RIO - O sino toca, o povo deixa a igreja, a voz de Simone surge cantando “O que será”, e aí tem início uma das cenas mais famosas do cinema brasileiro. Em 1976, milhões de pessoas viram Dona Flor, vivida por uma lindíssima Sonia Braga no auge da carreira, descendo o Pelourinho de braços dados com seus dois maridos, o boêmio Vadinho (José Wilker), completamente nu, e o engomadinho Teodoro (Mauro Mendonça), de chapéu e terno. Pois essa história, surgida na literatura de Jorge Amado e levada às telas pela primeira vez por Bruno Barreto, vai voltar aos cinemas. Desta vez, conforme andam sussurrando por aí em versos e trovas, o novo "Dona Flor e seus dois maridos" terá direção de Pedro Vasconcelos e trará no elenco Marcelo Faria de Vadinho, Humberto Martins de Teodoro e Vanessa Giácomo na difícil tarefa de encarnar a protagonista. Todos seguindo um objetivo em comum: ser o mais fiel possível ao livro de Jorge Amado.
Remakes não são comuns no cinema brasileiro, tampouco é normal aparecer por aí uma história de sucesso em que um marido volta dos mortos para fornicar com sua mulher, bem viva e já casada com outro. “Dona Flor e seus dois maridos” foi um escândalo para sua época pelo conteúdo erótico e pelo resultado de bilheteria. Lançado em novembro de 1976, o filme levou 10,7 milhões de pessoas às salas, de acordo com dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Durante 34 anos, ele foi o recordista de público do cinema brasileiro, uma marca só superada em 2010, com os 11 milhões de espectadores de “Tropa de elite 2”. Naquele tempo, Sonia Braga era a maior estrela do Brasil, e Jorge Amado, o mais popular de nossos escritores vivos — hoje, ele é o mais popular de nossos escritores falecidos.
O risco em retomar essa história numa nova adaptação cinematográfica, portanto, é grande, e as comparações serão inevitáveis. Mas Pedro Vasconcelos e Marcelo Faria, produtores por trás da empreitada, têm como credencial uma vasta experiência no universo de Amado. Além de terem atuado em duas adaptações de “Capitães da areia” no teatro, eles são os responsáveis pelos cinco anos da atual adaptação de “Dona Flor” para os palcos, num desempenho semelhante ao sucesso do primeiro filme. Com Pedro na direção e Marcelo no papel de Vadinho (Flor tem sido vivida por Carol Castro ou Fernanda Paes Leme; e Teodoro, por Duda Ribeiro), a peça já esteve em mais de 150 cidades brasileiras e vendeu mais de 500 mil ingressos. Em março, haverá uma nova temporada em São Paulo, no teatro Sérgio Cardoso.
Depois, a peça será montada novamente em Brasília, Salvador e Belo Horizonte.
— Serão mais 13 semanas de espetáculo, e aí acaba. Vamos interromper para ficar tranquilos e nos preparar para o filme — diz Marcelo. — Sabemos que as pessoas vão comparar com o original, e é claro que temos um certo receio de enfrentar o tabu do “Dona Flor” com Sonia, Wilker, Mauro e Barreto. Mas é um tabu que já se mantém por mais de 30 anos, está na hora de ser quebrado. Os americanos e os europeus estão carecas de fazer remakes. Vamos contar exatamente o que está no livro, sem nos preocupar com o sucesso da época. Até porque são tempos diferentes. O adolescente não tinha acesso ao sexo como tem hoje na internet. Havia repressão, havia ditadura.
O primeiro “Dona Flor” chamou muita atenção por seu conteúdo erótico e temas ousados. Os conservadores se chocavam com o triângulo amoroso entre Flor, uma bela baiana professora de culinária; o fantasma de seu ex-marido, o boêmio Vadinho, que morrera enquanto pulava carnaval; e seu novo marido, o farmacêutico Teodoro. Em menos de 15 minutos do longa-metragem de Bruno Barreto, Vadinho aparece numa lembrança de Flor, na noite de núpcias do casal. Ele retira toda a roupa dela e, diante de uma breve resistência fruto de timidez, diz: “Que que é isso, meu bem? Até parece que é nossa primeira vez. Vadiagem é coisa de Deus. Foi ele mesmo que mandou.”
— O maior desafio que tivemos foi conseguir um tom que respeitasse as crenças populares tão presentes na obra do Jorge, mas que funcionasse para o espectador que não acredita em nada daquilo. Era preciso conseguir equilíbrio entre o folclore e a psicologia dos personagens, como em uma moqueca bem feita, em que o dendê fica em perfeita harmonia com o leite de coco — lembra o diretor Bruno Barreto. — Para a nova adaptação, meu conselho é que esqueçam o filme que eu fiz e comecem do zero.
O “zero” para Pedro e Marcelo será o livro. O roteiro trará trechos completos do texto de Amado, morto em 2001. Flor, descrita como a mulher de “barriga cor de tacho”, “rabo de sereia” e “peitos de abacate”, será representada como a mulher moderna que só aceita a felicidade de seu jeito — com dois maridos —, independentemente do que os outros pensam. É, para a equipe envolvida, uma história atual.
— Nos outros livros do Jorge Amado, ele fala muito da Bahia e de seus personagens. Em “Dona Flor” é um pouco diferente. Ele fez uma investigação dos desejos femininos, da alma da mulher, de modo que aquilo se tornasse universal. Conseguiu através dos conflitos da Dona Flor alcançar pontos de conflito em todos nós — diz Pedro. — Acho que é por isso que o resultado no cinema e na peça foi tão bom. Na plateia, você vê as mulheres reconhecendo os personagens em seus maridos.
Lançamento em 2013
O novo “Dona Flor” deve começar a ser rodado em novembro. O orçamento é de quase R$ 6 milhões, o que vai incluir levar toda a equipe para filmar no Pelourinho, em Salvador. Será na Bahia também que Pedro vai testar o restante do elenco: por enquanto, além de Marcelo, Humberto e Vanessa, a única confirmada para o filme é a atriz Ana Paula Bouzas, como Norminha, o mesmo papel que ela viveu no teatro. A distribuição ficará a cargo da Downtown Filmes, e, se tudo correr bem, o lançamento será em 2013.
Curiosamente, antes de começar a filmar, Humberto e Vanessa terão tempo para se ambientar na realidade fantástica da obra de Amado. Os dois estão no elenco de "Gabriela", minissérie da TV Globo prevista para estrear ainda neste primeiro semestre e que é uma adaptação de “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado, claro. Vanessa será Malvina, e Humberto, Nacib (a protagonista caberá a Juliana Paes).
— Eu me lembro bem do “Dona Flor” original. Vi no cinema, com uns 17 anos. O Teodoro era um cara metódico, um estudioso que levava a sério sua profissão — diz Humberto.
— A sensualidade da Sonia Braga como Dona Flor era natural, ela não buscava aquilo, partia dela própria — diz Vanessa. — O que eu mais gosto na história é esse jeito de se narrar o dia a dia com simplicidade e ao mesmo tempo poesia.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/dona-flor-seus-dois-maridos-ganha-nova-versao-em-filme-
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