segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Entrevista - Luiz Carlos Santos

Luta contra a opressão
 
Militante do movimento negro, Luiz Carlos Santos fala sobre a trajetória de Luiz Gama, um dos símbolos da luta abolicionista

Por Priscila Gorzoni*


SCieLo
Autor de O Negro em Versos – Antologia da poesia negra brasileira, o sociólogo Luiz Carlos Santos é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, militante do movimento negro, integrante da diretoria da Sociedade Brasileira de Intercâmbio Brasil África (Sinba), além de coordenador do Núcleo de Consciência Negra na USP. Professor de História do Museu Afro Brasil, tem ministrado palestras sobre as Leis nº 10.639 e nº 11.645, que estabeleceram o ingresso das disciplinas de História da África e da Cultura Afro-Brasileira e Indígena na grade curricular das escolas brasileiras.
Este vasto currículo já situaria Luiz Carlos Santos entre as maiores autoridades em cultura afro-brasileira, mas o professor e pesquisador lançou pelo Selo Negro Edições o livro Luiz Gama (Col. Retratos do Brasil Negro), um perfil biográfico de uma figura decisiva na luta contra a escravidão. É para falar sobre esse livro e sobre o movimento abolicionista em geral, que Santos é o entrevistado desta edição da Leituras da História.
Considerado um dos maiores abolicionistas do Brasil, Luiz Gonzaga Pinto da Gama tornou-se o arauto da libertação dos negros e da luta contra a opressão. Advogado, jornalista, poeta, membro da Maçonaria e fundador do Partido Republicano Paulista, Gama morreu em 1882, tendo libertado, nos tribunais, mais de 500 negros. No livro Luiz Gama, o professor Luiz Carlos Santos revela a trajetória de uma das personalidades mais importantes do século 19 no Brasil imperial e escravista, destacando sua atuação pioneira como abolicionista e intelectual. “Trata-se de uma biografia singular que articula luta com inteligência”, revela o autor. Para ele, Gama foi o pai da negritude brasileira e manteve firme o princípio que norteou toda sua vida.
A biografia traça o perfil de um jovem negro, autodidata, profundo conhecedor das letras e das leis, radical na luta pela liberdade e pelos ideais republicanos, em um império escravocrata. Incansável agitador das causas negras, Gama foi perseguido e ameaçado de morte. Para o autor, seu espírito de superação fortaleceu a atuação abolicionista. “Sua vida é uma forte referência para a nossa história e permite uma releitura da história do Brasil”, complementa. E deverá ser, diz ele, uma das grandes contribuições à luta pela equidade.
Dividido em três capítulos e um anexo, o livro aborda a vida do abolicionista desde a infância, passando pela escravidão e a luta pela liberdade, que adotou como projeto de vida, com atuação intensa nos tribunais, na imprensa, na literatura e na política. A biografia mostra o menino negro que nasceu livre, em Salvador, na Bahia, foi vendido como escravo aos dez anos pelo próprio pai e na juventude aprendeu a ler e tomou ciência de sua condição de homem livre. “A vida de Gama sugere, sem dúvida, um filme de enredo original e capaz de romper os paradigmas do cinema nacional da favela trágica”, afirma o autor.
Para redesenhar o perfil de Luiz Gama, o professor percorreu caminhos sutis e cheios de atalhos. Negro alfabetizado aos 17 anos e livre aos 18, por conquista própria, Gama transformou-se em um símbolo da luta abolicionista e republicana. Resultado de extensa pesquisa, incluindo a carta autobiográfica escrita para o amigo Lucio de Mendonça, que tem sido objeto de estudo e interpretações diversas; a obra mostra que Gama também fez da literatura espaço de militância.
Gama foi um dos maiores articuladores políticos que o Império conheceu. A biografia aborda seus grandes feitos na luta pelo fim da escravatura, destacando sua atuação, em São Paulo, como advogado, na libertação dos negros; suas denúncias, na imprensa, dos acordos para a manutenção do trabalho escravo; e seus poemas ácidos, que satirizavam e, ao mesmo tempo, expunham as mazelas do poder imperial e dos senhores de escravos.
Enxergando além de seu tempo, Gama não separou o social do racial e combateu tanto a escravidão quanto a monarquia. A obra mostra que ele vislumbrou na República o nascimento da igualdade e da liberdade numa perspectiva cidadã. “Pensando assim, participou dos setores mais progressistas de sua época”, complementa Santos.
Leituras da História (LDH) – De onde nasceu a ideia de escrever sobre Luiz Gama? Por que escolheu Luiz Gama entre as outras personalidades negras?
