O escritor italiano lança novo livro no qual mostra como lugares imaginários, a exemplo de Atlântida e Shangri-lá, passaram a povoar a cultura universal e a visão do homem sobre eles através dos tempos
Ana Weiss
Conhecido por best-sellers como “O Nome da Rosa” e por ensaios eruditos do porte do clássico “A Obra Aberta”, o filósofo, escritor e semiólogo italiano Umberto Eco, 81 anos, emerge de mais um de seus mergulhos históricos com um livro que desperta a imaginação já no título. “A História das Terras e Lugares Lendários” (Record), que está sendo lançado no mundo inteiro ao mesmo tempo, segue a estrutura dos três títulos anteriores da coleção que inclui “A História da Beleza”, “A História da Feiúra” e “Vertigem das Listas”. Traz, porém, um desafio a mais à capacidade de abstração do leitor. Os lugares do título, como Paraíso, Shangri-lá ou Eldorado, não são geográficos. Mas também não são lugares apenas imaginários. São locais que não existem de verdade, mas que, nas palavras do autor, poderiam perfeitamente ter existido em algum tempo remoto, e permanecem eternos e verdadeiros graças ao fato de ninguém ter conseguido comprovar nem contestar sua existência o suficiente.
Esse é o exercício proposto pelo filósofo, apoiado em reproduções de obras de arte, mapas ilustrativos de narrativas (passadas em épocas às vezes bastante longínquas entre si), ao descrever locais como Atlântida ou o Interior da Terra, evidenciando a rede de crenças criada a partir delas. Crenças que só se fortalecem com o tempo, alimentando-se até da negação da sua existência. Entre os primeiros lugares imaginários que Eco estuda está o nosso próprio planeta, cujos limites desconhecidos pelos europeus no passado fizeram nascer o mito da Terra Plana. Se não é o mais importante, o italiano é certamente o conhecedor de história medieval que melhor traduziu as entranhas do período escuro para os dias atuais. Assim, na parte inicial do livro ele mostra como a crença do mundo achatado revive cada vez que se apresenta o homem medieval, com sua “visão plana” do universo.
HORIZONTE PERDIDO
“Ulisses e Calipso”, de Jan Brueghel, o Velho (acima);
“Eneas Desce no Averno”, de Niccolo dell’Abate (abaixo); e ilustração
do livro “20 Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, representando
Atlântida: lugares lendários estudados no livro com cerca de 300 ilustrações
“Ulisses e Calipso”, de Jan Brueghel, o Velho (acima);
“Eneas Desce no Averno”, de Niccolo dell’Abate (abaixo); e ilustração
do livro “20 Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, representando
Atlântida: lugares lendários estudados no livro com cerca de 300 ilustrações
Eco corrige essa distorção, mostrando que entre os pré-socráticos (ou seja, antes de começar a Idade Média) já havia referências à curvatura da Terra e que isso nem se colocou como questão naquele momento da vida na Europa, atrasando as missões ultramarinas. “Malgrado muitas lendas que ainda circulam na internet, todos os estudiosos da Idade Média sabiam que a Terra era uma esfera”, escreve o autor de “O Pêndulo de Foucault”. “O pensamento laico oitocentista, irritado com a oposição de várias confissões religiosas à Teoria Evolucionista, atribuiu a todo pensamento cristão a ideia de que a Terra era plana. Tratava-se de demonstrar que assim como estavam enganadas sobre a esfericidade da Terra as igrejas também podiam estar equivocadas sobre a origem das espécies.”
Entre as lendas mais repletas de versões, e por isso provavelmente a mais conhecida do livro (perdendo talvez para o Paraíso cristão), Atlântida tem menções e leituras desde Heródoto, do século V a.C., até Edgar Alan Poe (autor do belíssimo “The City in The Sea”, de 1849). Passando, claro, por Júlio Verne e autores mais afeitos ao ocultismo, mas não menos ricos em suas reconstruções, como William Blake e Madame Blavatsky. “Naturalmente a convicção de que existiu de fato um continente desaparecido e de que os vestígios são difíceis de encontrar porque ele afundou no mar só fez reforçar a lenda”, escreve o semiólogo. Ele próprio considera plausível o raciocínio da existência da ilha povoada por seres de cultura civilizatória mais elevada. “A hipótese de que existem em nosso planeta terras que emergiram e depois desapareceram nada tem de estapafúrdia. (...) Hoje considera-se que, há 225 milhões de anos, o conjunto das terras emersas constituía um único continente, a Pangeia, que depois (cerca de 200 milhões de anos atrás) começou a se dividir e lentamente deu origem aos continentes que conhecemos hoje.” A conclusão de Eco é que muitas Atlântidas poderiam ter aparecido e desaparecido.
Voltando à lenda, como o autor faz sempre questão de lembrar ao abordar terras que em nada perdem em fantasia em relação a Hogwarts, por exemplo, o impressionante é o alcance dessas hipóteses. Elas são mais familiares às pessoas do que boa parte das ilhas reconhecidas pela geologia e verificáveis pelo Google Earth. Para Umberto Eco, nascido numa cidade cercada de lendas – Alexandria –, a ficção oferece um tipo de realidade do qual nem a realidade concreta é capaz. “O mundo da narrativa é o único universo onde podemos estar absolutamente seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de Verdade.”
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