sábado, 9 de junho de 2012

Te contei, não ? - Ossos que falam



O Instituto Nacional de Criminalística estabelece uma série de procedimentos para se investigar um crime: o reconhecimento, que delimita a extensão da cena do crime e a preserva; a documentação cuidadosa e a observação científica do lugar; a procura de provas e evidências a serem coletadas; a análise científica num laboratório das provas recolhidas pelo perito. É na junção dessas áreas que se encontra a solução de, por exemplo, um assassinato. Seria possível usar os mesmos procedimentos para “desvendar” um crime cometido há vários séculos, com milhões de vítimas? Pesquisas recentes feitas em universidades brasileiras indicam que a adoção da mesma interdisciplinaridade, reunindo historiadores, arqueólogos, geneticistas (paleogenéticos) e patologistas, poderá, enfim, dar conta de um dos maiores crimes já cometidos: a escravidão.
“Para se entender a realidade da escravidão é preciso devassar arquivos, desencavar o passado e submeter as evidências materiais aos analistas nos laboratórios. É preciso superar a mera historiografia documental ou a visão economicista que só vê o escravismo do ponto de vista dos modos de produção. A escravidão deve ser materializada”, diz Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu Nacional, no Rio, e coordenadora do projeto de escavação do Cais do Valongo, porto por onde passaram, entre 1811 e 1831, 1 milhão de africanos. Foram as obras do Porto Maravilha, a revitalização da área portuária carioca iniciada neste ano tendo em vista as Olimpíadas de 2016, que permitiram aos arqueólogos reabrir a “cena do crime” oculta desde 1843, quando foi recoberta com 60 centímetros de pavimento e se transformou no Cais da Imperatriz, lugar de recepção para Teresa Cristina, a futura mulher de Pedro II. “Havia outros lugares, mas se optou pelo Valongo como forma de apagamento das manchas passadas da escravidão”, diz Tânia. Essas cercavam todo o cais, formando o complexo do Valongo. Casas próximas armazenavam e comercializavam os negros (veja vídeo sobre as escavações). Quem ficava doente era levado ao lazareto vizinho, onde o tratamento se reduzia a “sangrias” feitas por barbeiros negros. Os que não resistiam eram enterrados, com total descaso, em valas comuns a poucos metros do cais. Logo, o sítio é o sonho de qualquer arqueólogo, trazendo à luz, diariamente, pilhas de objetos pessoais e rituais dos chamados “pretos novos”, cativos recém-chegados da África: contas, búzios, cachimbos, brincos com a “meia-lua” islâmica, miçangas e até “pedras de assentamento de orixás”. Sacerdotes e especialistas na cultura e religião africanas ajudam a reconhecer e catalogar os achados.
“O complexo do Valongo foi criado para tirar os negros do centro do Rio, pois eles eram vistos como ameaça à saúde, ‘carregadores de doen-ças’ e um perigo à ordem pública”, explica o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008). “O Valongo era parte do projeto ‘civilização nacional’, intensificado com a transformação do Rio em sede do Império. Mas resultou de um paradoxo: criar uma Corte ‘europeia’ com multidões de negros soltos pelas ruas. Pensou-se que a solução seria usar os escravos para criar a cidade à altura do rei. Esse movimento, porém, aumentou a demanda por mais escravos e, assim, a cidade não conseguia perder as ‘feições do atraso’. Era preciso diminuir um pouco daquela promiscuidade e, assim, tirou-se o mercado escravista da região do Paço, levando-o para um lugar distante e desabitado: o Valongo, um porto natural na Gamboa”, construído por ordem do vice-rei, o Marquês de Lavradio. Em pouco tempo, o comércio de escravos atraiu a população e o local virou um dos mais movimentados do Rio. Além do cais, o complexo do Valongo abrigava 50 “casas de carne”, onde os negros recém-chegados eram negociados. “A primeira loja de carne em que entramos continha 300 crianças. O mais velho podia ter 12 anos e o mais novo, não mais de 6. Os coitadinhos ficavam agachados num armazém. O cheiro e o calor da sala eram repugnantes. O termômetro indicava 33ºC e estávamos no inverno!”, escreveu o inglês Charles Brand em 1822.
