quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Te Contei, não ? - Polêmica das biografias relembra rusgas e reconciliações da história da MPB

 

  • Além de Caetano e Roberto Carlos, muitos outros artistas acumulam tapas e beijos
André Miranda, Leonardo Lichote e Silvio Essinger
 
 
Os desentendimentos são quase tão antigos quanto a música brasileira Foto: Divulgação
Os desentendimentos são quase tão antigos quanto a música brasileira Divulgação
RIO - Nos anos 1960, Caetano Veloso foi um dos primeiros a defender Roberto Carlos quando quase toda a MPB criticava a Jovem Guarda, inclusive com uma passeata contra a guitarra elétrica puxada por Elis Regina e da qual Gilberto Gil participou. Já mais para a frente, na década de 1980, o cantor baiano rebateu publicamente o Rei, quando este parabenizou o então presidente José Sarney pela censura a “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Godard. Na ocasião, Caetano escreveu sobre “a burrice de Roberto” e ainda convocou as pessoas a “manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam”.
Além dos dois astros, que voltaram a se desentender agora por causa da polêmica das biografias, muitos outros artistas da MPB acumulam tapas e beijos, rusgas e reconciliações e muito disse me disse que serviram para alimentar a imprensa e despertar a curiosidade dos fãs. Os desentendimentos são quase tão antigos quanto a música brasileira, do tempo em que Noel Rosa escreveu, em 1933, “Rapaz folgado” em alusão a Wilson Batista, que rebateu no ano seguinte com “Mocinho da Vila”, dando início à famosa polêmica entre os dois sambistas. E, sem preconceito de gênero, já envolveram nomes como Chico Buarque, Elis Regina, Lulu Santos, Paulinho da Viola, Lobão e vários outros ídolos.
— Há algumas décadas, essas brigas eram bem comuns. O Moreira da Silva, certa vez, disse que o Milton Nascimento tinha que voltar para a lavoura. A Maysa chamou a Elis de mau caráter. E o Pixinguinha deu uma entrevista em que criticava um monte de gente, incluindo Chico Buarque, Martinho da Vila e Jorge Ben — conta Paulo Cesar de Araújo, autor de “Eu não sou cachorro, não” (editora Record) e da biografia “Roberto Carlos em detalhes” (Planeta), proibida na Justiça pelo Rei. — Antigamente, eles falavam o que pensavam e até escreviam músicas sobre os outros, mas nem sempre havia rompimentos. No dia seguinte, eles podiam aparecer tomando uísque juntos. Hoje, por causa da necessidade de ser politicamente correto, as brigas são mais raras. E, quando acontecem, ganham uma dimensão muito grande.
MPB x Jovem Guarda
Os mesmos integrantes da associação Procure Saber que hoje estão no centro da mais nova desavença da MPB já foram responsáveis por disputas históricas. Nesta semana, o grupo, formado por Caetano, Gil e Chico, entre outros, viu Roberto Carlos anunciar seu desligamento da associação, dias após Caetano criticar o Rei em sua coluna no GLOBO por sua postura no debate sobre as biografias não autorizadas — o baiano escreveu: “RC só apareceu agora, quando da mudança de tom. Apanhamos muito da mídia e das redes, ele vem de Rei”.
No fim dos anos 1960, quando Roberto Carlos e a geração da Jovem Guarda já eram queridos pelo público, a MPB tradicional em peso se manifestou contrária ao que considerava uma “americanização” da música brasileira. Em 17 de julho de 1967, aconteceu em São Paulo uma passeata contra a guitarra elétrica, com Elis Regina à frente, puxando um coro formado por Jair Rodrigues, Zé Kéti, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Gil — sim, o mesmo Gil que meses depois assumiria a força da guitarra com sua “Domingo no parque”.
Foram Silvinha Telles, Maria Bethânia e Caetano que perceberam o valor das canções de Roberto.
— A Jovem Guarda era vista como um movimento menor e comercial. Num dos programas da “Frente única da música popular brasileira”, Caetano convenceu Maria Bethânia a se apresentar de minissaia cantando “Querem acabar comigo” (de Roberto). Mas o plano foi descoberto e, depois de ouvir apelos acalorados de Geraldo Vandré, Caetano desistiu da ideia — conta Renato Terra, um dos diretores de “Uma noite em 67” (2010), sobre o mais famoso Festival da Música Popular Brasileira, apresentado na TV Record.
Foi, aliás, a partir desse festival que Caetano, Gil e os demais tropicalistas se afastaram de Chico, na época considerado o “namoradinho do Brasil”. O próprio Caetano escreveu sobre o episódio, em seu livro “Verdade tropical” (Companhia das Letras): “Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes. Quando gravei, em 69, a ‘Carolina’ num tom estranhável, eu claramente queria, entre outras coisas, relativizar a obra de Chico”.
No início da década de 1970, Gil e Caetano estavam exilados, e a Tropicália tinha chegado ao fim. Mas não as polêmicas. O álbum “Transa”, gravado em 1972 em Londres, foi o estopim de outra desavença. Feito por Caetano ao lado de Jards Macalé, Aureo de Souza, Tutty Moreno e Moacir Albuquerque, o disco foi lançado sem nenhum crédito aos músicos. Caetano explicou que a omissão fora feita à sua revelia, mas isso não foi suficiente para que Macalé parasse de atacar o colega por isso. Mais tarde, eles se reaproximaram — a última edição do disco, lançada no ano passado, traz todos os músicos creditados.
