quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Crônica do Dia - Dória

Fernanda Torres
 
      
 

Jorge Dória desvirtuou o meu pai. Foi ele que o arrancou da faculdade de medicina e lhe apresentou o teatro, a noite e a boemia. Quando meus pais se casaram, em 1953, Fernando partiu em turnê com a companhia de Eva Todor e Fernanda ficou no Rio. A saudade o fazia datilografar compulsivamente em uma máquina de escrever, o que lhe valeu o apelido de Taradinho Underwood, dado por Dória.
Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues, Sérgio Britto, Bárbara Heliodora. São pessoas com quem convivo e convivi por osmose. Tenho por eles um apreço que atravessa os seus feitos como artistas, são parentes, são de casa.
A grandeza do Dória é intraduzível. Era um louco devasso, tio, amigo fiel e companheiro. Jamais me esqueci da sua descrição da visão de Iris Bruzzi, então sua mulher, montada em um trator no sítio deles. As coxas na engrenagem, a loura ideal, a mulher da terra. A suculência era tamanha que o instante ficou marcado em mim como se eu o tivesse presenciado.
Já atriz, trabalhamos juntos na TV. Esperávamos para gravar um take dentro de um carro; uma atriz que havia sido um fenômeno de beleza atravessava a rua à nossa frente. Dória esperou que ela ensaiasse uma, duas vezes, até que, na falta de um amigo homem, soltou:
— Essa foi uma que embruacou.
Continuamos mudos após o comentário. Eu, de certa forma, orgulhosa pelo fato de o amigo mítico dos meus pais segredar uma cafajestice tão sem cerimônia para mim.
Mas era em cena que a insanidade de Jorge Dória reinava absoluta.
Em Escola de Mulheres, vi-o aproximar-se do proscênio e dizer:
— Ali é a minha casa — enquanto apontava solenemente para o fundo da plateia, indicando o local.
Em vez de dar continuidade ao solilóquio, Dória encarou uma senhora na primeira fila e, após longa pausa, atacou:
— Não, minha senhora, ali não é a minha casa. Isso é teatro. Quando eu indico o fundo, não quer dizer que a minha casa esteja lá. Não precisa se virar, é para a senhora imaginar que a minha casa talvez esteja lá.
Usando a espectadora de escada, Dória avançou num improviso bestial. A peça parou por bons cinco minutospara discutir a questão do ser ou não ser, do existir,ou não, a suposta casa.
O leão gostava de deixar Molière à espera.
Em A Presidenta, vestido de tailleur à moda Dilma, Dória se queixava das atribulações do cargo. De repente, sem avisar, começava a dar detalhes de suas lavagens íntimas matinais no bidê. Dizia que gostava de colocar as partes ao sol, falava dos benefícios da prática. Aos poucos, ia levando o público a um estado de gozo contínuo.
Domingos de Oliveira, que o dirigiu na peça de Molière, contou-me que Dória ambicionava não o riso, mas o frouxo. Ondas de deleite contínuo. A submissão completa da massa.
Celso Nunes mandou uma carta a minha mãe lamentando a morte do ídolo. Nela, lembrava um encontro que tiveram para convidar Jorge a fazer parte do inesquecível Seria Cômico Se Não Fosse Sério. O gênio preparou uma blague, disse que tinha vindo para o teste e tirou de dentro de uma mala diversos bigodes, barbas e perucas. Diante de meus genitores e do diretor de vanguarda, pasmo, elencou as n possibilidades do personagem, trocando de cabelo a cada nova investida.
Dória era Vittorio Gassman, Procópio Ferreira, Walter Matthau e Ugo Tognazzi juntos.
Não tinha, e não tem, para ninguém.

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