segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Comportamento - Saudades de um tempo que não vivi


Saudades de um tempo que não vivi

Cresce entre os jovens o culto a músicas, filmes, roupas e objetos de design
do passado. A onda retro é uma marca da “geração shuffle” – que mistura,
com prazer, gostos de várias épocas

MARIANA SHIRAI. COM LUCIANA VICÁRIA









No celular de Rael Dill de Mello, empresário gaúcho de 23 anos, as faixas de música pulam de uma década para outra. Ele escuta clássicos do rock da década de 1970, blues dos anos 1930, grupos eletrônicos do fim do século XX e sucessos populares do cancioneiro gaúcho da década de 1960, como Teixeirinha e Os Serranos. “Às vezes nem sei de que época é cada som. Jogo tudo lá e ouço misturado”, diz ele. Rael já teve um Opala 1976 e outro 1992 e usa calças boca de sino. “Gosto de coisas antigas”, afirma. Aos 17 anos, a estudante paulistana Danielle Longobardi se inspira no estilo hippie de vestir. “Gosto de saia comprida, headband, bolsas com franja”, diz ela, como se as peças que marcaram a década de 1970 tivessem sido criadas na última estação. “Agora todo mundo está usando.” Fã de Elvis Presley, Beatles, Bob Marley e Janis Joplin, Danielle não existia quando seus ídolos estavam vivos. Mesmo assim, ela tem acesso fácil e rápido aos shows deles, assim como outros de seus artistas atuais favoritos, como David Guetta e Snow Patrol. Os vídeos de todos eles, novos e antigos, estão misturados na internet.

Rael e Danielle pertencem à geração shuffle. Assim como nos tocadores digitais de música, em que a função shuffle mistura aleatoriamente uma coleção de canções, eles podem ouvir e ver o que quiserem na internet numa ordem aleatória. Épocas, estilos e origens são embaralhados. Eles cresceram no espaço cultural da internet, onde aquilo que é antigo tem o mesmo espaço e valor que o novo – onde o mais velho e o mais recente convivem lado a lado, ao alcance instantâneo de um toque de tela ou de teclado. Nos últimos anos, a internet se tornou o centro de um fenômeno que domina a cena cultural: a prática de reciclar e celebrar o passado. Não se trata, porém, da velha nostalgia que faz seu avô se emocionar ouvindo discos de Silvio Caldas ou vendo, pela 20ª vez, as cenas românticas de Doutor Jivago, sucesso dos anos 1960. O apego ao que se viu, ouviu ou viveu no passado é algo que nós todos sentimos e que se confunde com a saudade da própria juventude e de si mesmo. O que está em curso com a onda retrô é diferente.



Pratica-se agora, abertamente, o culto pela música, pela moda e pelo comportamento de outras gerações. A garota que se veste como hippie não viveu o movimento hippie. O rapaz que anda de Opala ouvindo Deep Purple não viveu os anos 1970. Eles se associam a um passado que não pertence a eles, e o fazem de uma forma cada vez mais natural, às vezes imperceptível. Não se trata de vestir uma fantasia para dançar rock dos anos 1950 num clube em que todos fazem o mesmo. O que se faz agora é mais universal e mais sutil. Rael não está preocupado em curtir música das gerações anteriores. Apenas o faz. Danielle, embora se identifique com o ideário do movimento pacifista, não faz parte de um clube em que todos se vestem como nos anos 1960. Muitos jovens estão imersos em produtos e ideias do passado e nem percebem. A retromania – também chamada por outros pensadores de “cultura do revival”, “retrorrevolução” e “retrofuga” – está no dia a dia de todos, num movimento alimentado tanto por produtores como por consumidores. “O presente parece um país estrangeiro”, disse a ÉPOCA o crítico musical inglês Simon Reynolds, autor do livro Retromania – Pop’s culture addiction to its own past (Retromania – O vício da cultura pop em seu próprio passado, sem previsão de lançamento no Brasil). “O passado é algo bacana e exótico para a maioria das pessoas. A palavra novo se tornou ultrapassada.”







AS TRÊS CATEGORIAS DO RETRÔ 
O livro de Reynolds é uma investigação sobre a cultura retrô e uma compilação de exemplos e ideias que demonstram sua força em todas as artes. Didaticamente, o autor divide as aparições da retromania em três categorias. Antes de tudo, há a presença do passado da maneira com que ele foi concebido originalmente. É o caso de um dos grandes filões da indústria cultural atual: a reedição de discos, filmes, programas de televisão e livros. Tudo está sendo revisto e reimpresso, das grandes obras da literatura mundial aos projetos arquitetônicos de gigantes como a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992) e o francês Le Corbusier (1887-1965).

