Uma mãe branca diz lembrar muito fortemente da sua sinhá Gregória. “Ela ajudou a minha mãe a me parir... Também a sinhá Rufina, sinhá Zefa, todas descendentes de escravos”. Ela ainda diz lembrar da negritude daquelas mulheres, do branco dos dentes e dos olhos delas. “Elas chamavam a gente de branca. A branca, o branco... Tinha o quê? Cinquenta anos que a escravidão havia sido abolida.
Fico encabulada porque elas não falavam sobre a escravidão. Eu tinha vontade de saber o por quê.”
Assim inicio a minha fala hoje. O que falamos atualmente sobre a escravidão? Quais as marcas por ela deixadas? Silêncios vêm sendo rompidos e novas vozes ocupam espaços antes engendrados por barulhos ensurdecedores.
A impossibilidade de filhos, netos e tantas gerações subsequentes falarem sobre as memórias relativas à escravidão, e também as contínuas práticas racistas que se reproduzem através do tempo, promoveram consequências em nossas relações sociais. Os barulhos aqui referidos apontam para as repetições que se atualizam diante da dificuldade de traduzir, nomear práticas racistas. Estes restos estão presentes nas famílias e, por este motivo, as tomamos como locus social fundamental, onde tais silêncios e barulhos podem ser lidos através dos discursos ali enunciados.
Mãe, mulher, filhos... Mães oferecem seu peito, seu leite, seu corpo e também suas palavras, carinhos, imagens...
Mãe Stela, mãe Menininha... Ialorixás que ofereceram suas casas, acolhendo gente de diferentes origens em seus terreiros. No Candomblé, a mitologia dos orixás corresponde a narrativas presentes entre nós. São também mães: Iansã, mãe biológica e jurídica; Oxum, filha de Iemanjá, se mostra como uma mãe de criação; Iemanjá, por sua vez, mãe hierárquica, distante e indiferente. Ela ajudou Olodumaré a criar o mundo. Os pequenos ibejis, orixás protetores do cordão umbilical, nascem de Iansã e são criados por Oxum. Nanã foi uma grande justiceira, tendo fornecido a lama para a modelagem do homem. Euá, filha de Nanã, se transforma em nascente d'água para matar a sede dos seus dois filhos (PRANDI, 2001).
Dentre tantas narrativas, histórias e mitos, venho lhes falar mais especificamente acerca da mãe preta, por considerar que esta é uma personagem que representa uma marca em nossa cultura, permitindo reflexões pertinentes à psicanálise, na medida em que nos dispomos a diálogos ampliados. Para além dos sintomas individuais, abrimos espaços para pensar sobre sintomas sociais, como é o caso do racismo, mal estar que persiste em nossos dias.
Como sintomas individuais relacionados ao racismo, podemos considerar o que a psicanalista Neusa Souza (1983) nos trouxe em sua pesquisa com negros em ascensão social.
Sua escuta permitiu identificar que aquelas pessoas viviam seus corpos como ferida narcísica. Insatisfeitos, diante de um supereu severo que aponta para um suposto ideal de brancura, expunham sentimentos de culpa, inferioridade, defesas fóbicas...
Os sintomas sociais em questão referem-se à imposição do embranquecimento, ao racismo enquanto sintomática compartilhada por todos nós. Mas como nada pode ser abolido sem que se mostre de alguma maneira, as consequências das vivências dos tempos de colônia são transmitidas através de processos psíquicos de uma geração para outra.
O sintoma, como um traço, corresponde ao retorno do recalcado, que só depois pode ser simbolizado, traduzido.
Ao eleger a mãe preta como representante de um simbolismo fundamental à história do nosso povo, reconheço que ela esteve presente na estruturação de muitas famílias brasileiras desde os primeiros períodos da Colônia até a segunda metade do século XIX, quando passou a cumprir apenas a função de babá, as denominadas amas-secas.
Gilberto Freyre (2004), em sua sociologia por vezes romântica, apresenta-nos as ambiguidades das relações casa grande-senzala através destas mulheres.
Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar (…) Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. (...) Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem (FREYRE, 2004, p. 367).
O pai, naquele período, se mantinha distante dos seus filhos. Mais tarde, os rapazes vivenciavam uma atração pelas negras, que, segundo Freyre (2004), correspondia a uma marca registrada há mais tempo, nas suas infâncias. Este autor refere-se à importância psíquica do ato de mamar, relacionando tal fato à posterior predileção de homens brancos por mulheres negras.
