RIO - Agarrada à mãe, a pequena Maria das Dores deixava o Morro da Providência, berço da primeira favela carioca, com um cobertor debaixo dos braços para atravessar a noite assistindo à festa na Praça Onze. Perto dali, o menino Hégio Laurindo da Silva descia as ladeiras de Mangueira para ver, fascinado, as estripulias de batuqueiros e o ritmo contagiante que tomava seus corpos. Era início dos anos 1930. Os dois não imaginavam que, décadas mais tarde, seriam os grandes guardiões daquela manifestação que tanto os encantava: as escolas de samba. Aquelas crianças se tornaram Dodô da Portela e Mestre Delegado da Mangueira. E suas vidas se confundem com a história das agremiações que, inicialmente marginalizadas, se transformaram num símbolo de um país inteiro.
Hoje Dodô, está com 92 anos, e Delegado, com 90. Com o tom jocoso que lhe é peculiar, a Dama da Portela brinca com a experiência, dizendo que nunca viu "velhos tão procurados" quanto ela e o mestre da verde e rosa. A despeito da ironia de Dodô, os dois dividiram a mesa numa roda de samba inédita promovida pelo GLOBO, reunindo integrantes de Portela, Mangueira, Império Serrano, Unidos da Tijuca, Salgueiro e Estácio de Sá. Junto com outros bambas, eles celebraram os 80 anos dos desfiles das escolas do Rio, que ocorreram pela primeira vez em 7 de fevereiro de 1932, sob o olhar dos dois ainda meninos. O encontro — realizado na quadra da Estácio, herdeira da primeira escola de samba do Brasil, a Deixar Falar — marca o início da série de reportagens que, deste domingo até a próxima terça-feira vai contar a evolução dos desfiles, pela visão de quem vive ou viveu essa história, os sambistas.
Dodô, depois de assistir aos primeiros desfiles em meio ao público, deu os passos iniciais para virar uma das protagonistas da festa em 1934. Aos 14 anos, ela trabalhava numa fábrica repleta de moradores de Oswaldo Cruz, reduto da Vai Como Pode, depois Portela. E foi convidada para a agremiação por uma colega de trabalho que também era rainha da azul e branca — na época, as rainhas vendiam votos para ajudar a financiar os desfiles.
— Foi a Dora que me disse que eu poderia ser porta-bandeira e me apresentou ao Paulo da Portela (fundador da escola). Mas ele falou que eu era criança, e criança não saía em escola de samba. A Dora mandou o Paulo da Portela dar o jeito dele — conta Dodô.
— Paulo, então, chamou o mestre-sala da época, Seu Antônio. Fomos para a rua ensaiar. Quando acabamos de dançar, ele disse que eu seria uma grande porta-bandeira. Fiquei tão prosa, tão prosa! Cheguei em casa peguei a vassoura e comecei a dançar, quebrei tanto quadro, santos e espelho da mamãe... Mas eu lá queria saber disso? Queria era dançar — lembra Dodô, que passou a conduzir o pavilhão de Oswaldo Cruz em 1935.
Já Delegado foi escolhido pela comunidade da Mangueira como mestre-sala. Ele aprendeu a função observando os mais velhos dançarem e, ainda adolescente, começou a desenvolver seus próprios passos. Quando o bamba mangueirense Roxinho anunciou um concurso para escolher o primeiro mestre-sala da verde e rosa, não deu outra:
— A comunidade escolheu. Delegado seria o primeiro mestre-sala — lembra, orgulhoso.
Hoje, não há um mestre-sala que não faça pelo menos um passo criado por Delegado. Não há uma porta-bandeira que deixe de reverenciar Dodô.
A dupla é do tempo em que as principais tradições das escolas de samba se criaram. No desfile de 1932, promovido pelo jornal "Mundo Sportivo" e vencido pela Mangueira, as 19 agremiações ainda eram pequenos grupos carnavalescos, com cerca de cem pessoas. Mas já tinham alguns elementos que até hoje são a base das apresentações. As alegorias se resumiam a uma tabuleta, o "pede passagem", que trazia o símbolo e o nome da escola, além de saudar o público. A comissão de frente era chamada de linha de frente, formada pelos componentes mais ilustres de casa escola. Não existiam arquibancadas, e o público era separado dos foliões por uma corda.
O samba-enredo ainda não existia. A cadência era outra. Não havia enredo, apenas exaltações à própria agremiação ou aos bairros de origem. Cantadas por um coro e versadores, que improvisavam versos.
— Escolhia-se um samba qualquer da escola, samba exaltação, mas não era samba-enredo — recorda Aluísio Machado, 73 anos, compositor do Império Serrano, escola que teve aquele que os bambas apontam como o maior compositor do gênero, Silas de Oliveira.