Outra categoria da retromania é a presença viva de personalidades que tiveram o auge de sua criatividade décadas atrás e que ainda vivem dessa glória. Astros como Paul McCartney, Eric Clapton e Chico Buarque são verdadeiros dinossauros da música que ainda lotam plateias em suas turnês – e muitos dos espectadores são jovens entusiasmados, não só coroas saudosos. É o mesmo apelo do fetiche pelo vintage – aqueles objetos antigos que, por razões estéticas, tornaram-se novamente valiosos. Por causa disso, proliferam os brechós, os antiquários de móveis de design e se faz, em toda parte, uma verdadeira redescoberta dos acervos familiares.
Por fim, a terceira e mais comum manifestação do retrô enumerada por Reynolds é a apropriação de propostas e estilos de outras décadas por criadores de hoje, que muitas vezes misturam várias tendências do passado em imagens, formas e sons repaginados. É o caso da febre pelas séries de televisão de época, como Mad men, que revive o ambiente da Nova York dos anos 1960, e os remakes de sucessos de audiência, como a novela O astro, da Rede Globo. No cinema, multiplicam-se as refilmagens de filmes que deram certo há 30 ou 40 anos (como Planeta dos macacosKaratê Kid e Tron) ou se assiste, como agora, a uma retomada vigorosa de temas antigos. O Oscar deste ano está povoado de histórias sobre o passado, que nada têm a ver com os temas contemporâneos que costumavam arrebatar audiências e estatuetas. As aventuras deTintim – O segredo do unicórnio, de Steven Spielberg, é um bom exemplo. Há também Cavalo de guerra, do mesmo Spielberg, ou A dama de ferro, sobre a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. O exemplo mais eloquente é o filme francês O artista – filmado em branco e preto, mudo, contando uma história dos anos 1930, ele ameaça ser a grande sensação do Oscar 2012. “Outras eras tiveram suas próprias obsessões com o antigo, da veneração da Renascença pelo classicismo romano e grego à invocação do medieval no movimento gótico”, diz Reynolds. “Mas nunca houve uma sociedade na história humana tão obcecada pelos artefatos culturais de seu próprio passado imediato.” É como se as transformações no comportamento e a facilidade e a rapidez da produção e do acesso aos bens culturais dos últimos 60 anos tivessem sido tão intensos que agora a humanidade se volta para trás, revolvendo a memória na tentativa de digerir e entender o que se passou.




TUDO COMEÇOU NA MODA
A indústria tradicional se apodera do retrô como algo capaz de atrair consumidores, mas produtores independentes usam estilos de décadas passadas de modo mais artístico, como forma de imprimir um estilo pessoal a roupas, música, objetos, vídeos e eventos. É o caso do produtor cultural Eduardo Beu, de 40 anos. É seu gosto pessoal que leva à curadoria de mostras de cineastas antigos, ao blog que escreve sobre cultura retrô e à organização de shows com repertório de cantoras francesas dos anos 1960, como os que fez em São Paulo. “Não sou nostálgico. Gosto de cultura retrô ao mesmo tempo que adoro tecnologia”, diz ele, que também trabalha com edição de vídeos. A estilista Patrícia Grejanin, de 37 anos, fez de sua afeição pelo rock e pela estética dos anos 1950 a referência principal de sua grife de roupas, a Laundry, que existe desde 2003. “Todo estilista tem sua década preferida. A minha é essa”, afirma. “Mas o que importa é o meu olhar sobre esse estilo feminino e colorido de vestir.”

Outra razão para a retromania é a expansão da produção. O lançamento de discos, filmes, roupas e objetos de uso doméstico nunca foi tão grande. Os prazos de invenção, porém, são muito mais curtos do que costumavam ser no passado. A indústria tradicional teve de se adaptar a essas novas circunstâncias. “Existe nas empresas um pão-durismo criativo”, diz o ecodesigner Fred Gelli. “É mais fácil reutilizar um design que deu certo no passado do que pensar em como fazer diferente.” Nem sempre foi assim. Segundo Reynolds, a apropriação sistemática de ideias antigas pela indústria se iniciou no campo da moda, nos anos 1970. Mais que uma estratégia de lucro, havia ali um esgotamento criativo após o ápice do futurismo fashion promovido por estilistas como Courrèges, Pierre Cardin e Paco Rabanne – este último assinou os figurinos de Jane Fonda no filme futurista Barbarella, de 1968. “Não houve outra revolução tão importante como a dos anos 1960”, diz a empresária e consultora de moda Costanza Pascolato. “Tudo o que veio depois já havia sido feito antes.” A moda foi pioneira no uso comercial e criativo do retrô. Nos anos 1970, a butique londrina Biba se voltou para a art déco dos anos 1920 para criar o estilo glam, imortalizado por David Bowie e seu personagem Ziggy Stardust. Hoje, os ciclos de produção da moda são tão curtos que seria impossível inovar a cada estação. A cópia virou uma necessidade produtiva e empresarial.
A obsessão com o passado parece ter a mesma força que tiveram, durante boa parte do século passado, as ideias de vanguarda e revolução. Acreditava-se que a cultura deveria progredir em todos os aspectos, sempre. Em seu Manifesto futurista, o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) fazia a mais ousada proposta de superação do passado entre os pensadores de seu tempo. O texto escrito em 1909 convocava a juventude italiana a desviar o curso dos canais para inundar os acervos de museus, a incendiar as estantes das bibliotecas e a destruir cidades com picaretas e martelos. Não havia nada pior para um futurista que a memória. Os acervos, porém, continuaram intactos e cada vez mais completos e organizados. Mas a ânsia pela novidade e pela próxima revolução existe até hoje. É comum ouvir frases como “não me lembro da última vez em que vi algo genuinamente novo”.





