Cada um tem a madeleine que merece e lá estava eu dias atrás diante da minha, a pintura “Carnaval em Madureira”, de Tarsila do Amaral, em cartaz no CCBB, quando imediatamente começaram a despencar das goiabeiras da memória os meus confetes de figurinhas das Balas Ruth, as minhas serpentinas queimadas de Durmabem e as ventarolas de Atalaia Jurubeba.
Foi como se eu incorporasse um Proust suburbano no terreiro do Seu Sete da Lira, no Encantado, e aproveitasse as baforadas do charuto para iluminar no retrovisor aqueles carnavais em que na casca de banana eu pisei, escorreguei, quase caí, mas sem que a turma lá de trás gritasse xongas.
Eu era um garoto que tomava Caracu com ovo, canela e noz moscada, tudo na esperança jamais concretizada de inflar os muques como prometia a ginástica de empurrar a mão esquerda contra a mão direita, e vice-versa, propagada pelos manuais de educação física dos pára-quedistas. Tentei, com os mesmos resultados pífios, as aulas do professor Oswaldo Diniz às seis da manhã no programa Hora da Ginástica na Rádio Ministério da Educação, aquele que começava com um “Bom dia rádio-ginastas”.
Fisicamente, tudo em vão, e jamais foi realizado o sonho juvenil de colocar a moça nos ombros e sair ricocheteando com ela pelo salão do Melo Tênis Clube. Sem mágoa.
A gemada e a ginástica calistênica, eu só percebo agora diante do “Carnaval em Madureira”, serviriam para muscular o cérebro e guardar as memórias dos tempos da minha Panair. De vez em quando eu tiro uma do cerebelo direito, passo gumex, penteio com pente Flamengo, e publico no jornal da capital. Vivo amasiado com elas.
Às vezes pode parecer efeito da prise da garrafinha de vidro do lança-perfume Colombina, em outras o memorialista periga parecer vítima alucinada da macumba de alguma escurinha a quem fez ingratidão. E no entanto é tudo verdade, chicotinho queimado e arruda de rezadeira. Eu estava lá, num coreto daqueles que a Tarsila também visitou, e eis-me aqui a relatar, genuflexo, aos pés dessa colina sagrada da Igreja da Penha, devoto pagão aos costumes suburbanos.
A cada gambiarra de história que pisca na memória eu acendo vela de metro no altar à menina queimada pela Fera da Penha. Ponho também um copo de água sobre o rádio enquanto está no ar o programa do Alziro Zarur. Depois jogo um gole para o santo, tomo o segundo e canto “Ave Maria” com o falsete da Dalv de Oliveira. Agradeço penhoradamente.
Lembro como se fosse amanhã de manhã do amolador de facas que quando passava na rua era batatolina, no dia seguinte morria alguém na vizinhança. Havia também o perigo do vento encanado, da espinhela caída, do quebranto e de escorregar quando saltasse
do lotação andando. A tudo sobrevivi e lembro. Obrigado ao Biotônico Fontoura, ao Conhaque de Alcatrão de São João da Barra e ao óleo de fígado de bacalhau, guardiões dessas memórias a que nem a explosão do paiol de Deodoro afetou.
Elas ficaram conservadas em emplastro Sabiá, embrulhadas uma a uma como os dropsDulcora, e iam sendo assopradas do quadro de Tarsila do Amaral, da parede do CCBB, de volta para dentro da minha imaginação, tudo em forma de carrinho de rolimã, bilhas e um cordonê com cerol onde ainda está pendurado o retrato da Rose Rondelli, um catecismo, uma figura carimbada do Dida e também um sabonete Cinta-Azul, aquele que vinha com uma água-marinha. Era o preferido de uma menina que gostava de se trancar no armário das brincadeiras de pique-esconde, e se o leitor aproximar o rosto da folha do jornal tenho certeza que compartilhará o perfume.
Ainda é, e para sempre me será, Carnaval em Madureira, onde Didi bateu a primeira folha seca e Silas de Oliveira escreveu o samba que começava com “Vejam esta maravilha de cenário”. Reinavam as coxas arredondadas da vedete Zaquia Jorge e a generosidade do bicheiro Natal da Portela, um negro que não tinha um braço mas com o outro atirava dinheiro para a molecada. Ele seguia um costume dos bicheiros da Zona Norte que hoje — de nada me queixo, de nada me orgulho, apenas puxo pela memória — parece desprezado da mesma forma que as coxas roliças das mulheres, trocadas pelas musculosas.
Foi, a propósito, numa escola de Madureira, dois meses depois do carnaval, que eu li pela primeira vez o poeta andando num bonde cheio de “pernas brancas pretas amarelas”, assim mesmo, sem vírgulas, todas juntas numa cornucópia foliã. A fartura de carnes e a ausência de pontuação impressionaram o garoto em suas primeiras letras.
O poeta interiorano ouvia o coração perguntando para que tanta perna, meu Deus, mas os olhos, atrás dos óculos, redondos como os do pequeno estudante suburbano, seguiam cegos a qualquer sentimentalismo retórico. Varriam todas as pernas, azuis verdes mulatas, e não perguntavam nada — porque é assim que se deve calar, em êxtase e agradecido, às misteriosas pulsações do desejo e dos fluxos da memória.
E-mail: joaquim.santos@oglobo.com.br
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