O rapper Mano Brown esteve lá, assim como a professora e crítica Heloisa Buarque de Hollanda. O editor Luiz
Schwarcz também, da mesma forma que a atriz Zezé Motta. Os escritores Julio Ludemir e Marcelino Freire
foram conferir, a exemplo do diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron. Mas não são eles as estrelas do Sarau
da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), que toda quarta, às 21h, chega a reunir mais de 300 pessoas
no Bar do Zé Batidão, em Piraporinha, na região de Jardim Ângela, em São Paulo, que nos anos 1980
ganhou o apelido de Vietnã do Brasil devido à violência.
A noite é dos moradores da periferia. Donas de casa, office-boys, taxistas, estudantes, domésticas, operários
que pegam o microfone e recitam versos para uma plateia atenta e respeitosa. É o maior sarau de poesia do
Brasil, promovido pelo poeta Sérgio Vaz. Criado em 2001, ele já deu origem a dezenas de outros encontros
país afora, de Salvador a Brasília, do Rio a Poços de Caldas. Só em São Paulo são mais de 50.
— No Rio, tenho visto o esforço do pessoal do Poesia na Esquina, na Cidade de Deus, do Chá com Letras,
em Vila Aliança, e do Desmaio Públiko, em Nova Iguaçu, inspirando-se no modelo criado pela Cooperifa para
dar um novo CEP à poesia carioca — testemunha Julio Ludemir.
Maionese e frango frito
Vaz acredita que a periferia vive a mesma efervescência cultural que a classe média experimentou nos anos
1960 e 1970.
— É a nossa bossa nova, nossa tropicália, nossa Primavera de Praga, tudo junto.
Na próxima terça-feira, às 19h, Vaz lança na livraria Folha Seca, no Centro do Rio, seu sétimo livro,
“Literatura, pão e poesia”. Em São Paulo, ele vendeu 170 exemplares no lançamento, num teatro em Taboão
da Serra. Bem diferente do que ocorreu com sua primeira obra, “Subindo a ladeira mora a noite”, em 1988.
— Foi também no Bar do Zé Batidão, que à época ficava em Jardim Guarujá. Teve salada de maionese e
frango frito. Eram umas cem pessoas. Mas só vendi uns dez exemplares.
Foi aos 12 anos que ele leu seu primeiro livro. Ou tentou.
— Gosto muito de misticismo, e na estante do meu pai tinha “Eram os deuses astronautas?”. Não consegui
ler e peguei outro, “Cem anos de solidão”.
José Vaz viu o interesse do filho e passou a comprar obras infanto-juvenis. Por essa época, aos 13 anos, o
garoto começou a trabalhar na mercearia do pai. Curiosamente, o local virou depois o Bar do Zé Batidão.
— Onde era minha senzala hoje é meu quilombo — diz ele, referindo-ao ao trabalho duro na mercearia de
José Vaz.
Um dia, ouviu “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré; mais tarde, caiu em suas mãos o
livro “Confesso que vivi”, de Pablo Neruda; depois conheceu a poesia de Ferreira Gullar. E dessa forma foi
descobrindo seu caminho.
— Mas demorei para assumir a literatura. Onde morava, era uma aberração. Eu era o amigo gangorra.
Quando me sentava, o outro se levantava, pensando: “Pô, lá vem aquele chato.”
O sarau teve início num bar. Um amigo sugeriu que se recitasse uma poesia, outro disse “agora você”, e
assim por diante. Dois deles, Vaz e Marco Pezão, levaram a ideia à frente. No primeiro, apareceram 15
pessoas.
— Eu ligava para os amigos ameaçando: “Se não for, não vou falar mais com você.” De repente, virou um
movimento dos sem-palco. Incrível como as pessoas têm coisas guardadas.
Mesmo concorrendo com futebol e novela, o bar fica lotado.
— A maioria vai como se fosse religião — diz Vaz.
Heloisa Buarque de Hollanda é testemunha:
— Sérgio criou um dos movimentos culturais mais importantes dos últimos anos. A energia daquele lugar, só
vi em estádios de futebol ou em cultos carismáticos. A Cooperifa sinaliza o horizonte de mudanças que este
século pode estar prometendo.
Marcelino Freire tem opinião semelhante.
— Quando vou, saio energizado, fortalecido. Em 2012, comemoram-se 90 anos da Semana de Arte Moderna.
Vaz e seu sarau são a ressurreição daquele espírito antropofágico, inovador, provocador dos modernistas.
A comparação é pertinente.
— A Cooperifa é inspirada na antropofagia. Tudo o que a gente faz na periferia, a classe média e os
intelectuais se apropriam. Então, resolvemos pegar as coisas do centro e colocar de forma periférica, dando
uma bronzeada — diz Vaz, que criou em 2007 a Semana de Arte Moderna Periférica, mais tarde
transformada em mostra cultural.
No sarau, a palavra se espalha sem freios pelo ambiente.
— São noites catárticas. O sujeito vê o vizinho recitando e pensa: “Se esse cara escreve, eu também posso.”
Mas a ideia é formar leitores, não escritores.
O que não quer dizer que eles não surjam. Cerca de 50 lançamentos já foram feitos no bar desde o início do
sarau.
— E há pessoas que passaram a estudar ou voltaram à escola.
Vaz foi eleito em 2009 pela revista “Época” uma das cem pessoas mais influentes do Brasil, e ganhou os
prêmios Transformadores, da revista “Trip”, Orilaxé, do AfroReggae, e Heróis Invisíveis, do jornalista Gilberto
Dimenstein. Há pouco, levou três prêmios Governador do Estado de São Paulo, nas categorias Destaque
Cultural (júri popular) e Inclusão Cultural (júri popular e júri especial). Os R$60 mil serão investidos na
construção de um espaço cultural na periferia.Vaz foi eleito em 2009 pela revista “Época” uma das cem pessoas mais influentes do Brasil, e ganhou os
prêmios Transformadores, da revista “Trip”, Orilaxé, do AfroReggae, e Heróis Invisíveis, do jornalista Gilberto
Dimenstein. Há pouco, levou três prêmios Governador do Estado de São Paulo, nas categorias Destaque
Cultural (júri popular) e Inclusão Cultural (júri popular e júri especial). Os R$60 mil serão investidos na
construção de um espaço cultural na periferia.
— Em Higienópolis, tem a Casa do Saber. Como a gente ignora vários assuntos, vamos criar a Casa da
Ignorância, para aprendermos juntos.
De amor a balas perdidas
Julio Ludemir declara-se fã:
— Ele é o poeta brasileiro mais importante da atualidade, mas não pela qualidade dos seus textos, ainda que
ser um poeta complexo e inspirado seja determinante para que eu não tema em lhe dar esse status. Ele levou
o fazer poético a uma São Paulo profunda e informal.
Nascido em 1964 no Vale do Jequitinhonha, em Minas, Vaz mudou-se aos 3 anos para a periferia de São
Paulo. Chamado de “poeta ativista”, ele escreve em “Literatura, pão e poesia” crônicas sobre temas que vão
do primeiro amor e da amizade a mendigos e balas perdidas. Em “Renas de Troia”, sobra para Papai Noel:
“Ele, pra nós, sempre foi uma pessoa extremamente deselegante, nunca aceitou o convite para visitar a nossa
casa.”
— Os letristas da bossa nova escreviam sobre barquinho deslizando no mar. Eles abriam a janela e viam isso.
Eu abro e vejo violência, desigualdade, tráfico.
Vaz diz que escreve para não “enlouquecer”.
— Não é escolha. Se pudesse escolher, seria engenheiro.
“
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