sexta-feira, 8 de junho de 2012

Te Contei, não ? - A morte pede passagem

                                        

                                     Por Adriana Dias Lopes


São Paulo, madrugada de sábado para domingo, 15 de abril. A festa de aniversário do filho de 10 anos acabara fazia pouco tempo quando Alexandro Luiz Neves decidiu ir ao encontro de um amigo perto dali. De motocicleta, seu meio de transporte e instrumento de trabalho, levaria pouco mais de cinco minutos. Neves saiu de casa prometendo voltar logo. Não voltou. No meio do caminho, foi atropelado por um carro que havia cruzado o sinal vermelho. Neves foi arremessado a 5 metros de distância. Aos 33 anos, morreu no asfalto, vítima de traumatismo craniano e hemorragia interna.
A morte de Neves ilustra, tristemente, uma das grandes tragédias de nosso tempo. O Brasil é o segundo país do mundo em vítimas fatais em acidentes de moto. São 7,1 óbitos a cada 100 000 habitantes. Só no Paraguai se morre mais (veja o quadro nas págs. 138 e 139). Nos últimos quinze anos, a taxa de mortalidade sobre duas rodas aumentou inacreditáveis 846,5%. A de carros, 58,7%. “Nunca se viu no Brasil um salto tão grande no número de mortes no trânsito com um único tipo de veículo”, diz o sociólogo Julio Jocobo Waiselfisz, coordenador do Mapa da Violência 2012, minucioso levantamento feito pelo Instituto Sangari, obtido com exclusividade por VEJA. O estudo, realizado a partir da avaliação de 1 milhão de certidões de óbito, traz o maior e o mais completo retrato sobre os acidentes de trânsito no país. Até o fim do ano, 13 000 brasileiros morrerão nas ruas e avenidas. A violência é tanta que 40% deles sucumbirão ali mesmo, no local do acidente, como Neves, que acabara de cantar Parabéns a Você para o filho. Engana-se quem associa as motocicletas aos motoboys de São Paulo, sempre ávidos por um espaço inexistente, a uma velocidade inadequada e perigosa. A maioria dos brasileiros que andam sobre duas rodas (40% do total) o faz para substituir o transporte público, e apenas 16% como instrumento de trabalho.
Desde o início dos anos 2000, com o financiamento bancário facilitado, o Brasil testemunha um crescimento impressionante no número de motos. São 18,5 milhões em circulação – metade do total de carros. Daqui a quatro anos, segundo estimativas dos especialistas, a quantidade de motos rodando deve ultrapassar a de carros. Na Região Norte, esse desenho já é uma realidade, conforme mostrou o Sistema de Indicadores de Percepção Social, com base em informações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Nos estados do Norte, as motos representam 64% do total de veículos motorizados. “O Brasil não dispõe de políticas rigorosas que regulamentem o comportamento do motoqueiro”, diz a médica Julia Greve, fisiatra do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, centro de referência no tratamento de acidentados de trânsito. A única lei de segurança sobre o assunto é a que obriga o uso de capacete.
Há duas semanas, o HC, em parceria com federações da indústria, de sindicatos de condutores e da Companhia de Engenharia de Tráfego paulistana, realizou um fórum com propostas para reduzir os acidentes e as mortes. Um dos pontos mais polêmicos refere-se ao local de circulação da moto. Nas metrópoles, e prioritariamente em São Paulo, os motoqueiros costumam trafegar no chamado “corredor da morte”, entre os carros. Nessa apertada faixa, desafia-se constantemente a lei de Isaac Newton segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Em alta velocidade, o menor dos estragos é o festival de espelhos retrovisores destruídos. Há, evidentemente, os cuidadosos, e convém não tomar o todo pela parte – mas a maioria voa. Aliás, definir a velocidade máxima para as motos foi um dos pontos discutidos no fórum do HC. O Brasil é um dos poucos países a permitir a circulação de motociclistas entre os carros e, pior ainda, a deixar que a velocidade de ambos seja a mesma. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde os motoqueiros só podem trafegar atrás dos carros, os índices de morte equivalem a um quarto dos óbitos registrados nas ruas brasileiras. Diz o ex-motoboy Cleydener de Almeida Lacerda, de 33 anos: “Não dá para não correr, já que todo mundo corre”. Por causa dos perigos da profissão, há quatro anos ele decidiu trocar o asfalto pela segurança de uma oficina mecânica.
A moto sempre deixa seu condutor em situação de extrema vulnerabilidade. “O motoqueiro está inevitavelmente exposto a graves riscos, independentemente do contexto urbano”, diz o cirurgião Jorge dos Santos Silva, chefe do trauma do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas. Em uma colisão a 50 quilômetros por hora, o impacto sobre o corpo do condutor (não importa se o do carro ou o da moto) será equivalente ao de uma queda livre de 10 metros de altura. Se o choque ocorrer no dobro da velocidade, é como se ele despencasse de 40 metros. “O motociclista está com o corpo livre e o condutor do automóvel, de cinto de segurança, protegido pela funilaria”, diz Octacílio Martins Júnior, cirurgião do serviço de cirurgia de emergência do Instituto Central do HC, de São Paulo. A maioria das lesões nos acidentes com motociclistas ocorre nas estruturas do corpo mais expostas, em especial os membros inferiores. Nesses casos, em geral, o dano não se limita a uma única estrutura. “O impacto pode lacerar a pele, músculos, tendões, nervos e ossos – tudo ao mesmo tempo”, explica o cirurgião Marcelo Rosa de Rezende, também do Instituto de Ortopedia do HC. O tratamento costuma ser complexo, levando muitas vezes à realização de transplantes autólogos (quando o enxerto é extraído do próprio organismo do paciente). Em cerca de 5% dos acidentes desse tipo, a única saída é a amputação.
É tão comum ver a morte pedir passagem que situações cotidianas assustadoras, mas não tão graves, são quase comemoradas. O mal menor faz sorrir. No dia 12 de março, a reportagem de VEJA passou dez horas no Pronto Socorro do HC paulistano. Eram quase 10 horas da manhã quando chegou uma ambulância do Corpo de Bombeiros trazendo um motoqueiro. Ele estava desacordado e sem o movimento em uma das pernas. Pouco tempo antes, havia sido fechado por um carro enquanto trafegava em alta velocidade. Ao longo de vinte minutos, quatro médicos realizaram concomitantemente os exames clínicos e de anamnese necessários para descartar a possibilidade de lesões cardíacas ou cerebrais. O paciente foi diagnosticado com uma perna quebrada. À 1 hora da tarde, recebeu alta. Foi um acidente simples perto das tragédias que invadem as ruas brasileiras. Uma perna quebrada, no entanto, que poderia ter sido evitada caso o Brasil estivesse de fato preparado para ser o país das motocicletas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário