sábado, 9 de junho de 2012

Te Contei, não ? - A Literatura não perdeu o bonde




Personagem urbano aportado no Brasil no começo da segunda metade do século XIX, o bonde tornou-se, no imaginário popular, mais do que um simples veículo de transporte ou um articulador de espaços urbanos, mas um ente presente em diversos aspectos da vida brasileira, com significados diversos na linguagem do dia a dia. São notórias as expressões “do tamanho de um bonde”, igual a muito grande; “pegar o bonde andando”, como entrar desavisado numa situação ou conversa. O bonde adentrou pela produção cultural brasileira afora. Foi retratado em charges e inspirou letras de músicas, de sambas e marchinhas de carnaval até uma inusitada opereta, A noiva do motorneiro, composta em 1935 por Noel Rosa. Inspiraria até o título da revista  Bondinho, lançada em 1974, distribuída por uma rede de supermercados, publicação que marcou época na imprensa cultural alternativa daquela década.

Mas talvez seja na literatura que o bonde tenha presença mais profunda. Figura na produção de diversos escritores, em crônicas, romances e poesias. Os autores retratam os personagens no veículo em suas mais diferentes versões, desde os burros que os tracionavam inicialmente até os cocheiros, motorneiros e condutores. Tais descrições tornaram esse universo íntimo de nosso cotidiano, ora como personagem, ora como cenário das histórias, mas quase sempre o qualificando como membro de nossas famílias, tão integrado que ele é ao nosso cotidiano.

O bonde foi, talvez, o primeiro microespaço público urbano que propiciava um convívio forçado, ainda que por poucos instantes, entre pessoas de diferentes classes sociais, unidas por um interesse comum, mas difuso, que era o de se deslocar para pontos distribuídos ao longo de um itinerário fixo. Assim, enquanto não se aproximasse o ponto de desembarque, os passageiros continuavam nesse convívio compulsório e fortuito.

E esse convívio forçado mais ou menos prolongado, propiciava a observação mais ou menos profunda sobre diversas facetas dos colegas de viagem, indo desde sua aparência até o seu comportamento, em observações pensadas ou faladas, entres seres diferentes que talvez pela primeira vez se notavam. E, com isso, reforçariam opiniões, fantasiosas ou não, sobre o “outro”, esse ser que tanto estranhamento traz a nós.

Essa relação que vai se transformando alcança o próprio imaginário das pessoas e faz o bonde se consolidar como ferramenta presente no cotidiano, seja  dos usuários, seja daqueles que convivem com sua presença na cidade, sentindo os efeitos das conexões entre as áreas urbanas que ele promove, quebrando isolamentos, acelerando trocas, marcando-se como espaço de sociabilidade, visibilidade e  de convívio democrático.

O bonde na abordagem de oito escritores
Em Machado de Assis, as transformações trazidas pela convivência
O autor de Dom Casmurro logo percebeu a importância desse novo personagem nas ruas fluminenses, mas ao invés de louvá-lo como símbolo dos avanços tecnológicos dos serviços públicos e do impacto que traria à economia urbana, o escritor fica atento à sua participação numa nova dinâmica urbana, digamos, sociológica. Ele percebe que o bonde é também um espaço de sociabilidade e de convivência, por reunir, ainda que de maneira efêmera, pessoas de características bem diversas por um tempo fugaz. E esse convívio tão heterogêneo tinha um potencial explosivo e carecia de um “código de conduta”, uma vez que as situações  criadas por esse novo ambiente ainda eram novidade no Rio de Janeiro. Com base na arguta capacidade de observação dos tipos que povoavam as linhas de bondes de sua cidade, e em tom de blague, escreveu numa crônica o que seria um “manual de conduta” dos passageiros  nesse novo espaço  público. Assim justificava o escritor:

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

E prossegue o autor orientando, em dez artigos, o comportamento dos passageiros em irônicas situações, a saber: 1, dos encatarroados;2,da posição das pernas; 3, da leitura dos jornais; 4, dos quebra-queixos; 5,dos amoladores;6, dos perdigotos; 7,das conversas; 8. Das pessoas com morrinha; 9, da passagem ás senhoras e 10, do pagamento.

