sábado, 9 de junho de 2012

Te Contei, não ? - Uma leitura de Tristão e Isolda à luz da crítica feminina

 

 

 

Uma Leitura de Tristão e Isolda à Luz da Crítica Feminina



Profa. Ms. Luciana de Campos, doutoranda em Letras pela UNESP. fadacelta@yahoo.com.br


Artigo originalmente publicado na revista Brathair n. 2, 2001. www.brathair.cjb.net
 
Da Antigüidade para a Idade Média, a mulher passa de mito a mistério. Incompreensível, suscita a narrativa ou a imagem portadoras de mensagens de saber. Michel Rouche

O romance de Tristão e Isolda – versão escrita por Béroul, na França, no século XII – teve a sua origem na lenda celta do século IX dos jovens que, de tanto amor, morreram de tanto amar.
Este texto medieval que novecentos anos depois de ser escrito ainda encanta e aguça a mente de estudiosos – críticos literários, historiadores e antropólogos –, que desejam estudar e teorizar determinados aspectos da obra.
Um ponto de relevância no estudo de Tristão e Isolda é a presença de elementos da cultura celta que permeiam todo o texto, principalmente no que se refere a personagem Isolda, a Loura, princesa celta que é dada em casamento ao Rei Marcos da Cornualha e que vive uma intensa paixão com Tristão, sobrinho do rei e melhor cavaleiro do reino.
Os elementos da cultura celta presentes na obra – principalmente aqueles que dizem respeito a condição feminina –, podem ser analisados à luz da crítica feminina que é um instrumento analítico útil para o leitor/estudioso do século XXI, pós movimentos feministas radicais, compreender o comportamento da Mulher/Rainha Isolda, a Loura que tanto diferia das rainhas da sociedade medieval cristã.
A representação literária da Mulher/Rainha Isolda, a Loura será o objeto de análise nessa leitura da obra de Béroul.
Essa análise – não só da representação literária da personagem Isolda, a Loura –, dos elementos da cultura celta presentes na obra serão norteados pela crítica feminina, que, aliada aos Estudos Culturais, permite uma leitura mais abrangente da obra principalmente no que diz respeito ao estudo da personagem feminina e sua trajetória na obra literária.
A análise da representação feminina em Tristão e Isolda centrada na personagem Isolda leva o leitor a uma maior compreensão dos aspectos da cultura celta presentes na obra. Esses aspectos culturais são melhor analisados pelo viés da crítica feminina que, permite ao estudioso como ao leitor, uma outra visão dessa narrativa medieval. Visão esta que traz à tona aspectos femininos que muitas vezes não são levados em conta numa leitura que não seja guiada pela crítica feminina.
Portanto, ler Tristão e Isolda à luz da crítica feminina contemporânea permite uma outra análise da obra de Béroul, que possibilita conhecer e entender melhor o papel da mulher na sociedade celta e a sua representação literária.
 
