Dorrit Harazim, O Globo
Desde o anúncio da morte de Nelson Mandela na noite de quinta-feira, os
canais de TV do mundo inteiro passaram a exibir, sem medo da repetição, o
momento mais icônico da trajetória do líder negro: seus primeiros passos como
homem livre, em 11 fevereiro de 1990, depois de 27 anos encarcerado. Não foram
passos de um homem alforriado, mas de um vencedor e vitorioso moral.
De um ponto de vista mais terreno e sem a grandiloquência que a viagem da
Apollo 11 à Lua permitia, aqueles passos de Mandela também foram um salto e
tanto para a Humanidade. Mereceram ser revistos à exaustão.
Foi pouco lembrado, no entanto, um insólito e revelador episódio ocorrido
poucas horas antes daquele domingo ensolarado de fevereiro.
Era o início da noite da véspera quando Mandela foi retirado de sua cela da
prisão Victor Verster, última das penitenciárias onde passara quase três décadas
de sua vida, a pedido do presidente Frederik W. de Klerk, que o aguardava para
um encontro sigiloso.
Eleito um ano antes e destinado a ser o dirigente branco a desmantelar o
regime segregacionista do apartheid, o africâner De Klerk havia anunciado ao
mundo, na semana anterior, que Mandela seria libertado. Apenas não mencionara a
data.
Na noite daquele sábado convocara o preso para lhe comunicar de viva voz a
data em que os portões se abririam para ele: no dia seguinte.
Mandela foi pego de surpresa. Embora viesse tendo reuniões secretas há cinco
anos com o ministro da Justiça Kobie Coetsee e desejasse respirar liberdade o
mais depressa possível, considerou imprudente fazê-lo com aviso prévio tão
curto.
Conforme relatou em sua autobiografia, era a primeira vez que via De Klerk.
Começou por agradecer ao presidente de seu país. Depois, apesar do risco de
parecer ingrato, respondeu que preferiria aguardar uma semana. Ponderou que sua
família, seu partido, o African National Congress, e a nação deveriam poder se
preparar.
Perplexo também ficou De Klerk, que se retirou da sala para consultar seus
assessores. Ao retornar, comunicou a Mandela que o prazo era inegociável.
Um pouco como um hóspede que vai ficando incômodo, o prisioneiro foi
informado de que no dia seguinte seria um cidadão livre, querendo ou não.
A última vez que Mandela fora visto em público, no tribunal que o condenara à
prisão perpétua por sabotagem e terrorismo em 1964, ele tinha 44. Agora estava
com 71.
Além do desterro físico por quase três décadas, o regime banira sua imagem,
proibindo o comércio e a divulgação de fotos suas no país.
Também jamais foi permitido que o retratassem na prisão, para não aumentar a
áurea de mártir — embora essa invisibilidade forçada apenas aumentasse seu
status mítico.
A foto mais recente que o mundo conhecia de Mandela datava dos anos 1960 e o
mostrava ainda com chassis de boxeador amador, bigode e cabeleira negra
repartida na lateral.
O repórter Greg Myre, da agência noticiosa Associated Press e hoje jornalista
da National Public Radio, contou que na véspera da libertação de Mandela o
governo da África do Sul decidiu fornecer à imprensa o primeiro retrato
atualizado do líder negro. Ele recorda seu espanto ao ver pela primeira vez a
imagem daquela figura grisalha de olhar sereno e porte majestoso.
Myre não foi o único. Mandela soube impactar do carcereiro africâner com quem
tomou um copo de uísque no último dia de cativeiro ao próprio De Klerk, em quem
causou uma primeira impressão indelével. Ambos diriam mais tarde que ele tinha
porte de estadista.
Se viver, como já disse alguém, mereceria ser reconhecido como uma das formas
supremas de arte, Nelson Mandela dela foi mestre.
A escritora sul-africana Nadine Gordimer assim definiu o conterrâneo: “Ele
tinha respeito por si mesmo. Só pode dar-se a esse luxo a pessoa que sabe quem é
e o que fez da vida. Mandela sabia.”
Ele foi o estadista do seu século. Aprendeu a tratar inimigos como
adversários, na vida não trocou o humor pelo sarcasmo nem a integridade pela
hipocrisia.
Tampouco trocou hábitos que em qualquer outra pessoa seriam puro
exibicionismo. Qual outro hóspede do Palácio de Buckingham arrumaria a própria
cama, como se fosse a coisa mais natural do mundo?
Duas semanas atrás o mundo inteiro rememorou o cinquentenário da dramática
morte do presidente americano John F. Kennedy. Na ocasião, foram mais uma vez
dissecados o impacto mundial e legado histórico de seu governo, visando a
separar o mito JFK, e sobretudo a pessoa, de sua estatura como presidente.
No caso de Nelson Mandela não há o que separar: o ser humano e o estadista
foram um só, um espelhou o outro.
Dorrit Harazim é jornalista.
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