Diz o autor: “(...) homens brancos que só gozam com negra” (FREYRE, 2004, p. 368). Mas o que mais persistia desta vivência primordial?
Fotos deste período expõem imagens que podem ser interpretadas ao traduzirem a relação dessas mulheres com aqueles que maternavam.
Vindas de fora, estranhas às famílias, elas partilhavam da intimidade, correspondendo mesmo ao estranho/familiar proposto por Freud (2006).
Deiab (2005) realiza uma interessante análise de pinturas que representavam os bebês carregados por suas mães pretas no final do século XIX. A autora demonstra o processo de invisibilização destas mulheres. A face da mãe preta, antes exposta em primeiro plano, tendo o bebê branco em seu colo, vai desaparecendo...
(…) as amas negras passam a existir nas fotografias como rastros: uma mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens (…) a princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do quadro nacional.
Oculta nestas fotografias, assim como nas histórias, nas nossas memórias, a mãe preta retorna, deixando rastros – uma mão, um punho – que nos permitem pensar sobre os traços, pegadas possíveis de serem trilhadas na direção do inconsciente.
O espetáculo apontado por Lacan (1998, p. 97) nos Escritos, quando se refere ao “bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (...)”, me fez pensar nessa cena anteriormente descrita.
Nos retratos dos filhos dos senhores, era a mãe preta esse suporte. Ela segurava, sustentava o bebê, inclusive por sua imaturidade neurológica, sustentação que nos remete à imagem especular que aponta para a matriz simbólica do eu. Durante os primeiros meses de vida, o bebê não é capaz de sustentar-se a si mesmo, ao seu corpo.
É esse outro que lhe permite também uma sustentação subjetiva, para que um eu possa ir aos poucos se estruturando.
As palavras da mãe preta amolengavam o português, assim como fazia com a comida. Na linguagem das crianças, transformava o dói em dodói, traduzindo um mundo infantil que nos é bastante familiar: bumbum, dindinho, pipi, neném, papá...
Das canções de ninar às histórias africanas, a mãe preta ia alimentando não somente o vocabulário, mas o jeito próprio de falarmos, sentirmos, relacionarmo-nos. As repercussões psíquicas sobre os adultos em relação a uma infância inundada por experiências tão próximas a estas mulheres é evidente e presente entre nós.
Em 1912, Augusto dos Anjos (1884-1914) apresentou-nos ao universo repleto de ambivalências, referindo-se à sua mãe preta:
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava
[...]
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Esta era a condição fundamental.
Para ser mãe preta de filho branco, a escrava teria engravidado recentemente e seu filho natural era, necessariamente, preterido, quando não era vendido, afastado em definitivo de sua mãe.
Ao desempenhar a função materna, a mãe preta levava para a casa grande a sua história.
Os espelhos estruturantes através dos quais os filhos brancos construíam suas próprias imagens estavam marcados pela maternagem vivenciada por meio daquelas mulheres.
Ao considerarmos que o que constitui o sujeito é justamente aquilo que o aliena, reconhecemos que a formação do eu passa pela imagem do Outro.
O acesso da criança à sua imagem especular unificadora, totalizante, deve passar antes pelo desejo da mãe. Se pensarmos na mãe preta, que registros ficaram em nosso inconsciente?
O corpo, pedaço de carne, frágil e necessitado de olhar, cuidados, vai sendo introduzido num mundo de linguagem, simbólico que precede à sua existência. Assim, as crianças vão sendo marcadas, e entre o assujeitamento e um sujeito incipiente, espelha uma imagem própria, quando dentro e fora parece não ter limites bem definidos.
Lacan (1986) nos fornece contribuições importantes às reflexões acerca da relação do sujeito à sua imagem, afirmando ser o estádio do espelho mais que uma etapa do desenvolvimento humano, constituindo-se enquanto base para a construção do eu, através de uma imagem primeva, um protótipo.
Na relação entre simbólico, imaginário e real, o "jogo recíproco dos três grandes termos" se estabelece (LACAN, 1986, p. 89).