Após 60 dias a bordo de um “tumbeiro”, os africanos, exauridos e doentes, enfrentavam a falta de alimentação, de roupas e moradias apropriadas. A combinação com os castigos os deixava propensos a contrair vírus, bacilos, bactérias e parasitas que floresciam na população densa do Rio. Mais de 4% dos escravos morriam no primeiro momento, entre o desembarque, a quarentena e a exposição no mercado. Era preciso um lugar para enterrar tantos mortos e assim criou-se nas proximidades o Cemitério dos Pretos Novos. “A mortalidade alta justificaria lugar na lógica de importação de mão de obra em números crescentes, onde mais mortes significava trazer mais escravos. Nos seus últimos seis anos, o cemitério superou uma média anual de mil enterros”, afirma o historiador Júlio César Pereira, da Fiocruz, autor de À flor da terra (Garamond, 2007). A vinda da Corte aumentou a chegada de cativos pelo porto do Rio: se em 1807 entraram menos de 10 mil, em 1828 foram 45 mil. O ano também marcou um recorde no cemitério com o enterro de mais de 2 mil pretos novos. “Sem esquife e sem a menor peça de roupa são atirados numa cova que nem tem dois pés de profundidade. Levam o morto e o atiram no buraco como a um cão morto, põem um pouco de terra em cima e se alguma parte do corpo fica descoberta, socam-no com tocos de madeiro, formando um mingau de terra, sangue e excrementos”, descreveu o viajante Carl Seidler em 1834. O lugar, porém, obedecia à lógica e às regras que engendraram o complexo: “Os escravos que não forem vendidos não sairão do Valongo nem depois de mortos”.
Estima-se que o cemitério abrigou mais de 20 mil corpos até ser fechado em 1830, por causa de reclamações dos vizinhos, temerosos dos “miasmas” exalados pelos cadáveres “à flor da terra”, bem como da suspensão do tráfico, não obstante sua continuidade ilegal. O lugar caiu no esquecimento, vindo a ser coberto pela malha urbana que se expandiu na região portuária em fins do século XIX. Só foi redescoberto em 1996 durante uma reforma numa casa, quando operários abriram sondagens para alicerce e encontraram milhares de dentes e fragmentos de ossos humanos. Como uma “cena do crime” era preciso saber quem eram as vítimas. Determinar a origem geográfica dos 5 milhões de escravos forçados a vir ao Brasil é fundamental para várias áreas do conhecimento, já que dá pistas da constituição genética e cultural dos brasileiros, muito impactados pela mestiçagem. “O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da humanidade. Entre os séculos XVI e XIX mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e levados para a América e Europa. Desses, cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia”, afirma o historiador Manolo Florentino, da UFF, autor de Em costas negras (Companhia das Letras, 1997). “Os registros dos navios negreiros não são confiáveis sobre a origem dos africanos, porque o porto de embarcação, registrado nos arquivos, nem sempre refletia a origem geográfica dos negros, por vezes capturados no interior, a quilômetros do litoral”, observa.
Nessa tarefa os historiadores recebem grandes contribuições dos geneticistas, como mostra a reportagem “A África nos genes do povo brasileiro” (Pesquisa FAPESP, nº 134) sobre a pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que comparou o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e brasileiros. Com isso, Pena ajudou a revisar a versão histórica de que a maior parte dos escravos era da região centro-ocidental africana, deixando de lado a participação relevante de negros vindos da África Ocidental. “Por isso a transdisciplinaridade é fundamental para entender a escravidão. Cada enfoque é limitado para dar conta das perguntas e nenhum é suficiente. As pesquisas genéticas são muito informativas, mas partem da análise de brasileiros que são descendentes dos escravos”, diz Pena. Daí a importância do Cemitério dos Pretos Novos, que abrigava primordialmente escravos africanos recém-chegados ao Brasil.