No século XXI, porém, nem o novo existe como antigamente. O crítico de arte francês Nicolas Bourriaud escreveu no ensaio Pós-produção – Como a arte reprograma o mundo contemporâneoque, desde o início dos anos 1990, a multiplicação da oferta cultural fez com que a arte se tornasse um campo não mais de criação de novas formas, e sim de apropriação de formas já existentes que, assim como na reciclagem, se transmutam em algo diferente. “A pergunta artística não é mais ‘O que fazer de novidade’, e sim ‘O que fazer com isso?’”, afirma Bourriaud. É o mecanismo usado por DJs quando criam uma nova música a partir de pedaços de canções já existentes. “Os acervos se tornam lojas cheias de ferramentas para usar, manipular e reordenar”, diz o francês.
Nem tudo nesse fenômeno necessariamente é positivo. “Eu me perturbo com o fato de Adele ser considerada uma das maiores artistas de nosso tempo”, diz Simon Reynolds. Ele se refere à cantora inglesa que, aos 23 anos, vendeu em 2011, no mundo todo, 17 milhões de discos de seu segundo álbum, 21. Lançado em janeiro do ano passado, o disco entrou para a lista dos mais vendidos em fevereiro e nunca mais saiu. Desde 2004 não havia um artista com tamanho sucesso comercial. “Ela tem o mesmo estilo musical com o qual Etta James (cantora americana que morreu há duas semanas, famosa por hits como “At last”) cantava 45 anos atrás. É deprimente”, diz Reynolds. No campo do desenho industrial, chama a atenção que alguns dos objetos mais inovadores dos últimos tempos tenham sido inspirados pelo pensamento estético de décadas passadas. O iPod e outros sucessos da Apple seguem os preceitos de Dieter Rams, designer alemão que, no fim dos anos 1950, revolucionou o projeto de eletrodomésticos com os produtos da marca Braun. Rams acreditava que a forma deve seguir a função e que o bom design é aquele que ajuda a entender o produto – não por acidente, os produtos da Apple são conhecidos por serem funcionais e autoexplicativos (alguns, como o iPod, lembram muito produtos antigos da Braun).
CRISE DE IDENTIDADE
Para os psicanalistas, a onda retrô não é necessariamente saudável. “A insatisfação do ser humano é estrutural e não tem cura. Achar que o passado era melhor que o presente é uma fantasia”, diz o psicanalista Jorge Forbes, que foi aluno de Jacques Lacan (1901-1981). Seu argumento lembra o filme recente de Woody Allen, Meia-noite em Paris, em que personagens apaixonados pelo passado passeiam magicamente na Paris dos anos 1920. Eles acreditam que aquele período representou uma espécie de Idade de Ouro da humanidade. Forbes explica esse apego como expressão de um movimento reacionário. Ele acredita que as pessoas estão perdidas com a ausência de antigos padrões de comportamento, próprios do pós-modernismo. Lutaram pela liberdade de escolha e, quando ela chegou, muitos se acovardaram e preferiram repousar em padrões do passado. “Numa crise de identidade, é comum ir até o supermercado das identidades prêt-à-porter e vestir a máscara que estiver mais próxima”, diz Forbes. “Um estilo do passado é um disfarce pronto. Está tudo bem, desde que isso sirva apenas como um conforto provisório, de um momento de transição.”

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor de livros sobre a pós-modernidade como Amor líquido, disse a ÉPOCA que é hora de deixar de lado a presunção progressista de que a mudança histórica e a inovação cultural ocorrem de maneira sequencial. “Essa visão precisa ser trocada por um modelo pendular”, diz ele. Para ele, daqui em diante, cada uma das tendências pelas quais passamos, mais que um sinal de progressão ou regressão, serão projetos provisórios que rapidamente se tornarão insatisfatórios e precisarão ser substituídos. Bourriaud e Bauman concordam sobre o fato de que hoje a cultura não deve mais ser vista como uma cadeia em que um fato resulta em outro. Em vez disso, o mundo contemporâneo nos oferece a possibilidade de conhecer e viver diferentes acontecimentos culturais, simultaneamente. Sejam eles de ontem ou de hoje. E o futuro? Bem... Talvez em pouco tempo falar de cultura retrô seja também... coisa do passado.



Revista Épocaa 

Nenhum comentário:

Postar um comentário