Os elementos culturais femininos em Tristão e Isolda
Realizar um estudo dos elementos culturais femininos presentes na versão francesa de Tristão e Isolda nos apresenta dados relevantes do comportamento feminino na sociedade medieval.
Escrita no século XII quando a Europa Ocidental vivia um momento especial, o chamado Renascimento do Século XII, as artes em geral e, principalmente a literatura estavam vivenciando um período de grande incentivo. Nesse cenário acolhedor para a criação no seu mais amplo espectro Béroul escreveu a sua versão da lenda celta de Tristão e Isolda.
Leonor d'Aquitânia, rainha de França foi a patrocinadora de uma das mais fecundas e criativas oficinas literárias da Idade Média Central na França (séculos XI a XIII), onde a lenda dos jovens que tanto amor, morreram de tanto amar (WISNIK, 1988: 145), foi escrita com graça e beleza e ganhou fama em todas as cortes da Europa.
Primeiramente, a história dos dois jovens era cantada e acompanhada pelo alaúde, gaita de foles, naqara, cítola, cornamusa e tambolril, a “balada” de Tristão e Isolda era apresentada por músicos e cantores nas festas das cortes e era também cantada nas feiras e praças dos mercados e, assim todo o povo – dos reis aos mendigos - , ouviam as aventuras e desventuras dos amantes.
Esses cantores além da sua função lúdica de entreter os nobres e o povo em geral, eram os responsáveis por difundir a produção artística das oficinas de Leonor d'Aquitânia e de tantos outros reis que patrocinavam as artes como forma de promoverem o seu nome e seu governo.
Os aspectos culturais presentes nas baladas e canções produzidas nessas Oficinas difundiam e, ao mesmo tempo mantinham vivos muitos elementos de culturas que já estavam totalmente cristianizadas, mas, que permaneciam vivos e difundidos graças a letra e a voz (ZUMTHOR, 1994) da nascente literatura medieval.
Todos esses elementos culturais foram preservados na literatura e são fundamentais para a compreensão do funcionamento de muitas sociedades; aqui, o caso específico da sociedade celta, onde é ambientada a narrativa de Tristão e Isolda.
Essa leitura que se pretende fazer da obra tem como foco os aspectos femininos, ou melhor, a representação feminina que foi construída da personagem Isolda, a Loura, construída por Béroul no século XII, quando a Europa já estava totalmente cristianizada e vivenciava a “delicada experiência da cortesia”, que ensinava tanto a homens como a mulheres a amar e se comportar diante do ser amado.
Isolda, a Loura, é uma princesa que vive nas terras de Irlanda, mais precisamente em Weisefort, leste do país. Ela é filha de reis e, com sua mãe que, além de rainha é uma grande curandeira, conhecedora das artes da cura, da manipulação de remédios eficazes para todos os males e do emprego das ervas que fazem duas pessoas se amarem para sempre, Isolda, a Loura aprende com a mãe também a arquitetar seus pequenos ardis para sobreviver num mundo onde a espada e a armadura exercem mais poder que o caldeirão.
A medida que a personagem Isolda, a Loura, vai sendo apresentada seus ardis para encontrar às escondidas seu amado Tristão mostram-se cada vez mais elaborados e eficazes. Ela, mulher/rainha pode fazer uso de todas as suas armas para não ser descoberta pelo Rei Marcos, seu esposo e tio de Tristão. Isolda não mede esforços, ela sabe que antes de ser rainha ela é uma mulher. Como rainha que é, Isolda, a Loura, tem uma profunda ligação com a terra e o povo porque, na cultura celta a rainha era vista como mãe simbólica de seus súditos (FRANCO JÚNIOR, 1996: 141). A relação de Tristão e Isolda é vista então como incestuosa o que na sociedade celta não é condenado, o incesto era fato antropológico normal (FRANCO JÚNIOR, 1996:141).
Mas, apesar da relação de Tristão e Isolda ser aceita e tolerada, os jovens têm que superar muitos obstáculos, pois Tristão é o herdeiro direto de Marcos e futuro rei das Cornualhas. E, no momento em que a inocência e fidelidade de Isolda são contestadas pelos barões do Rei Marcos, percebe-se toda a astúcia da mulher/rainha celta.
Quando é convocada pelos barões a segurar o ferro em brasa e jurar perante o Rei Artur sua inocência, Isolda, a Loura convoca Tristão a estar próximo do local onde será realizado seu julgamento vestido como um leproso. Assim que chega ao local, Isolda, reconhece Tristão em seus andrajos, mas dirige seu olhar para os barões e pede que alguém a ajude a descer de seu palafrém. Ninguém a ajuda. Só o leproso se oferece para carregar a rainha em seus ombros e conduzi-la até a tribuna. Quando segura o ferro em brasa Isolda, a Loura jura que teve entre as suas coxas somente dois homens: seu esposo, o Rei Marcos e o leproso – que é Tristão –, que a ajudou a chegar até a tribuna. Eis a passagem do romance:
Écoutez comme Yseut est habile! Elle savait bien qu'on la regardait de l'outre côté du Mal Pas. Elle s'est aprochée de son palefroi, elle a pris les languettes de la housse et les a nouées sus les arçons. Aucun écuyer, aucun valet n'aurait fait mieux pour éviter la bouer en les courroies sous la selle, enlève le poitrail et le fríen du cheval. Elle tient sa robe d'une main et de l'autre son fouet. Arrivée au gué avec le palefroi, elle le frappe de son fouet, et le cheval traverse le marácage.
La reine est attentivement observée par cues qui se trouvent de l'autre côté. Les deux illustres rois l'admirent. Ainsi que tous les autres spectateurs. La reine a des vêtements de soie que viennent de Bagdad. Ils son fourrés de blanche hermine. Son manteau et sa tunique on une traîne. Sur ses épaules descendent ses cheveux tressés de rubans de lin avex des fils d'or. Sur la tête, une couronne d'or que l'encercle entièrement. Son visage a un teint frais avex des nuances de rose et blanc. C'est ainsi qu'elle se dirige vers le pasaje en planches. Elle dit au lépreux: - “J'ai besoin de toi pour faire quelque chose. – Noble reine de haute naissance, à tes ordres, sans mauvaise excuse, mais je ne vois pás ce que tu veux dire. . – Je ne veux pás souiller mês vêtements. Tu me serviraas d'âne pour me porter doucement sur lês planches. – Holà, là! dit-il, noble reine, ne me faites pás une pareille requête! Je suis lépreux, boutonneu, infirme. – Vite, dit-elle, mets-moi em position! As-tu peur que j'attrape ta maladie? Ne crains, rien, ce ne sera pás lê cas! – Ah! Dieu! fait-il, de quoi s'agit-il? Em tout cãs, je ne m'ennuie pas en lui partant.” Il s'appuie davantage sus as béquille. “ Discond, lepreux, tu es bien gors! Tourne ton visage par là et ton dos para ici. Je vais te monter comme um homme.” Cela fait sourire lê malade, qui lui tend lê dos, et elle l'enfourche. Et tout le monde regarde, rois et comtes. Elle serre ses cuisses sus la béquille. Il lève un pied, mais autre cloche; à plusiers reprises il fait mine de tomber, en ayant l'air de souffir. Yseut la belle est à califourchon, une jambe d'un côté, l'autre de l'autre. Les gens se dissent: “Regardez donc........... (BÉROUL, 1995, pp. 156 – 158)