Registros feitos pela igreja de Santa Rita, que administrava o lugar, permitem afirmar que 95% dos corpos são de pretos novos (os outros 5% seriam de escravos “ladinos”). O sítio privilegiado deu origem à pesquisa bioarqueológica Por uma antropologia biológica do tráfico de escravos africanos para o Brasil: análise das origens dos remanescentes esqueletais do Cemitério dos Pretos Novos, coordenada pelo bioantropólogo Ricardo Ventura Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), concluída recentemente. Foi feita a análise da composição isotópica de estrôncio de esmalte dentário presente nas amostras colhidas em 1996, com a finalidade de determinar a origem geográfica dos vestígios. “Os dentes são formados na infância e não se remodelam, o que permite descobrir onde alguém viveu seus primeiros anos. O estrôncio é como um DNA geoquímico e existe como dois isótopos, de números 86 e 87. As proporções entre eles são assinaturas geoquímicas ligadas às características das rochas de uma região”, explica Sheila de Souza, integrante do projeto. A pesquisa revelou uma grande diversidade de valores dessas proporções, o que indica (e confirma) que os escravos trazidos ao Rio vieram de múltiplas regiões da África. Confirmou-se também que se tratava de negros africanos, jovens e recém-chegados.
Para estabelecer essa delimitação foram detectadas “modificações intencionais dos dentes”, cortes feitos na arcada de motivação cultural, característicos de regiões africanas como Moçambique, o que, de certa forma, corrobora a tese de Pena. “Vimos também o polimento dos dentes, que geram ranhuras microscópicas e são características da higiene bucal de grupos africanos, que usavam gravetos nos dentes e mastigavam plantas como ‘pasta dental’. É uma prática restrita de pretos novos, pois, uma vez aqui, não havia como mantê-la. Dentes de ‘ladinos’ não têm essas marcas”, diz Sheila. A variabilidade de razões de estrôncio observada contrasta com o encontrado em outros cemitérios de escravos das Américas, sendo maior, por exemplo, do que a medida nos africanos enterrados no New York Burial Ground, cemitério de escravos americanos encontrado em Manhattan em 1991.
“Na contramão da América do Norte e de outras regiões do Brasil, o Rio recebia uma quantidade mais expressiva de cativos com uma maior diversidade étnica e genética”, afirma Santos. Pode-se identificar que a base alimentar desses indivíduos na infância não continha itens de procedência marinha. “Faz todo o sentido. A chegada da família real aumentou a demanda por escravos, culminando na fase áurea do tráfico, que acabou legitimando uma situação de fato: a Coroa não tinha mais o monopólio, o que dava livre acesso ao comércio. Logo, poucas partes do continente ficaram ilesas aos traficantes e, entre 1760 e 1830, o Rio, revelam os registros, efetivamente recebeu negros de muitas regiões africanas”, nota Florentino. “Também se confirma um padrão do tráfico, que agia da costa para o interior, em busca dos que haviam migrado do litoral.”
É possível comprovar até o caminho da ilegalidade, que não rendeu documentação. Em 1815, Portugal e Inglaterra assinaram um acordo que proibia a compra e tráfico de escravos ao norte do equador. “As pesquisas de Pena e Santos demonstram, na prática, que, apesar da proibição, os contrabandistas atuavam na área. Dizendo navegar até Angola, desviavam para a Nigéria, onde pegavam escravos, que registravam como angolanos”, diz o historiador. A análise sobre o cemitério igualmente comprovou uma faceta pouco conhecida do tráfico: a baixa faixa etária dos cativos. “Os vestígios são de negros muito jovens”, fala Santos. Cerca de 780 mil crianças foram escravizadas para o Brasil a partir de meados do século XIX, porque eram mais “maleáveis” que os adultos e suportavam melhor as travessias. Nos estertores do tráfico, em especial no Rio, um em cada três escravos era criança. “A elite escravocrata ao sentir que o fim do tráfico estava próximo passou a buscar mais mulheres, ou seja, mais úteros para gerar escravos; e crianças, que trabalhariam por mais tempo após o fim do tráfico”, explica Florentino.

