Manoel Carlos
Revista Veja Rio
Fim de tarde, primavera em curso, tempo abafado, chuvinha fina me lembrando São Paulo na época em que a cidade era conhecida, muito apropriadamente, como terra da garoa.
Era um gesto delicado da natureza aquele vapor que gotejava, persistente, e aqui no Rio levava o nome de orvalho.
Lembro Noel Rosa. E o Raul cantarolou desafinado:
“O orvalho vem caindo / vai molhar o meu chapéu /E também vão sumindo / as estrelas lá no céu”.
Tarde boa para uma taça de vinho e um queijinho honesto no Café Severino. Sobre a mesa, um jornal anunciava que Roberto Carlos não estava mais ligado ao grupo denominado Procure Saber, que é contra as biografias não autorizadas. E seguiu-se então, por inspiração da notícia do jornal, uma série de apartes sobre o assunto:
— O que eu acho dessa história toda das biografias, sejam elas autorizadas ou não, é que os herdeiros criam mais empecilhos do que os biografados.
— Isso se o biografado tiver morrido. Mas, quando se biografa uma pessoa viva, esta é que protesta. É o caso do Roberto.
— E do Caetano, do Gil, do Erasmo e de todos os outros.
— Pensei que os atores e atrizes fossem entrar também com uma representação, colocando-se ao lado dos artistas da música popular. Os de televisão, pelo menos.
— Mas esses — quase todos — já se expõem tanto em jornais e revistas!
— E gostam da exposição!
— E no Instagram então?
— Principalmente no Instagram.
— Com fotos. Algumas íntimas.
— Acho que nenhum deles tem mais o que ocultar da curiosidade popular. Suas vidas são portas e janelas abertas. Quem estiver passando pode entrar ou no mínimo dar uma espiada para dentro.
— Acabou-se a vida privada.
— Nesse caso, eles mesmos acabaram com essa privacidade.
E esse assunto ocupou todo o fim de tarde, uns a favor, outros contra e dois ou três indiferentes.
Durante o tempo em que ouvi esses pequenos comentários e quase não falei, alguns versos de Fernando Pessoa não me saíam da cabeça, sem que eu conseguisse identificá-los corretamente.
Cheguei em casa, fui à procura dos versos, que logo localizei. Pertencem aos poemas inconjuntos de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa. Independentemente da oportunidade do tema, o poema é uma obra-prima, como tudo o que Fernando Pessoa deixou. Leiam e guardem.
Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. / Tem só duas datas: a da minha nascença e a da minha morte. / Entre uma e outra coisa todos os dias são meus. / Sou fácil de definir. / Vi como um danado. / Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma. / Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. / Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver. / Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras. / Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. / Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. / Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. / Fechei os olhos e dormi. / Além disso, fui o único poeta da Natureza.
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