Isolda é hábil. Sabe construir estratégias para preservar sua vida e seu amor.
Esse comportamento revela uma face muito especial da mulher/rainha, aquela que é astuta e que não se prende nem rende às malhas da rede da submissão masculina.
Isolda, a Bela dos Cabelos de Ouro, princesa da Irlanda, rainha nas Cornualhas, é, antes de tudo uma mulher.
Todos os mitos e lendas celtas passaram sem exceção, pelo filtro da cultura cristã e, nessa passagem, elementos da cultura celta eram substituídos pela cristã, tornando a lenda ou o mito mais aceitáveis para os cristãos que não admitiam o caráter sagrado da sexualidade.
Em uma sociedade onde a mulher é vista como “um mal necessário”, pois é ela que dá à luz os homens, o comportamento pouco usual de Isolda pode acarretar problemas.
O pensamento medieval entendia a mulher desta maneira: "Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também, matou o Salvador, porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer. Desgraçado sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de temer quando é amado do que quando é odiado." (GODOFREDO DE VALDONA, PL 157. col. 168, 1994:. 34)
Todo esse pensamento misógino é refletido na literatura e, as personagens femininas são sempre negativamente descritas, pois, a literatura precisa apresentar aos leitores medievais uma imagem de mulher que estivesse de acordo com os fantasmas dos homens da corte. (DUBY, 1995:91).
Esses “fantasmas” como afirma Duby, nada mais são do que os ardis e os encantos femininos, ao mesmo tempo que enternecem, levam os homens a trilhar o caminho do pecado.
Isolda, a Loura sabe que precisa usar seus ardis para ter o homem que ama ao seu lado e enfrentar toda a sorte de obstáculos que os barões, aliados da coroa e do poder que ela representa e não do Rei Marcos, plantam no caminho da sua paixão.
Muito cedo a jovem Isolda aprende que ser rainha significa sublimar seus desejos e vontades, como está exemplificado nesse trecho:
Isolda, a Loura, fremia de vergonha e de angústia. Tristão, tendo-a conquistado, desse modo a desprezava; o belo conto do cabelo de ouro não passava de mentira, e era a um outro que ele a entregava. Mas o rei colocou a mão direita de Isolda sobre a mão direita de Tristão, e este a reteve em sinal de que se apossava dela, em nome do rei das Cornualhas. (BÉDIER, 1994: 27)
Todo o conflito vivido por Isolda pode ser entendido como a diferenciação entre as culturas celtas e cristãs:
Nas comunidades tradicionais européias, havia duas culturas diferenciadas, que tinham por base a divisão econômica de trabalho entre os sexos: a cultura dos homens e a cultura das mulheres. Os universos culturais dos homens e das mulheres desenvolveram-se num patamar de igualdade, mas em duas linhas diversas, cada sexo possuindo seu próprio tipo de saber tradicional, suas próprias formas de lidar com o amor, a vida, a morte, a natureza e a religião, suas próprias canções e gêneros literários, seus próprios instrumentos musicais e até suas próprias formas de dançar e cantar. As tradições das mulheres eram geralmente mais ricas e diversificadas que a dos homens. Apesar das exceções, podemos afirmar que, no conjunto, as tradições masculinas desenvolveram-se na linha da narrativa épica. Suas danças eram freqüentemente caracterizadas por um tipo de performance “heróica” e espetacular, enquanto as mulheres criavam seus gêneros na linha da narrativa lírica, adaptando as danças aos sentimentos que desejavam expressar.(LEMAIRE, 1994:63).
A representação da mulher/rainha Isolda pode levar a mais uma reflexão. Reflexão essa acerca da literatura produzida na Idade Média:
A épica de Homero ou a literatura medieval, por exemplo, não foram “escritas” no sentido moderno da palavra. A cultura escrita sempre parte das culturas orais preexistentes, como ocorreu no caso da Europa, onde se desenvolveu uma nova tecnologia, ou, mais tarde, no caso do desenvolvimento da imprensa e dos meios de comunicação de massa. (LEMAIRE, 1994:62).
Toda a representação de uma mulher submissa não é aceitável para a mulher/rainha Isolda que não pode abandonar nunca a sua simbiose com a terra e o povo, pois, na cultura celta a mulher/rainha é a Soberania, a Prostitua Sagrada que busca o melhor guerreiro, já que o rei pela tradição celta, não combate, não é ação, mas equilíbrio. (FRANCO JÚNIOR, 1996:143).
Isolda, a mulher, a rainha, sabendo da sua ligação com a terra e elegendo como amante o melhor guerreiro, definitivamente abandona tudo e vai viver com Tristão na floresta do Morrois.
Lá, os amantes passam por inúmeras privações e, a mulher/rainha Isolda apassionata esquece os afazeres de rainha para entregar-se inteiramente a paixão.
Seigneurs, céste ainsi qu'ils vivent pendant longtemps au fond de la forêt, longtemps ils restent dans cette solitude. (BÉROUL, 1995: 78).
A crítica feminina nos proporciona um excelente respaldo teórico para uma análise do ponto de vista feminino de Tristão e Isolda, onde alguns aspectos femininos podem ser mais evidenciados e melhor estudados.
O objetivo da crítica feminina é ler a obra literária sob uma outra ótica, que possa compatibilizar o social com o cultural, de forma que se possa considerar as práticas discursivas como determinantes – os discursos moldam o mundo – mas também sendo determinadas por fatores sociais, ou seja, é preciso expandir os limites textuais para orquestrar o texto com seu contexto histórico mais amplo. (SCHMIDT, 1999: 35).
 