Ao considerarmos a importância dos objetos que internalizamos nos primórdios das nossas vidas, identificamos a mãe e, mais especificamente, o seio como o objeto primeiro. Ao eleger o significante mãe preta, pude reconhecer na relação desta personagem da nossa história com os filhos brancos dos senhores uma série de enodamentos relativos à sua função como ama de leite. Ao desempenhar a função materna, seu seio é tomado como objeto primário, e através deste contato, processos relativos à identificação narcísica são vivenciados, bem como a introjeção e projeção, movimentos sustentados por esta relação fundante.
Aí o amódio se apresenta na vinculação a esta a quem o bebê dirige seus impulsos agressivos e de afeição. Primeiro o ódio, depois o amor. Durante os primeiros meses de vida são frequentes as fantasias de conter o mamilo, devorar o seio... São troços, pedaços, cisões que apontam para a dinâmica de estruturação do eu.
As pinturas de Bosch, como propõe Lacan, ao referir-se às imagens dos membros despedaçados e órgãos à mostra, expõem uma anatomia fantasística manifesta nos sintomas da psicose ou da histeria. Mas também o sadismo da nossa infância está inundado por tal despedaçamento.
Uma forte carga agressiva está presente no período de amamentação. Diante da ausência do peito, o bebê chora. A mãe às vezes gratifica, mas também é preciso faltar e a sua ausência é experimentada pela criança como uma vivência negativa.
A frustração oral dá lugar ao ódio, medo da lei que vem da mãe inicialmente. Como a criança dispõe de poucos meios de expressão, a agressividade dá voz ao apelo, que mais tarde se fará demanda de amor.
A formação do eu atravessa essa viagem pantanosa, luta pela busca de uma imagem de corpo próprio que vai sendo simbolizada aos poucos, à medida em que os investimentos libidinais permitem acessar o mundo externo, trazendo e expulsando de si seus objetos, construindo fronteiras não tão permanentes.
As crianças reagem aos estímulos que vêm de fora, e a primeira “castração”, segundo Freud (2006, p. 76), se dá pela ausência do seio materno. A ausência da mãe faz marca, promovendo as primeiras separações dessa massa geral de sensações indissociadas pelo bebê. Sofrimento e desprazer que promovem a busca de domínio, a fim de trazer de volta para o eu o prazer, o objeto para sempre perdido.
A função fálica interdita a fusão originária entre a criança e aquela que cumpre a função materna. Sendo a função paterna responsável pela interdição, castração, ela representa proibição do incesto, o que possibilita conviver dentro de uma norma social. Interessa-nos saber como se estabeleceu a transição entre as primeiras referências transmitidas por aquela mãe preta e a separação, a inserção dessa função paterna, uma Lei do pai.
O que teria se passado com a gramática que herdamos das nossas mães pretas? A aparente ausência de inscrição desta maternagem traz-nos significativas indagações. A relação mãe/bebê está envolta por uma intensa carga de erotismo. Os bebês, filhos dos senhores, acessavam o corpo daquelas mulheres, sentiam prazer, recebiam proteção.
Talvez aí repousem ou agitem-se as bases ambivalentes das relações raciais em nosso país. Estas crianças certamente internalizaram valores transmitidos por estas mães, que lhes ensinaram uma língua materna. Como tais contradições se articulam em nível inconsciente?
A sexualidade do negro era descrita como expansiva. Danças afrodisíacas, culto fálico, mulheres sedutoras... quando a sífilis se espalhou, as mães pretas foram responsabilizadas pela disseminação daquele mal. No final do século XIX, elas deixaram de ser amas de leite para então desempenhar a função de amas secas em decorrência das pressões higienistas da época.
A ambiguidade incorporada por estas mulheres trazia consigo a ideia de boa mãe, por oferecer o leite. Nesse sentido, eram as mães pretas quase da família. Mas eram elas também estranhas, trazendo pra dentro a ameaça, o mal.
Alguns autores, como as sociólogas Marisa Corrêa (2007) e Rita Laura Segato (2006), referem-se ao desaparecimento da mãe preta da história atual, apontando para a invisibilização do trabalho realizado por estas mulheres.
Elas se transformaram num objeto rejeitado, mas, certamente, incorporado em algum nível. Tal ambiguidade se mostra entre aquilo que tentamos excluir, expulsar e aquilo que se incorpora, bem ao modo como o racismo se configura.
Foi desse modo que a mãe preta chegou a figurar uma personagem fundamental à manutenção da família. Mas ela não deixava de ser ali uma estranha...
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