Era nosso terceiro encontro. Nos dois primeiros, a conversa foi tão boa que já me dava por satisfeita. Mas, naquela terça-feira de março, o novelista Manoel Carlos me telefonou sugerindo um novo encontro no fim da tarde, na livraria Argumento, no Leblon. Quando cheguei, Maneco – como é chamado pelos amigos – já estava lá, numa mesinha de canto, me olhando. A atriz Fernanda Montenegro tem razão. “Os olhos de Maneco são como ventosas. Ele se expõe pouco e observa muito”, diz ela. Neste último encontro, Manoel Carlos pergunta mais de mim do que eu dele. Quer saber de minha rotina de trabalho e como faço para trabalhar e criar os filhos. É bom ouvinte. Presa na armadilha, conto os detalhes, pensando se inspirarei algum personagem. “As melhores histórias estão aqui e ali”, diz ele.
Famílias como a minha e a sua lhe interessam. Os laços de família – título de uma de suas novelas de maior su-cesso – são a matéria-prima de suas histórias. Talvez por isso nenhum outro produto da dramaturgia mundial tenha tantas cenas de café da manhã, almoço e jantar quanto suas histórias. Nos lares se desenvolvem tanto as tramas mais trágicas quanto a discussão trivial sobre o aumento do pão. Os gêmeos separados no berço de Baila comigo, a mãe que troca de bebê com a filha que perdeu sua criança no parto de Por amor, a filha amada que fica tetraplégica em Viver a vida – todos esses dramas se misturam à crônica de questões íntimas como o vazio feminino, a mulher que não consegue ser fiel, o homem que espera a mulher idealizada. Agora, quase aos 80 anos (que completará no ano que vem), Manoel Carlos diz que quer escrever só mais uma novela. Acompanhadas diariamente por 50 milhões de telespectadores, as novelas das 9 da noite da TV Globo, o horário mais nobre da televisão brasileira, saem da pena de poucos autores. Trata-se de trabalho cansativo, cercado de pressão por todos os lados. Nesse seleto time de autores – as “ararinhas-azuis”, raras e em extinção, como o escritor Aguinaldo Silva definiu –, Maneco é o mais velho.
Famílias como a minha e a sua lhe interessam. Os laços de família – título de uma de suas novelas de maior su-cesso – são a matéria-prima de suas histórias. Talvez por isso nenhum outro produto da dramaturgia mundial tenha tantas cenas de café da manhã, almoço e jantar quanto suas histórias. Nos lares se desenvolvem tanto as tramas mais trágicas quanto a discussão trivial sobre o aumento do pão. Os gêmeos separados no berço de Baila comigo, a mãe que troca de bebê com a filha que perdeu sua criança no parto de Por amor, a filha amada que fica tetraplégica em Viver a vida – todos esses dramas se misturam à crônica de questões íntimas como o vazio feminino, a mulher que não consegue ser fiel, o homem que espera a mulher idealizada. Agora, quase aos 80 anos (que completará no ano que vem), Manoel Carlos diz que quer escrever só mais uma novela. Acompanhadas diariamente por 50 milhões de telespectadores, as novelas das 9 da noite da TV Globo, o horário mais nobre da televisão brasileira, saem da pena de poucos autores. Trata-se de trabalho cansativo, cercado de pressão por todos os lados. Nesse seleto time de autores – as “ararinhas-azuis”, raras e em extinção, como o escritor Aguinaldo Silva definiu –, Maneco é o mais velho.
Ele entregará no fim deste mês a sinopse de seu último folhetim, previsto para ir ao ar em 2013. Será sua derra-deira Helena, nome comum a todas as suas protagonistas desde Baila comigo, de 1981. Vividas por estrelas como Regina Duarte, Vera Fischer e Maitê Proença (leia a galeria abaixo), elas são apresentadas ao público e amadas por ele a cada três anos, mais ou menos. Helena, ele costuma repetir, não foi nome de namorada, mulher, nem de alguém da família. “Escolhi por ser um nome forte. É referência a Helena de Troia”, diz. Uma curiosidade: em 1952, com menos de 20 anos, Maneco adaptou para a antiga TV Paulista o livro Helena, de Machado de Assis. Era teleteatro, representado ao vivo diante das câmeras. “Essa Helena não está diretamente relacionada às Helenas das novelas”, diz ele. Agora, 60 anos depois, já escolheu a atriz que interpretará sua última Helena: Julia Lemmertz, filha de uma de suas mais queridas Helenas, Lilian Lemmertz, morta em 1986. Ela encabeçava o elenco de Baila comigo, primeira novela de Maneco no horário das 9.
