terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Te Contei, não ? - Deixe ir - Fernanda Ceccon






Dia desses, assisti a uma mostra de filmes do diretor norte-americano Jay Rosenblatt, que antes de ser cineasta trabalhou como psicólogo. Um deles me chamou a atenção: Membro Fantasma, uma reflexão poética sobre a dor e o aprendizado do adeus. Em uma passagem marcante do filme, um homem tosa uma ovelha enquanto uma voz narra as fases do luto. Indagado sobre as razões de ter escolhido essa cena para ilustrar a perda, Rosenblatt respondeu: "Queria uma metáfora que também significasse renovação. A ovelha perde a cobertura de lã mas, ao longo de sua existência, outras crescerão e serão tosadas". Um ciclo natural, portanto. 

Existem momentos assim na vida, de corte, de conclusão. Em diferentes graus, todo ser humano tem dificuldade de colocar o ponto final. É preciso coragem para dizer adeus. É sobre isso, leitor, que vamos falar aqui. 

 Tiremos a carga negativa que gira em torno da despedida. Por si só, adeus não quer dizer desistência, abandono ou fracasso: essas são interpretações atribuídas por nós mesmos. Já ouviu falar de ecdise? Trata-se da mudança periódica de casca dos artrópodes. O esqueleto externo, rígido, limita o crescimento. De tempos em tempos, ele deixa a casca velha para formar uma nova e mais folgada. É sua estratégia evolutiva. Assim também é conosco: as experiências vividas dia a dia vão nos alargando interiormente. 

Até o instante em que as escolhas antigas tornam-se obsoletas e novas se fazem necessárias mesmo que seja para continuar na trajetória anterior (no casamento, na carreira, naquele modo de viver), mas com outra presença e outros paradigmas. Existe hora certa? Geralmente o fim começa com um forte chamado interior, como se uma parte bastante profunda de você o conduzisse para um rumo um tanto indefinido. "Aos poucos, aquele caminho vai fazendo sentido", afirma a psicóloga junguiana Regina Nanô, de São Paulo. 

 O poeta espanhol Antonio Machado tem um verso no qual transmite essa idéia: "O vento, num dia radioso, certa vez chamou". A frase sintetiza o que se passou comigo. Há três meses comecei a me despedir de uma Fernanda antiga para abrigar uma outra, renovada, que está docemente vindo à tona. Deixei um emprego bacana, numa empresa em que trabalhei por sete anos e onde tinha algum status e vários amigos. Para quê? 

Não sei exatamente: dedicar-me ao teatro e ao clown, , viajar pelo mundo visitando projetos humanitários, escrever livros. E esta matéria faz parte da minha despedida. "O verdadeiro adeus surge quando a pessoa já entendeu qual é seu destino e refletiu muito a respeito do que precisa se desembaraçar para seguir adiante em seu caminho", afirma a filósofa Dulce Critelli, professora da PUC de São Paulo. 

Para ela, a lucidez na finalização de um ciclo indica um importante sinal de maturidade: o indivíduo compreende que é responsável pela própria existência. Ganhos, não perdas O medo da perda dificulta essa tomada de decisão. Especialmente pela constatação de que deixaremos para trás um parte de nós mesmos, o que fomos para sermos o que somos agora. 

Junto com toda renúncia há sempre um ganho e um aprendizado, que aos poucos se dão a conhecer. Mas como isso nem sempre é evidente, vem a angústia. Especialistas comparam o processo de encerramento de um ciclo à experiência do luto. Há o choque inicial, o período de negação ou dúvida e o momento em que sentimentos e sensações misturados (da insegurança à solidão, da confiança a um intenso contentamento) vêm à tona de forma torrencial. 

Depois, o instante em que o indivíduo se dá conta de que o fato é real e, por fim, a aceitação. "O adeus acontece desde o instante em que resolvo mudar ou inicio a mudança. Até o momento da ruptura, elaboro o que ganho e o que perco e faço gradativamente as despedidas", afirma a psicóloga Ingrid Esslinger, do Laboratório de Estudos da Morte da USP. 

"O luto continua, mesmo depois da decisão concretizada. Por isso, é comum que a pessoa se pegue, tempos mais tarde, chorando de saudade ou questionando se aquela opção foi a melhor." Segundo Ingrid, de todas as despedidas cotidianas, a mais delicada é a da separação amorosa. 

"Mesmo que seja um adeus fruto de consenso entre ambas as partes, a aceitação da própria morte na consciência do outro é doloridíssima", diz. Reconhecer que você não fará mais parte das escolhas do ex, que não partilhará mais suas alegrias, é muito difícil. 

 A nova etapa inevitavelmente trará surpresas, e aqui reside outro obstáculo freqüente na hora de dizer adeus: o medo do desconhecido, do imprevisível. Sair de uma situação esquematizada, largar um parceiro que já conhece seus defeitos, mudar de ambiente - quem não se apavora diante desta ideia? "O adeus traz uma sensação de caos, mas é importante ter claro que se trata de uma reorganização e não de uma desestruturação", diz Regina Nanô. 

 Se você passou boa parte de sua existência vivendo para os outros e sem contato consigo mesmo, o espanto será imenso: quem é essa pessoa? Porém, se aprendeu a respeitar seu dharma (termo hindu que designa nossa natureza autêntica, essa condição singular e única que nos faz ser quem somos), as perdas aparentes serão, na verdade, ganhos. 

 O dharma não muda. "A necessidade de mudança e de dizer adeus a pessoas e situações indica o quanto estamos nos afastando ou nos aproximando dele", diz Carlos Eduardo Barbosa, estudioso da Índia e professor de sânscrito em São Paulo. Assim, quanto mais sintonia houver entre seu cotidiano e seu dharma, menos despedidas existirão. 

 A propósito, despeço-me aqui, leitor. Preciso arrumar as malas, desmontar o apartamento. Espero que, assim como a minha, sua trajetória seja permeada por belos momentos de despedida. Adeus!

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