Luiz Carlos Santos – A ideia me acompanha desde o início dos anos 1980, quando lendo o livro Brasil História (texto e consulta), vol. 3 – República Velha, de Antonio Mendes Jr. e Ricardo Maranhão, vi a seguinte citação de Luiz Gama: “O Escravo que mata seu Senhor, seja em que circunstância for, age em legítima defesa.” Pensei na coragem e ousadia que tal afirmação representava para a sociedade escravocrata principalmente se dita por um advogado, acrescentando-se aí ser este homem um ex-escravo. Recentemente, recebi um convite da professora Vera Benedito, editora da coleção Retratos do Brasil Negro; escolhi escrever sobre Luiz Gama por ser uma das personalidades negras brasileiras com a qual mais me identifico e por achar importante mostrar para a juventude brasileira, em especial a parcela negra, que a luta pela liberdade fez e faz parte de nossas vidas desde o primeiro sequestro de um africano para torná-lo escravo.
LDH – Conte como foi a produção do livro? Quais as descobertas e surpresas que fez durante essa pesquisa?
Luiz Carlos Santos – Escrever um livro sobre um nome como Luiz Gama, destinado a um público jovem, em uma sociedade movida por imagens e sons como a nossa, requer uma linguagem ágil e, ao mesmo tempo, instigadora. Isso foi um desafio. A pesquisa seguiu o caminho de sempre. Bibliografia sobre a época, jornais, revistas, etc. Muitas descobertas foram se dando ao longo do processo, principalmente a percepção da genialidade do pesquisado, um dos exemplos mais concretos de um homem negro que se construiu apesar de ter toda uma sociedade contra ele e seu grupo social. Soube articular-se com os setores sociais que interessavam, acumulando forças para lutar pela liberdade, contra a monarquia e contra a escravidão. Não mediu esforços para isso. No século 19, existiam negros que não separavam a luta racial da luta social e viam na articulação das duas a superação política de um Estado monárquico e escravista.
LDH – Explique como seu livro foi dividido e por que foi feita essa divisão?
Luiz Carlos Santos – A divisão do livro obedeceu a uma cronologia histórica, dando destaque para os assuntos de maior importância, segundo o nosso interesse, como geralmente acontece nas biografias. E não tendo a pretensão de esgotar um tema de tamanha dimensão histórico-social. É um livro para instigar curiosidade, interesse e mostrar a atualidade da luta contra o racismo em um dos países de maior população negra do mundo.
"Um dos exemplos mais concretos de um homem negro que se construiu apesar de ter toda uma sociedade contra ele e seu grupo social. Soube articular-se com os setores sociais que interessavam, acumulando forças para lutar pela liberdade, contra a monarquia e contra a escravidão. Não mediu esforços para isso"
LDH – Quem foi Luiz Gama e qual foi sua representatividade dentro da sociedade brasileira?
Luiz Carlos Santos – Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi, talvez, o primeiro ex-escravo, filho de uma africana livre, Luiza Mahin, e de um fidalgo branco, baiano. Nascido em 21 de junho de 1830, até os dez anos de idade foi uma criança livre, quando então foi vendido pelo pai para pagar dívida de jogo. Trazido para São Paulo, foi rejeitado pelos compradores de escravos por ser baiano e por estes gozarem da fama de serem rebeldes. Por fim, foi escravo doméstico, alfabetizou-se aos 17 anos, foi soldado, foi amanuense (escrevente), rábula (advogado), poeta, jornalista e político. Sua importância na história brasileira é extraordinária. Basta se pensar o que significou e ainda significa para as elites brasileiras daquele e do nosso tempo, ter de conviver, se explicar, debater e, muitas vezes, ser dobrada por um ex-escravo. Ou seja, um negro que não ficava em seu lugar, isso em plena sociedade escravista. Que conhecia leis, fazia poesia, se identificava como negro, sonhava e lutava pela República e era um guerreiro incansável na luta pela liberdade dos africanos criminosamente escravizados. Além de fazer parte da vanguarda do pensamento de sua época.
LDH – Qual foi o papel político de Luiz Gama na sociedade e história do Brasil?
Luiz Carlos Santos - Além de ter sido fundador do PRP (Partido Republicano Paulista), Luiz Gama foi persistente no uso da lei na luta contra a escravidão, chegando mesmo a libertar mais de 500 africanos escravizados, como ele dizia, “criminosamente”. Soube articular movimentos sociais de vanguarda como partidos políticos e a Maçonaria e sabia que a luta contra o preconceito racial andava junto à luta social, principalmente em um país que tinha na escravidão a base de suas relações sociais de produção. Ele teve papel fundamental na luta pela abolição, como já salientamos. Defensor radical da liberdade e da República, não concebia a presença de uma sem a outra e, para isso, lançou mão de todos os recursos ao seu alcance, tais como a luta nos tribunais, denunciando as falcatruas dos magistrados e das elites nos jornais, por exemplo.
 
