sábado, 25 de fevereiro de 2012

Crônica do Dia - Reis e Ratos - Caetano Veloso




A ausência absoluta de gancho dramático-psicológico pode desorientar

 A função que exerceria a ditadura militar brasileira no quadro da Guerra Fria é retratada no filme com um humor feroz ancorado na paródia de diálogos do cinema americano dos anos 1940. Os atores dizem esses diálogos como se fossem dubladores lendo traduções de um suposto original em inglês. Selton Mello, que faz um agente da CIA, iniciou a carreira como dublador adolescente, enquanto o resto da agência americana é encarnado por dubladores ainda na ativa. A exceção é Kiko Mascarenhas, que fala com sotaque. Esse risco assumido pelo diretor dá a medida de quão desassombrada é sua abordagem. O estilo resultante exala raiva política e ceticismo histórico, mas não abre mão da reverência humana e da poesia. O modo de filmar diz que a decisão de Mauro Lima não era de fazer uma comédia: pode-se rir com mais frequência vendo esse filme do que “Meu nome não é Johnny”, mas com menor intensidade. 

 A questão é que aqui a ausência absoluta de gancho dramático-psicológico pode desorientar certos espectadores, sobretudo os críticos (que ainda veem amedrontados os filmes brasileiros). Aí, em vez de ser um filme amargo que usa o riso para castigar os aspectos terríveis dos episódios narrados, “Reis e ratos” vira uma comédia que não é engraçada o bastante. 

 Devo ser o cara mais suspeito que existe para falar desse filme, já que gosto muito especialmente de Mauro Lima, o diretor, e a produtora é minha empresária. Além disso, conheço o roteiro desde sua primeira forma. Mas há obviedades inegáveis. A primeira é que “Reis e ratos” é um filme original. É um caso primeiro dentro da filmografia brasileira. Seu único ancestral é “O homem do Sputnik”, de 1959. (As analogias entre os dois filmes foram primeiro observadas por Guel Arraes.) Mas o filme de Carlos Manga era uma comédia e não tinha a dor do olhar de esquerda sobre as relações entre o Brasil e os EUA — nem a experiência dos anos da ditadura. Em“Reis e ratos” trata-se de um conjunto de conflitos muito mais complexo. Ver a figura de Jango e das cantoras da noite carioca, a confusão das ordens vindas de Washington, os arruaceiros encomendados para justificar o golpe, com os olhos de hoje, ou seja, depois de revelados os casos de tortura, depois de revelados documentos do Pentágono, depois de revelados os horrores do mundo soviético, é tarefa que exige força criativa. Não há filme brasileiro que tenha encarado a situação. Mauro e o elenco o fazem com brilho. 

 A segunda obviedade é que raros filmes feitos com poucos recursos e em curto tempo apresentam um nível tão alto de feitura. A prova disso é a estabilidade com que ele se mantém, em cada sequência, no comando da atenção de quem o vê, a despeito da aparente confusão da trama e da real complicação da situação. 

 Mas o que mais me emociona em “Reis e ratos” é até onde chegam certas atuações. O para-raio de todo o imbroglio, o locutor de rádio Her vê, interpretado por Cauã Reymond, é composto com tal carinho, com tão forte inspiração lírica, que a gente se pergunta se o diretor o preparou, com extremo cuidado, para entender a riqueza de aspectos de seu personagem ou se foi o próprio garoto quem intuiu a poeticidade escondida no que poderia ser apenas grotesco. Agente paranormal soviético? anjo da guarda? bicha inocente?, quando ele surge de guerreiro cossaco salvando a vida da mulher do agente, vivida por Paula Burlamaqui, o absurdo e o caricato perdem para a Graça. A profundidade dos olhos de Rafaela Mandelli dá a todo o filme o tom de seriedade que o sustenta aquém da comédia. Aquém: os olhos de Rafaela nos prendem junto à gravidade real da história. As piadas recuam para as franjas, revelam-se extravagantes entradas para um mundo dolorido. Os encontros entre Amélia e Hervê são sempre um esboço de redenção. Por isso ela diz, no final, que a história de amor quase não se deu como prometido. 

Também: o que acontece com Selton é o oposto de um ator imitar-se a si mesmo. Na verdade, é sua origem de dublador que volta aqui nua: não é Selton se repetindo, é o gênio de Selton exibindo sua forma embrionária. O resultado é que o quick-wit é parodiado à perfeição porque Selton se expõe aquém de qualquer paródia. Otávio Muller faz um par perfeito com ele. Vindo do teatro, ele comenta de fora o que Selton vivencia de dentro. O resultado é sempre harmônico e dinâmico. Rodrigo Santoro se atira à composição do seu asqueroso Rony com uma entrega total. Seu Jorge xingando quem o ameaça de lançá-lo pela porta de um avião em voo é o malandro transbordando do revolucionário. 

 Fiz a canção-tema do filme (mais uma razão para eu ser suspeito). Em inglês, a mulher que nela fala, fala de estar no cinema e ter adormecido e, por isso, perdido as piadas e os tiroteios. Mas as plateias nas pré-estreias não dormiam: riam e reagiam como quem vê um filme cuja trama não precisa ser toda entendida para interessar. O bonequinho aqui do GLOBO deve ter visto o filme sozinho, numa cabine — e imaginou uma plateia que em nada se parecia com a que iria ao cinema depois. O Brasil ainda não se acostumou à sua condição de sujeito. “Reis e ratos” tem de ser visto como “Bastardos inglórios” ou “Queime depois de ler”. Não é filme de arte para festivais (em que a câmera balança atrás da nuca de moças desvalidas) nem diversão comercial. É a primeira realização conseguida de um autor pop brasileiro inventivo. Com nervo político.

Jornal O Globo 

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