O mesmo Macalé chamou Gal Costa de “burrinha” em 2001, por ela ter saído em defesa do político baiano Antonio Carlos Magalhães. Cinco anos depois, numa entrevista, ele lamentou a ofensa.
Se algumas rusgas se estenderam por anos, outras foram resolvidas em minutos — mas nem por isso foram menos intensas. O produtor Marco Mazzola, testemunha por décadas dos bastidores da MPB, lembra um desses episódios:
— O desentendimento mais marcante que presenciei foi de Elis Regina e Hermeto Pascoal, no Festival de Montreux (em 1979). Havia uma tensão porque um não queria se apresentar antes do outro. Eu, que não sabia dessa tensão, sugeri que eles fizessem algo juntos. Aí o que aconteceu? Elis detestava “Garota de Ipanema”. Hermeto sabia e, com Elis no palco, começou a tocar a canção. Ela teve que cantar. Ele mudava a harmonia, dando notas dissonantes para ver se ela caía. No fim, vitoriosa, Elis deu uma porrada no piano.
A cantora também teve problemas com Tom Jobim, durante a gravação do célebre álbum “Elis & Tom”, de 1974. Ela chegou a dizer a Roberto Menescal que o maestro era “um chato”.
Mesmo relações que sintetizam a ideia de amizade não estiveram imunes a sacudidas. Em 1966, Roberto e Erasmo Carlos romperam a amizade por um ano. O motivo: Erasmo foi a um programa de TV receber um prêmio como compositor e não mencionou o parceiro. O esquecimento gerou mágoa e afastamento. O Rei depois faria o movimento de se reaproximar, enviando uma fita com uma melodia e pedindo que Erasmo criasse a letra — a canção, “Eu sou terrível”, se tornaria outro sucesso da dupla.
Réveillon opôs Paulinho e Gil
Outra parceria histórica que também passou por um tremor igualmente histórico foi a formada por João Bosco e Aldir Blanc. Após enfileirarem clássicos da MPB, eles romperam em 1985 sem nunca terem explicado os motivos. Voltaram a se aproximar apenas 20 anos depois. Na época das pazes, Aldir explicou que não houve briga (“Ocorreu que nossos telefonemas semanais se tornaram mensais e depois anuais”).
Talvez o episódio mais marcante — por envolver os maiores medalhões da MPB — tenha sido o réveillon de 1996, em tributo a Tom Jobim, com a participação de Paulinho da Viola, Caetano, Chico, Gal, Gil e Milton Nascimento. O desentendimento começou quando Paulinho descobriu que todos os seus colegas receberam R$ 100 mil de cachê, enquanto ele levou R$ 35 mil. A discussão sobre a condução dos contratos incluiu um fax falsificado por Lila Rabello, mulher e empresária do sambista. Gil e Paulinho romperam, os outros se solidarizaram com o baiano, e Paulinho chegou a dizer: “Gil, com sua conhecida verbosidade, fez numerosas declarações despropositadas a meu respeito.”
A geração rock dos anos 1980 também teve suas polêmicas. Lobão (conhecida metralhadora giratória) passou anos acusando Herbert Vianna de plagiá-lo, dando como exemplo sua “Me chama” e a “Me liga” do paralama.
Outro representante daquela turma, Lulu Santos também teve seu momento de jogar tudo no ventilador no começo da década seguinte. Em 1992, a poucos dias do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, ele bradou em rede nacional, no “Domingão do Faustão”: “A música sertaneja foi a trilha sonora dessa malfadada administração. Eu gostaria que uma fosse embora junto com a outra”. Com o tempo e um tanto de panos quentes, a ferida cicatrizou. Lulu participou de DVDs de Chitãzinho e Xororó e de Sandy e Junior (filhos de Xororó). E, desde o ano passado, ele está no júri do programa “The Voice” ao lado do cantor Daniel.
As desavenças entre músicos brasileiros chegariam, nos anos 1990, ao seio do mangue beat, quando Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S/A, expressou suas reservas em relação a Alceu Valença, que duas décadas antes levara a cabo fusões da música tradicional pernambucana com o rock. “Nego fala: ‘pô! O mangue beat deve tudo a Alceu Valença’ e eu fico puto, como se Alceu tivesse ido mais fundo nisso na época. Antes de Alceu teve Jackson do Pandeiro, teve Luiz Gonzaga!”, alegou Fred.
Outro expoente do mangue, Chico Science não chegou a bater de frente com Alceu. Mas sua morte, em 1997, deflagrou outra cizânia. Poucos dias antes, Carlinhos Brown havia falado da influência que os blocos afro de Salvador tinham exercido sobre a música do mangue. O comentário não foi lá muito bem aceito pelos músicos da Nação Zumbi, banda de Chico. No enterro, eles cuidaram de destruir a coroa de flores enviada por Brown.
Em 2004, numa entrevista, Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante disseram que vendiam música — não atitude — e que jamais fariam anúncio de refrigerante. Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr., que na época estrelava uma propaganda do tipo, vestiu a carapuça. Ao encontrar Camelo num avião, Chorão bateu boca com o músico e, ao pousar, deu-lhe uma cabeçada.
Algumas dessas questões nunca foram resolvidas, diferentemente do embate entre Roberto e Caetano nos anos 1980. Anos após o episódio de “Je vou salue...”, Caetano gravou “Debaixo dos caracóis de seus cabelos”, revelando que a canção lançada por Roberto nos anos 1970 fora feita em sua homenagem. Vem aí uma nova reconciliação?


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/polemica-das-biografias-relembra-rusgas-reconciliacoes-da-historia-da-mpb-10737675#ixzz2oaDidhBj

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