O biscoito branco de maçã reluzia. Na tela
escura, as marcas dos dedos violavam sua
virgindade antes mesmo que a luz ácida
fosse acesa. No dia em que for rico, terei
um tablet que ficará na caixa para todo o sempre,
como objeto de colecionador.
No futuro, alguma criança com chip implantado
no cérebro zombará dele como se zomba, hoje, de
um gramofone. E o quebrará em mil pedaços, lamberá
seus circuitos, e cairá duro por intoxicação
de lítio e silício.
Digo gramofone, e não vitrola, porque descobriuse,
recentemente, que Steve Jobs só ouvia vinil em
casa. Ele conhecia o conceito de alta fidelidade. E sabia
que a alta fidelidade não estava nos dispositivos
que inventou, cuja performance é pior que a do CD,
por sua vez inferior às bolachas pretas.
Mesmo assim, sempre gostei do design e, com o
perdão da palavra, da “usabilidade” dos brinquedinhos
da Apple. Tenho um iPod dinossauro, daqueles
com rodinha; um iPod touch; e um iPhone4. Faltava
o iPad, que adquiri esta semana, com justificativa
profissional: uma seção que estou desenvolvendo
para o vespertino do jornal, “O Globo a
Mais”, recentemente lançado, e que só roda em
iPad. Aliás, recomendo experimentar o novo diário:
está um barato e, por enquanto, é de grátis, para
quem já tem o biscoitão do Jobs.
Eu bem sabia que a noite ia ser longa. Não por
qualquer dificuldade de configuração: para quem já
tem os outros gadgets da família “i”, é tudo intuitivo,
na base da flutuação em nuvem, esse novo e
sedentário esporte que começamos a praticar, às
vezes sem consciência.
Fui com sede ao pote nos aplicativos, priorizando
os inúteis, pois o dia fora duro e eu queria era entretenimento.
“Talking Tom”, aquele gato falante, foi
o primeiro. Tenho pena do bichano, forçado a ficar
lá, estático, repetindo tudo. Um papagaio felino. Papagato.
É sacaneado por um cão. E podemos esbofeteá-
lo à vontade. Ele permanece ali, não sai de sua
posição. Tem direito a bocejos, nunca a gracejos.
Pois, cantei-lhe algumas canções, mandei-o à
merda um sem-número de vezes, emiti gargalhadas
e ruídos sem qualquer sentido, e ele reproduziu cada
sílaba, fielmente, com movimentos labiais bastante
críveis e a prosódia perfeita.
Na trilha de Tom, acabei descobrindo “Talking
John”, uma bactéria falante. John é mais livre. Ele
se movimenta pela tela e, se lhe damos um biscoito,
ele se duplica, e assim por diante, disseminando-
se até não caberem mais bactérias no retângulo
mágico. As tonalidades das vozes diferem,
de modo que, se canto, por exemplo, os tristes
versos de “Puis qu’en oubli”, de Machaut, o
que seria um uníssono vira uma medonha polifonia,
que nada tem a ver com a original.
Num passeio pelos “mais baixados” descobri o
jogo das bolinhas, uma daquelas variações do padrão
Tetris, envolvendo agrupamentos de cores e
um canhão de esferas randomicamente pintadas.
Nas duas horas seguintes devo ter jogado 25 partidas
sem cessar. Quando terminei essa série, durante
a qual meu recorde passou de 500 para
15.000, vi que amanhecia e rendi-me à televisão.
Era noite de “Two and a half men” inédito. Estava
gravado no HD do cabo. Ao mesmo tempo, verificava
que a nuvem Apple já havia baixado, automaticamente,
via iPhone, meu metrônomo Steinway
(para o piano Pleyel que eu não estudara por culpa
do iPad), o Soundhound (identificador de músicas),
Twitter, Facebook e até algumas canções de
Thomas Dolby que eu havia comprado.
Num intervalo, voltei às bactérias e gravei o hino
do Botafogo. Hilário. Quis postar no Facebook, mas
Talking John Bactéria exigiu, para tanto, ter acesso
a todas minhas contas, configurações e às dos
meus amigos.
Mandei Talking John à casa da mãe Joana (e ele a
mim) e não postei bulhufas. Agora é tudo assim, e
até o Google está avisando que vai meter a fuça na
vida de todo mundo. Qualquer dia, essa coisa de
busca de informações vai cair em desuso e será tudo
customizado. Aí créu: foi, fomos.
Sei que a dissipação vem de cada um. Do uso que
se faz das coisas. Quando só existia TV aberta e eu
era um adolescente, ficava até o amanhecer assistindo
à Sessão Coruja. A Rede Globo era bem diferente.
Não havia liberdade de imprensa, então
não falemos de jornalismo. Mas tinha “Vila Sésamo”
e “Concertos para a Juventude”. Uma puta orquestra
da casa. Trilhas originais de Vinicius e Toquinho.
Dias Gomes. Teleteatro. Ionesco em horário
nobre. Um absurdo. Dá pra acreditar?
Quando acabava a programação, uma música
triste tocava e o locutor anunciava a pausa até que
no dia seguinte acordássemos para “um novo dia,
uma nova vida”. E vinha o col orb ar. Ficava para
morrer. O que seria de mim depois disso? Como suportar
a estática? Bom, a puberdade acabou me ensinando
que havia as revistas de sacanagem e o Cony
me passou uns volumes de Dostoievsky.
Aliás, baixei, no aplicativo iBooks, um só livro: “O
idiota”, do autor russo, em inglês. Não que eu vá
relê-lo no iPad. Talvez estivesse só querendo passar
um recado a mim mesmo através do título...
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