No segundo desfile, promovido pelo GLOBO, em 1933, a Unidos da Tijuca levou para a Praça Onze aquele que é indicado como primeiro samba-enredo, "O Mundo do Samba". Mas o gênero começou a ser difundido, de fato, na década de 1940. Como conta Hilda da Silva Ferreira, de 83 anos, a Tia Hilda da Unidos da Tijuca, única integrante viva da Tijuca a participar dos dois campeonatos da escola: o de 1936, quando desfilou menina, e o de 2010.
— Um dos primeiros sambas de enredo de sucessos, foi 'Lei Áurea', em 1948 — diz Tia Hilda, que começou na Tijuca desfilando como baininha de papel crepon aos 7 anos de idade.
— Aos 14 anos já virei baiana de cetim, enquanto meus irmãos saíam puxando a corda, vestidos de malandrinho.
Se muita coisa dos desfiles antigos se mantém até hoje, como a ala das bainas, obrigatória desde 1933, outras ficaram no passado, a exemplo dos instrumentos de sopro e a utilização de animais no cortejo — em 1937 a Vizinha Faladeira foi campeã com componentes à cavalo.
E os integrantes da velha-guarda da Unidos da Tijuca lançam assunto que gerou rebouliço na roda de samba e seria polêmica certa em qualquer agremiação hoje: era comum homens desfilarem fantasiados de baiana, e tinha até aqueles que se apresentavam de porta-bandeira e mulheres como mestre-sala.
— Meu pai saia de baiana. Os homens se disfarçavam para defender as cabrochas — diz Maria Aliano, de 72 anos, a Caboclinha do Salgueiro.
Dodô, no entanto, retruca.
— A Portela tinha muito homem de baiana, mas também tinha baianas de destaque. E esses eram meio pau meio tijolo — diz levantando dúvidas sobre a sexualidade dos componentes.
— A Portela tinha tanta baiana homem, que mandou um bocado para o Beija-Flor quando o Joãosinho Trinta foi para lá (década de 1970), para sossegar as baianas.
O motivo inicial dos homens se travestirem de baiana era a rivalidade, por vezes violenta, que existia entre as escolas.
As baianas desfilavam ladeando e protegendo as escolas. E, por baixo das roupas, traziam navalhas e punhais.
— Homens e mulheres levavam navalhas e punhais. As mulheres, escondidos entre os seios — diz Iranette Ferreira Barcellos, a Tia Surica da Portela, 71 anos recordando o constante duelo entre Mangueira e Portela.
_ Tinha uma picuinha danada. Era um tal de Mangueira cortar a corda da Portela, Portela cortar a corda da Mangueira. Era um inferno na Praça Onze.
Pelo que se pode ver, esse carnaval romântico não era assim tão pacífico.
Delegado, por exemplo, acusa Natal (contraventor que foi patrono da Portela) de comprar jurados para favorecer a escola de Madureira.
— Muito carnaval ele ganhou roubado. Ele arrumou para os jurados uma boneca e, dentro dela, tinha dinheiro que dava para comprar um carro — disse Delegado.
O surgimento do Salgueiro também foi alvo de racha, em 1953. Caboclinha conta que a maioria das escolas torceu o nariz para a novata agremiação, resultado da fusão de outras três escolas.
— Certas escolas não queriam que o Salgueiro desfilasse entre as grandes. Como essa escola já vai andar na janela do trem?
A Mangueira era a única a defender o Salgueiro. A Mangueira falou que não descia para desfilar se o Salgueiro não descesse. Comprou nosso barulho. E deu certo.
Trocar uma escola por outra, naquela época, podia dar até morte. Delegado conta que Natal lhe ofereceu casa em Madureira para ele trocar Mangueira por Portela.
— Mas o pessoal da Mangueira me disse que se eu fosse para lá não voltava mais e iriam me matar. Respondi: sou Mangueira até morrer — lembrou ele, que conhecia bem os duelos que envolviam os sambistas e não raro a polícia.
— Fazíamos disputas de mestre-sala (misto de dança e luta). Aquele que era derrubado ficava marcando o outro para cortar com a navalha depois.
Quando estavamos na batucada a polícia chegava, acabava com tudo e batia na gente — diz Delegado.
Aliás, foi para tentar apagar essa fama de violência e marginalização dos sambistas que Ismael Silva criou o termo escola de samba, ao fundar a Deixa Falar, em 1928.
Almir Diniz da Silva, 72 anos, integrante da Estácio de Sá há 60 anos, conta que instituir as novas agremiações como escolas de samba foi uma tentativa de acabar com a perseguição policial.
— Aqui no Estácio foi fundada a primeira escola de samba. Tinha um colégio normal e o Ismael pensou se quem ensina as crianças são os professores, os sambistas também eram mestres e formavam uma escola. Uma escola de samba.
Jornal O Globo
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