Novas escavações no cemitério corroboram essa prática pela presença de crânios e arcadas de jovens. As prospecções foram retomadas pela equipe de Tânia Lima, que, temerosa das consequências da especulação imobiliária em torno do sítio, por causa do Porto Maravilha, encarregou o arqueólogo Reinaldo Tavares, do Museu Nacional, da pesquisa O Cemitério dos Pretos Novos: delimitação espacial, que até o final do ano traçará o mapa do cemitério. O seu tamanho é uma incógnita. Segundo relatos da época, teria 50 braças, algo como um campo de futebol. O arqueólogo desconfia da medida, exígua demais para abrigar tantos corpos. Abrindo valas no entorno do sítio ele busca os seus limites. “Não é preciso cavar mais do que 70 centímetros para deparar com restos de corpos”, diz. O lugar era uma vala comum onde os corpos eram jogados, após ficarem dias amontoados num canto. Quando a fossa enchia, era reaberta e os vestígios eram incinerados e destruídos para dar lugar a novos corpos. “Encontramos também lixo urbano misturado aos ossos: comida, vidros, material de construção, animais mortos, dejetos. A tese inicial era que o cemitério fora transformado em ‘lixão’ da vizinhança após seu fechamento. As escavações apontam que ele ainda funcionava quando os detritos foram jogados com os corpos.”
A genética só aumenta o peso simbólico provocado por esse desprezo. “Os escravos entravam no Brasil pelo Nordeste ou pelo Rio. A própria proximidade geográfica levou escravos da África Ocidental para o Nordeste e os da África Central para o Rio. Desses, a grande maioria era de bantos”, diz Pena. Seriam, portanto, corpos desse grupo étnico que lotam o cemitério. Do cais e dos armazéns era possível ver como os seus mortos eram tratados. “Para os bantos, o sepultamento indigno impossibilita a reunião entre o morto e seus antepassados, crença central da etnia. Pode-se imaginar que se sentiam condenados a uma ‘segunda morte’, cientes de que se apagara da memória o lugar de seu repouso final”, observa Júlio César. Os vivos, porém, não tinham grandes chances: só um terço dos pretos novos viveria como escravo mais do que 16 anos.
A causa dessas precocidades dos óbitos eram as muitas doenças com que conviviam, como comprovam as pesquisas paleogenéticas de Alena Mayo, do Laboratório de Genética Molecular de Microrganismos da Fiocruz, que rastreia, via DNA, as moléstias do Rio colonial. No cemitério de escravos da praça XV, por exemplo, verificou-se pelas ossadas que 7 em cada 10 cativos estavam infectados com protozoários ou helmintos. “Era resultado da péssima nutrição dos escravos, aliada às condições impróprias de higiene em que viviam”, diz Alena. A descoberta genética comprova vários aspectos do estudo clássico da historiadora americana Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000). Como a afirmação de que “as condições de vida dos escravos e as doenças matavam mais do que a violência física do cativeiro”.
A pesquisadora estudou o Cemitério dos Pretos Novos, onde encontrou traços de tuberculose, um total de 25% de amostras positivas. “As condições desumanas em que eram transportados faziam os escravos suscetíveis a contrair, já na chegada, a doen-ça, então difundida pela cidade.” Isso também remete à pesquisa documental da americana: “A mortalidade dos africanos recém-chegados ao Valongo não se relacionava apenas às condições terríveis dos ‘tumbeiros’. Mesmo sobrevivendo à travessia, no cais eles enfrentavam um desafio maior: adaptar-se às novas, e péssimas, condições de vida para não sucumbir, de cara, às doenças do Rio”.
Uma escavação em particular trouxe revelações importantes. “Ossadas encontradas na igreja Nossa Senhora do Carmo, no Rio, de sepulturas do século XVII, destinadas a pessoas de ascendência europeia, apesar de muito degradadas, deram positivo para tuberculose em 7 das 10 costelas analisadas”, afirma Alena. No local foram também encontradas ossadas de índios e negros. Na comparação dos vestígios, a pesquisadora concluiu não só que a tuberculose já grassava na cidade no século XVII, mas que, na medida em que apenas os europeus deram positivo para tuberculose, foram os colonizadores os responsáveis pela introdução da doença no Rio. “Em estudos que fiz sobre material pré-colombiano, encontrei helmintíases intestinais e registros da doença de Chagas. Concluímos que eram doenças que não vieram com os europeus. No Brasil colonial, ao contrário, evidencia-se o papel de europeus na introdução e disseminação de doenças epidêmicas como a tuberculose.” Logo, os temores das “doenças dos negros” que levaram à criação, exatos 200 anos atrás, do Cais do Valongo, seriam infundados. Não há crime perfeito quando os conhecimentos se reúnem.

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