Como exemplo, abaixo o artigo 5°

Art. V – Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiros prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
(Crônica sem título que faz parte do livro  Balas de estalo, 4/07/1883, in Obra completa, Editora José Aguillar, 1959, volume III, págs. 446-448)

Sugerido o Código de Conduta, e sabedor da opinião de sua força motriz perante a eletricidade, o autor ambientou parte de suas crônicas no bonde, descrevendo situações que ocorriam no trajeto de uma viagem, onde aproveitava para analisar comportamentos e impressões diversas:

…Se o bonde é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que deseja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro; o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.
(Meditações  no Bonde, crônica publicada originalmente em título, na série Bos dias!, 21/01/1889, Obra completa, vol iii, págs. 539/40).

Vida em trânsito e emancipação feminina
Vários autores contemporâneos a Machado também usaram o bonde em suas histórias e crônicas, como Joaquim Manuel de Macedo, Arthur de Azevedo e José de Alencar. Como bem pontua a pesquisadora Ivone da Silva Ramos Maya, em A vida nos trilhos: literatura, bonde e sociedade: “Cada página desses autores nos mostra que os personagens vivem em trânsito, atraídos pelas facilidades que o transporte democrático – o bonde – lhes propiciará. Mas, atraídos, sobretudo, pela descoberta de uma nova cidade, dilatada espacialmente nos seus contornos originais e cheia de novidades”. Ivone cita um folhetim de França Júnior (A rua do Ouvidor) que credita ao bonde parte da emancipação feminina, pelo menos na maior liberdade de circulação no Rio de Janeiro:

Antes dos bondes, as moças do saco do Alferes, São Cristóvão, Gamboa e seus adjacentes compravam aos italianos as fazendas e aviamentos para seus vestidos.
Se por acaso vinham à rua do Ouvidor, era por ocasião de luminárias, visitações de igrejas, ou qualquer festa, enfim, que abalasse o Rio de Janeiro.
No dia seguinte comentava-se pela vizinhança o fato que assumia as honras de um acontecimento.
Depois da civilização do trilho urbano, a coisa mudou de figura.
Entram sozinhas aos cardumes pelo Largo de São Francisco e lá vão para a loja do Godinho sortir-se de rendas, fitas, soutaches, entremeios, agulhas, linhas, etc., etc

Oswald de Andrade
O modernista bem descreveu em Um homem sem profissão a impressão causada por uma das primeiras viagens do novo sistema elétrico em São Paulo, sintetizando com perfeição o que seria a sensação causada no cidadão comum pelos novos e poderosos bondes:

Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava…A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico! …Naquele dia de estréia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se, portanto, enorme.

Olavo Bilac
O poeta reafirma algumas impressões de Machado de Assis, porém numa perspectiva mais idealizada, tornando público seu amor incondicional pelo bonde:

(…) Amo-te porque és (…) o veículo da hospitalidade e da sociabilidade.
De encontros fortuitos em bondes, tem saído negócios, namoros, combinações políticas e financeiras, empresas e bancos e até… revoluções. O bonde põe em contato pessoas que nunca se encontrariam talvez na vida se não  existisse esse terreno neutro e ambulante, que se misturam diariamente todas as classes da sociedade. …..- e daí a pouco, sem saber como nem por quê, estamos a contar-lhe toda a nossa vida, a dizer-lhe o nome da mulher que amamos, e a convidá-lo a vir jantar em nossa casa…
( Em Julio Verne, o bonde, o burro e outros escritos- 1903)

Amadeu Amaral
Em seu Memorial de um passageiro de bonde, o escritor transforma-se em observador dos variados tipos sociais que transitam pela cidade e que têm no bonde o palco de encenação de seu papel social. Também passageiro de bonde, tudo ele observa, analisa, comenta e registra. Em suas palavras, “nas pequenas coisas os homens se revelam como são”. E nada como o lugar privilegiado que ele ocupa nessa platéia, formada pelos bancos dos seus bondes, para tecer um amplo painel social de sua época:

