domingo, 12 de agosto de 2012

Crônica do Dia - Quando a blitz é assassina - Ruth de Aquino




 

Não havia nada ameaçador dentro do carro. Um violão, utensílios de cozinha, papéis e uma pequena quantidade de maconha, 50 gramas. Quem dirigia o Ford Fiesta preto era o empresário Ricardo Prudente de Aquino, de 39 anos. Eram 22h30.
Ricardo topou com uma blitz num bairro nobre de São Paulo, Alto de Pinheiros, voltando da casa de um amigo. Não parou e nunca saberemos por quê. Foi perseguido pelos PMs por 800 metros. Cercado numa rua escura, parado, sacou o celular. Talvez para avisar a mulher ou pedir ajuda a alguém.
Não teve tempo de completar a ligação. Foi morto com dois tiros na cabeça – dos sete disparos à queima-roupa feitos por três PMs. Eles são da Força Tática, grupo especial da PM, e jovens, de 26, 28 e 30 anos. Dizem ter confundido o celular com uma arma.

A imagem do vidro estilhaçado do carro é violenta. Desproporcional, como se retratasse a execução de um bandido perigoso ou um fuzilamento com marcas de máfia ou vingança. Ninguém testemunhou o crime, e as imagens das câmeras não são nítidas porque a luz dos faróis é forte demais. A versão oficial é a única sobrevivente.

Ali morreu, em segundos, o sonho mais recente de Ricardo. Ser pai com a mulher, a publicitária Lelia Pace de Aquino. Acabaram os encontros entre amigos onde exercia seus dotes culinários. Ele chegou a trabalhar como um dos chefs do D.O.M., restaurante de Alex Atala na capital paulista. Mergulhava nos momentos de lazer.

Um oficial da PM foi à casa de Ricardo, na Vila Madalena, pediu “perdão” aos parentes e disse estar “envergonhado”. Os PMs envolvidos – dois soldados e um cabo – foram presos em flagrante por homicídio doloso. Isso quer dizer homicídio com intenção de matar.
O governador Geraldo Alckmin, em ano eleitoral, apressou-se a se desculpar publicamente “pela morte trágica e injustificada”. A repercussão foi maior porque a vítima é de classe média alta e tem amigos influentes na sociedade.

O comandante interino da PM paulista, coronel Hudson Camilli, deu um nó na língua: “Tecnicamente o cerco foi feito de maneira adequada. A decisão de atirar foi em razão da percepção de uma injusta agressão, que de fato não aconteceu”. Um raciocínio tortuoso que poderia ter sido bastante simplificado pelo comandante.
Ricardo era suspeito? Sim, por não ter parado. A perseguição foi correta? Sim, porque o motorista fugia. O pedido de reforço foi apropriado? Sim, porque a Força Tática é um grupo especial e era necessário um cerco.

A partir daí, começou a lambança. Para forçar o suspeito a se render, a polícia deve primeiro disparar nos pneus como advertência e sem intenção de atingir a pessoa. Quando há ameaça clara aos policiais, a orientação é disparar apenas dois tiros. E para ferir, não para matar.

A viúva do empresário Ricardo, Lelia, de 35 anos, diz que lhe resta conviver “com o vazio”. E se mostra perplexa. Como assim, tiros para matar o motorista de “um carro parado, estacionado perfeitamente na rua”?

Ricardo não foi a única vítima da histeria da PM paulista na semana passada. Em Santos, duas horas depois do assassinato dele, outra blitz terminou em tragédia pelo mesmo motivo: o carro não parou. Havia seis jovens, e o motorista não tinha habilitação.
A polícia foi atrás e deu 25 tiros, nove só no para-brisa. O estudante Bruno Vicente de Gouveia e Viana, de 19 anos, que estava no banco de trás, morreu. Uma amiga, de 15 anos, estava internada em estado grave na sexta-feira.

A versão dos PMs, nesse caso, parece montada. Os policiais dizem ter atirado porque “ouviram tiros”. E apresentaram duas armas, uma de brinquedo e uma de verdade, “encontradas” no carro. O pai do jovem Bruno não acredita em nada disso. Eu tampouco acreditaria.

“Como é que vai haver um cerco e eles (os jovens) vão dar tiros? Como apareceram dois revólveres que não se sabe de onde? Todos os tiros partiram de fora para dentro”, diz João Viana, pai de Bruno.

A violência urbana não é um privilégio do Brasil. Mas existe uma crueldade extra em nosso país. Fugir por pânico, tanto de assaltantes quanto de policiais, passou a ser sinônimo de reagir. Reagir costumava ter outros significados. Atracar-se com o assaltante. Apontar uma arma para o policial. Dar um soco, agredir. Resistir à prisão.

Hoje não. Basta fugir. O assaltante se sentirá humilhado. O policial se sentirá desafiado. E fim de papo, fim de vida. Assim, numa esquina, em frações de segundo. Não fuja de bandido ou de PM.

Revista Veja

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