Manoel Carlos ouve por vício profissional e, pela mesma razão, é também um narrador fascinante. É visível que narra suas histórias menos para impressionar que pelo prazer de lembrar dos acontecimentos e dos amigos – muitos já morreram. Se prende a detalhes saborosos, como o apelido dado a Chico Buarque e Nara Leão no programa Para ver a banda passar, de 1967, na TV Record. “Como dois tímidos poderiam estar à frente de uma atração? Eles eram ótimos, mas falavam pouco e baixo. Ganharam o apelido de desanimadores de auditório”, diz. Maneco também parece viajar no tempo ao falar sobre a morte de Jardel Filho, em 1983. Jardel era o galã de sua novela Sol de verão. Vivia um mecânico doce e rústico, par romântico da protagonista rica. O casal ganhara o Brasil, e a audiên¬cia ia muito bem. Num domingo de fevereiro, Maneco saiu de casa cedo para comprar os jornais. Em tempo pré-internet, passava numa banca de Ipanema e levava várias publicações. “Os jornais são sempre fonte de enredos e personagens”, afirma. Naquele dia, não chegou a ler nenhum. No rádio do carro, era anunciada a morte de “Jardel Filho, o Heitor de Sol de verão, aos 56 anos, de infarto”. Ficou catatônico por dez minutos, sem saber o que fazer. Uma hora depois, estava na casa de Jardel com os amigos Tony Ramos e Paulo Figueiredo, que também faziam parte do elenco. Antes que o corpo fosse levado, fizeram a barba do amigo morto. “Estava grande. Jardel era bonito demais para se despedir daquele jeito”, diz. Maneco não escreveu o fim da história. Não conseguiu. Foi substituído por Lauro Cezar Muniz.
Não seria a primeira nem a última vez que ele teria de lidar com a morte precoce de gente amada. Quando seus filhos ainda eram adolescentes, perderam a mãe, a ex-mulher Maria de Lourdes, artista plástica. Com apenas 36 anos, ela caiu da escada, em casa, quando saía para uma festa. Os dois haviam se casado quando ele tinha 19 anos, e ela 17. “Ela estava grávida e resolvemos ficar juntos”, diz. O bebê que os unira, Manoel Carlos Filho, o Manequinho, morrera em março, três semanas antes de nossa primeira conversa, de infarto. Tinha 59 anos. “A morte de um filho é uma armadilha no fim de um corredor escuro”, afirma Maneco. Uma armadilha que, para ele, veio duas vezes: em 1988, seu segundo filho, Ricardo, ator, morreu por complicações da aids. A filha Júlia, também atriz, deu dois sustos – duas meningites na infância, que também quase a levaram. Maneco tem ainda mais dois filhos – Maria Carolina, roteirista, de seu casamento com Cidinha Campos, e Pedro, irmão de Júlia, de seu atual casamento, com Bety Almeida. Instintivamente, lhe digo que, com tantos dramas, sua vida poderia ser uma novela. Por trás dos aros grossos de seus óculos, seu olhar me diz que meu comentário nada tem de inédito.
Manoel Carlos Gonçalves de Almeida começou na televisão meses depois que a novidade foi ao ar pela primeira vez no Brasil. Era um ator de teatro de 20 anos, que largara a escola antes do que hoje seria o ensino médio. Já tinha mulher, dois filhos e precisava de dinheiro. Entre o jovem leitor voraz dos clássicos da literatura de 1951 e o campeão de audiência de hoje, trabalhou em projetos tão importantes que suas oito décadas até parecem curtas.
Depois do teleteatro e dos programas humorísticos nos anos 1950, passou na década seguinte para a linha de musicais. Roteirizava, entre outras coisas, os textos de Elis Regina no legendário O fino da bossa. Em 1971, dirigiu o primeiro show de Chico Buarque no tradicional Canecão, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, já roteirista consa-grado, foi levado pelas mãos do então todo-poderoso da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, para ser o primeiro diretor-geral de um programa novo, que misturava jornalismo, dramaturgia e show: o Fantástico. Ele criava, dirigia e alinhavava o programa. As novelas começaram em 1978 – também por iniciativa de Boni. Dois anos depois, participou de um dos projetos mais ousados da época, a série Malu mulher, que tratava da emancipação feminina. “Manoel Carlos pode fazer o que quiser. Seu talento não tem limites”, diz Boni.
Revista Época
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