tratam de problemas tão graves na ordem política e nacional (...). Tratam da honra, e do ponto de honra. Elaboram e espalham uma moral da honra que é individualista em sua essência, e egotista” 14.
Após perderem a relevância militar, no fim da Idade Média, os cavaleiros tornaram-se defasados também como figura ideal. Dom Quixote assinalou o começo do fim de um ideal que, mesmo séculos depois, ainda não morreu por completo
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VIDA LONGA, QUEDA INFINITA
Os romances de cavalaria tiveram vida longa e atravessaram, como tradição literária vigorosa, quatro séculos de história. A partir dos séculos XV e XVI, a emergência das monarquias européias foi uma influência negativa para a vitalidade dessa literatura, simplesmente porque essas novas formas políticas tornaram anacrônicas algumas das funções sociais da cavalaria, principalmente o seu valor militar. Como afirma Ian Watt, “As cruzadas haviam terminado; e as novas técnicas militares, as novas armas e as novas formas organizacionais estavam transformando o cavaleiro coberto de ferro em uma relíquia do passado”15. Como também demonstrou Norbert Elias, a cavalaria não correspondia mais às necessidades da guerra. Com a nova relevância assumida pela infantaria nos campos de batalha, os outrora “desprezados soldados a pé”, chega ao seu termo o “monopólio de armas” da cavalaria medieval16.
Os romances de cavalaria tiveram vida longa e atravessaram, como tradição literária vigorosa, quatro séculos de história. A partir dos séculos XV e XVI, a emergência das monarquias européias foi uma influência negativa para a vitalidade dessa literatura, simplesmente porque essas novas formas políticas tornaram anacrônicas algumas das funções sociais da cavalaria, principalmente o seu valor militar. Como afirma Ian Watt, “As cruzadas haviam terminado; e as novas técnicas militares, as novas armas e as novas formas organizacionais estavam transformando o cavaleiro coberto de ferro em uma relíquia do passado”15. Como também demonstrou Norbert Elias, a cavalaria não correspondia mais às necessidades da guerra. Com a nova relevância assumida pela infantaria nos campos de batalha, os outrora “desprezados soldados a pé”, chega ao seu termo o “monopólio de armas” da cavalaria medieval16.
A esses romances coube celebrar os triunfos de uma época que, dramaticamente, encerrou-se com Dom Quixote. Há quem pense que a idealização da vida dos cavaleiros na época do feudalismo já era, naquele tempo, um claro reflexo do decadentismo político dos barões feudais. Aos romances teria restado a tarefa de lustrar o prestígio perdido.
Já em altura bem avançada da história, a nostalgia dos tempos idos ainda contagiava a aristocracia francesa do século XIX. Há muito encerrada a época das grandes aventuras dos cavaleiros, o romantismo ofereceu uma oportunidade para acalentarem-se as glórias dos nobres tempos de outrora. Sob esse aspecto, o testemunho literário de Stendhal, atento observador dos costumes de sua época, é uma fonte preciosa. Em O vermelho e o negro observa-se Julien Sorel — o pobre aldeão boa-pinta, promovido a secretário do influente Marquês de La Mole — zombar de aristocratas passadistas que se jactavam de possuir antepassados que acompanharam São Luís nas Cruzadas
REFERÊNCIAS
1 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 152.
2 Cf. PERROY, E. “A nova primavera da Europa: séculos XI-XII”. In: ——. A Idade Média. São Paulo: Difel, 1974. p. 13s.
3 DUBY, G. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques LE GOFF & Pierre
NORA. (Org.). ——.História: novos problemas. In: LE GOFF, J. & NORA, N. (Org.). —— .História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998. p. 142.
4 BLOCH, M. “Le code chevaleresque”. In: ——. La société féodale. Paris: Albin Michel, 1968. p. 443.
5 HUIZINGA, J. “A idéia da cavalaria”. In: ——. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/Edusp, 1978. p. 65.
6 HOLANDA, S.B. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 33.
7 HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 56.
8 PERROY, E. “Les transformations de la société chevaleresque”. In: ——. Histoire de la France. Paris: Gallimard, 1950. p. 148.
9 HUIZINGA, J. “O sonho do heroísmo e do amor”. In: ——. Op. cit., p. 74.
10 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 129.
11 CARPEAUX, O.M. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959. p. 298.
12 HUIZINGA, J. “O valor político e militar das idéias da cavalaria”. In: ——. Op. cit., p. 89.
13 LE GOFF, J. “Esboço de análise de um romance cortês”. In: ——. Op. cit., p. 148.
14 FEBVRE, L. Michelet e a Renascença. São Paulo: Scritta, 1995. p. 421.
15 WATT, I. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 68.
16 Cf. ELIAS, N. O processo civlizador: formação do Estado moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. Vol. 2. p. 21.
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