Considerações finais
 
À luz da crítica feminina a versão de Tristão e Isolda escrita por Béroul é um “cânone” da literatura ocidental. E, como todo cânone é uma forma institucionalizada através da qual uma cultura específica define e determina o que vem a ser a sua literatura representativa, isto é, os textos de referência que recortam a singularidade discursiva e representacional daquela cultura. Um cânone não se constitui, todavia, através de um processo espontâneo e gratuito, mas é resultado de valorações dentro de um contexto em que muitos fatores entram em jogo, como por exemplo, gênero literário prestigiado e estilo predominante numa época mas cuja base reside no discurso crítico proveniente de uma comunidade interpretativa homogênea e abalizada, ou seja, os críticos , o que significa dizer que a constituição de um cânone é, em larga medida, uma decorrência do poder do discurso crítico e das instituições que o abrigam. (SCHIMIT, 1999:38).
Essa leitura feminina de Tristão e Isolda proporciona ao leitor/estudioso do século XXI um maior entendimento da sociedade celta e da cultura medieval no seu mais amplo sentido.
Por intermédio das representações femininas – centradas aqui na figura da mulher/rainha Isolda, temos um retrato da mulher medieval pintado pelo olhar e pensamento masculinos, mas que não fugia ao real – sempre temido – do homem medieval e que a mulher soube preservar para tornar-se visível.


  http://www.sobresites.com/celtas/artigos/tristaoeisolda.htm

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