Preferi o bonde porque não tenho pressa. E não quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em mim propende naturalmente à lenteza das degustações silenciosas e chuchurreadas… …E a melhor maneira de estar só é ainda achar-se no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, não apenas insulados, mas diversos. Duplo círculo de segregação. Solidariedade enfestada. (…)
(Amadeu Amaral , “Memorial de um passageiro de bonde”)

Anita Malfatti
A tensão inesperada gerada pela da atração por um passageiro anônimo, no ambiente que não colabora para a consolidação do encontro, seja pela lotação excessiva do veículo, seja pela aproximação do ponto de descida  é muito bem descrita numa rara crônica de Anita Malfatti, que relata as emoções de uma jovem que seguia sentada num bonde fechado que subia lotado a avenida São João em São Paulo, quando furtivamente passa a notar  um belo soldado sentado à sua frente, na outra lateral do veículo. O excesso de lotação, porém, impedia que ela o fitasse por inteiro. O belo perfil do jovem, emoldurado por seu uniforme militar, fazia a protagonista se perder em indagações sem respostas: onde ele teria tomado o bonde? Teria sido herói da revolução de 32? Onde desceria?

Alcântara Machado e Maria José Drupré
Em Novelas paulistanas , o escritor relata o drama de quem tem no bonde o algoz da breve vida de seu Gaetaninho, filho de imigrantes italianos, que morava na rua Oriente e que sonhava em andar de automóvel. Jogando futebol na rua, “antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou (…) No bonde vinha o pai de Gaetaninho”. Um belo painel de São Paulo em meados da primeira metade do século XX está retratado em Éramos Seis, de Maria José Drupré. De sua sonhada residência na avenida Angélica, a protagonista tenta administrar os quatro filhos e o orçamento familiar apertado, enquando, do lado de fora de sua casa, os bondes estão sempre presentes com seu movimento, funcionando como marcadores do tempo. E também podem ser  uma ameaça, prenunciando algo fatal, associados à ausência de algum de seus queridos  em casa na hora esperada.

Um personagem ímpar
No século XIX, as cidades brasileiras se transformam em local de centralização das atividades produtivas e econômicas, com mais moradias e locais de administração governamental. O simples caminhar ou até mesmo o uso do cavalo não eram mais eficientes. Os primeiros sistemas organizados de carruagens, com itinerários e horários fixos, surgiram em  Paris no século XVII. Em 1855, surge em Paris aquele que é considerado o primeiro sistema de bondes que deslizavam por trilhos ferroviários, tracionado por cavalos. O Brasil logo aderiu a essa nova forma de circulação, sendo o quinto país no mundo a implantar uma linha de bonde. O sistema pioneiro começou a operar  em janeiro de 1859 , no Rio de Janeiro, sede do Império, então o município mais desenvolvido e urbano do país. A tração animada não ofereceu grande perspectiva ao desenvolvimento dos sistemas de bondes. A saída para a evolução e expansão foi a adoção da eletricidade como forma de tração. No Brasil, a primeira linha trafegou também no Rio de janeiro, em 1892, sendo a primeira da América latina, seguida do sistema de Salvador em 1897, de Manaus em 1899 e finalmente de São Paulo em 1900. A partir da década de 60 esses gigantes elétricos foram se retirando da cena urbana, substituídos pelos ônibus, cada vez mais lotados, tentando trafegar em ruas cada vez mais entupidas de automóveis e, recentemente, de motocicletas, numa disputa pelos espaços disponíveis, raros e desgastados. Mais de 160 anos são passados desde que o bonde chegou ao Brasil, mas a necessidade de circular dentro das cidades só aumentou. No entanto, jamais os modos de transporte que o substituíram possuíram a alma que fez desse veículo um personagem tão amado dos brasileiros e tão presente em tantas manifestações culturais em nosso país, sobretudo na literatura
 
Revista Metáfora

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