domingo, 19 de fevereiro de 2012

Crônica do dia - Tablet Nights - Arnaldo Bloch - Jornal O Globo




O biscoito branco de maçã reluzia. Na tela escura, as marcas dos dedos violavam sua virgindade antes mesmo que a luz ácida fosse acesa. No dia em que for rico, terei um tablet que ficará na caixa para todo o sempre, como objeto de colecionador. 

 No futuro, alguma criança com chip implantado no cérebro zombará dele como se zomba, hoje, de um gramofone. E o quebrará em mil pedaços, lamberá seus circuitos, e cairá duro por intoxicação de lítio e silício. 

 Digo gramofone, e não vitrola, porque descobriuse, recentemente, que Steve Jobs só ouvia vinil em casa. Ele conhecia o conceito de alta fidelidade. E sabia que a alta fidelidade não estava nos dispositivos que inventou, cuja performance é pior que a do CD, por sua vez inferior às bolachas pretas. 

 Mesmo assim, sempre gostei do design e, com o perdão da palavra, da “usabilidade” dos brinquedinhos da Apple. Tenho um iPod dinossauro, daqueles com rodinha; um iPod touch; e um iPhone4. Faltava o iPad, que adquiri esta semana, com justificativa profissional: uma seção que estou desenvolvendo para o vespertino do jornal, “O Globo a Mais”, recentemente lançado, e que só roda em iPad. Aliás, recomendo experimentar o novo diário: está um barato e, por enquanto, é de grátis, para quem já tem o biscoitão do Jobs. 

 Eu bem sabia que a noite ia ser longa. Não por qualquer dificuldade de configuração: para quem já tem os outros gadgets da família “i”, é tudo intuitivo, na base da flutuação em nuvem, esse novo e sedentário esporte que começamos a praticar, às vezes sem consciência. 

 Fui com sede ao pote nos aplicativos, priorizando os inúteis, pois o dia fora duro e eu queria era entretenimento. “Talking Tom”, aquele gato falante, foi o primeiro. Tenho pena do bichano, forçado a ficar lá, estático, repetindo tudo. Um papagaio felino. Papagato. É sacaneado por um cão. E podemos esbofeteá- lo à vontade. Ele permanece ali, não sai de sua posição. Tem direito a bocejos, nunca a gracejos.  

Pois, cantei-lhe algumas canções, mandei-o à merda um sem-número de vezes, emiti gargalhadas e ruídos sem qualquer sentido, e ele reproduziu cada sílaba, fielmente, com movimentos labiais bastante críveis e a prosódia perfeita. 

 Na trilha de Tom, acabei descobrindo “Talking John”, uma bactéria falante. John é mais livre. Ele se movimenta pela tela e, se lhe damos um biscoito, ele se duplica, e assim por diante, disseminando- se até não caberem mais bactérias no retângulo mágico. As tonalidades das vozes diferem, de modo que, se canto, por exemplo, os tristes versos de “Puis qu’en oubli”, de Machaut, o que seria um uníssono vira uma medonha polifonia, que nada tem a ver com a original. 

Num passeio pelos “mais baixados” descobri o jogo das bolinhas, uma daquelas variações do padrão Tetris, envolvendo agrupamentos de cores e um canhão de esferas randomicamente pintadas. 

 Nas duas horas seguintes devo ter jogado 25 partidas sem cessar. Quando terminei essa série, durante a qual meu recorde passou de 500 para 15.000, vi que amanhecia e rendi-me à televisão. 

Era noite de “Two and a half men” inédito. Estava gravado no HD do cabo. Ao mesmo tempo, verificava que a nuvem Apple já havia baixado, automaticamente, via iPhone, meu metrônomo Steinway (para o piano Pleyel que eu não estudara por culpa do iPad), o Soundhound (identificador de músicas), Twitter, Facebook e até algumas canções de Thomas Dolby que eu havia comprado. 

 Num intervalo, voltei às bactérias e gravei o hino do Botafogo. Hilário. Quis postar no Facebook, mas Talking John Bactéria exigiu, para tanto, ter acesso a todas minhas contas, configurações e às dos meus amigos. 

 Mandei Talking John à casa da mãe Joana (e ele a mim) e não postei bulhufas. Agora é tudo assim, e até o Google está avisando que vai meter a fuça na vida de todo mundo. Qualquer dia, essa coisa de busca de informações vai cair em desuso e será tudo customizado. Aí créu: foi, fomos. 

 Sei que a dissipação vem de cada um. Do uso que se faz das coisas. Quando só existia TV aberta e eu era um adolescente, ficava até o amanhecer assistindo à Sessão Coruja. A Rede Globo era bem diferente. Não havia liberdade de imprensa, então não falemos de jornalismo. Mas tinha “Vila Sésamo” e “Concertos para a Juventude”. Uma puta orquestra da casa. Trilhas originais de Vinicius e Toquinho. Dias Gomes. Teleteatro. Ionesco em horário nobre. Um absurdo. Dá pra acreditar? 

 Quando acabava a programação, uma música triste tocava e o locutor anunciava a pausa até que no dia seguinte acordássemos para “um novo dia, uma nova vida”. E vinha o col orb ar. Ficava para morrer. O que seria de mim depois disso? Como suportar a estática? Bom, a puberdade acabou me ensinando que havia as revistas de sacanagem e o Cony me passou uns volumes de Dostoievsky. 

 Aliás, baixei, no aplicativo iBooks, um só livro: “O idiota”, do autor russo, em inglês. Não que eu vá relê-lo no iPad. Talvez estivesse só querendo passar um recado a mim mesmo através do título...

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