LDH – O que poucos sabem sobre Luiz Gama que é importante destacar e está presente no seu livro?
Luiz Carlos Santos – Entre tantas outras coisas, Luiz Gama foi um dos maiores poetas satíricos brasileiros. Seu livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino é o testemunho literário dessa afirmação. O Poema Quem Sou Eu, ou Bodarrada, é um marco identitário da brasilidade. É um espelho da nossa realidade. Outro aspecto importante, presente na obra literária de Gama, é a escolha da mulher negra como sua musa inspiradora, além da forte recorrência à sua origem africana. E, curiosamente, apesar de ser um radical, foi um dos homens mais populares em São Paulo, em pleno século 19.
LDH – Conte um pouco de sua participação na Maçonaria e como foi a repercussão disso na sociedade da época.
Luiz Carlos Santos – A presença de Luiz Gama na Loja Maçônica América, da qual foi vice-presidente, foi de fundamental importância na sua luta contra a escravidão, principalmente se considerarmos o papel que a Maçonaria teve na luta contra a escravidão, contribuindo política e materialmente na luta pela liberdade de africanos escravizados, já que tinha entre os seus membros, além do próprio Gama, outros nomes do pensamento brasileiro de vanguarda. É importante destacar também a importância das irmandades negras na luta pela liberdade, bem como outras formas de organização abolicionista.
"Luiz Gama foi um dos maiores poetas satíricos brasileiros. Seu livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino é o testemunho literário dessa afirmação. O Poema Quem Sou Eu, ou Bodarrada, é um marco identitário da brasilidade. É um espelho da nossa realidade"
LDH – Em termos sociológicos e políticos o que pode ser destacado do seu livro e da vida de Luiz Gama?
Luiz Carlos Santos – A sociedade brasileira é constituída de três matrizes: A nativa (índia), a europeia (portuguesa) e a africana. As matrizes indígenas e africanas foram e ainda são, ao longo da nossa história, oficialmente excluídas, em algumas situações quase exterminadas. O universo cultural que caracteriza uma sociedade como a brasileira é rico tanto nas manifestações religiosas, gastronômicas, festivas, cognitivas e artísticas, todavia, a cara do brasileiro ou da brasileira que vemos nas revistas, nos jornais, nos filmes, telenovelas, peças publicitárias, no teatro, enfim, as nossas marcas de identidade são esteticamente europeias, assim como a forma de pensar das nossas chamadas classes dirigentes.

Descobrir personalidades que fogem do parâmetro dominante, como é o caso de Luiz Gama, demonstra que as contradições sociais produzem dialeticamente sujeitos históricos diversos, conflitantes e necessários dentro de uma mesma época. Machado de Assis, um dos mulatos mais comemorados no país, considerado o maior escritor da nacionalidade, é contemporâneo de Luiz Gama, também mulato, mas que, no entanto, assumiu a sua negritude e suas raízes sem grandes problemas.
LDH – No que a vida, obra e atuação de Luiz Gama ajudou a dar a cara da sociedade e política atual?
Luiz Carlos Santos – Se existisse de verdade uma Democracia Racial Brasileira, os brasileiros brancos, negros ou índios a perceberiam, já que sentiriam a importância de sermos iguais nas diferenças. Dessa forma, talvez não tetemunhássemos afirmações patéticas de personalidades que negam, nos meios de comunicação, a sua origem étinica, como acontece regularmente entre nós.
LDH – Qual a situação atual dessa luta no Brasil?
Luiz Carlos Santos – O Brasil tem hoje a Lei nº 10639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas do país. Mas, assim como aquela Lei, de 1831 que proibia o tráfico de escravos e que Luiz Gama aludia sempre em de- fesa dos negros criminosamente escravizados, também não é cumprida. As razões apresentadas são várias, todas vazias de argumentos, amparadas unicamente no cínico e hipócrita preconceito racial.
Fico pensando de que lado estariam os nossos políticos e intelectuais que são contra as cotas, durante a luta pela abolição? Penso assim, por nunca tê-los lido/ouvido ou visto nos jornais ou na TV, ou mesmo no congresso nacional, mostrando o se repúdio e a sua indignação contra os assassinatos de jovens negros nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos brasileiros, ou ainda, apresentando propostas que ajudem a mudar as estatísticas viciadas e já banalizadas sobre o lugar do negro no mercado de trabalho, na escola, ou a sua saúde, a sua moradia, etc.
O pior de tudo isso é ouvir como resposta, quando fazemos essas denúncias, que estamos fazendo racismo às avessas. Daí fica fácil entender a máxima “só quem sente sabe”.
"Descobrir personalidades que fogem do parâmetro dominante, como é caso de Luiz Gama, demonstra que as contradições sociais produzem dialeticamente sujeitos históricos diversos, confl itantes e necessários dentro de uma mesma época. Machado de Assis, um dos mulatos mais comemorados no país, considerado o maior escritor Da nacionalidade, é contemporâneo de Luiz Gama, também mulato, mas que, no entanto, assumiu a sua negritude e suas raízes sem grandes problemas"

*Priscila Gorzoni é jornalista e escreve para esta publicação


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