quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Te Contei, não ? - Homenagem a Darcy, protesto antidevastação


Dança e celebração. As mulheres yawalapitis em um dos grandes momentos da cerimônia, que este ano homenageou Darcy Ribeiro
Foto: O Globo / André Coelho

ALDEIA YAWALAPITI, Parque Indígena do Xingu (MT) - O primeiro raio de sol do domingo, dia 19, levou o espírito de Darcy Ribeiro. Depois de encarnar num tronco de árvore para se despedir e ser chorado por família e amigos, ele subiu aos céus. Foi assim, com o ritual do Quarup, que os yawalapitis, índios do Alto Xingu, homenagearam no fim de semana passado um dos maiores defensores dos povos indígenas brasileiros.
Vaidoso como sempre foi, certamente Darcy fugirá vez ou outra até a Terra, como fazem os mortos nas noites de eclipse, para roubar penas dos pássaros e adornar seus enfeites.
Os índios recorreram à memória de Darcy Ribeiro, morto em 1997, para alertar os brancos dos perigos que rondam o Parque Indígena do Xingu e ameaçam suas civilizações milenares.
— Homenageamos um grande homem branco, mas também queremos que os brancos olhem para os índios, que respeitem nossos direitos e nossa terra, que é de onde vêm nossa comida e nossa cultura — discursou o cacique Aritana, em reunião com jornalistas antes do início oficial da cerimônia, antecipando o tom político que, pela primeira vez, seria dado ao Quarup.
Pescar é tarefa cada vez mais difícil
Os yawalapitis, uma das 16 etnias do Xingu e anfitriões deste Quarup, são um povo vigoroso e saudável, que praticamente renasceu com a criação do parque. Eram apenas 19 índios quando foram reagrupados pelos irmãos Villas Boas, em 1961. Hoje, são quase trezentos, um terço crianças. O ciclo virtuoso dos últimos 51 anos, no entanto, deu sinais claros de inversão na celebração deste ano. Já não foi tarefa fácil pegar peixe suficiente para alimentar os convidados das aldeias vizinhas, muitos dos quais também já não puderam usar os rios para chegar ao local da festa.
— Antes, a gente só usava os rios para andar entre as aldeias do parque. Agora, tivemos que abrir uma estrada porque tem lugares em que o barco não passa mais. O peixe, que é a base da nossa alimentação, também já não é tão farto. Muitos canais de ligação dos rios com as lagoas, onde eles se criam, ficaram completamente secos. Isso não acontecia até poucos anos atrás, mesmo no período sem chuva — conta a índia Watatakalu, do Conselho de Mulheres yawalapitis e uma das articuladoras da manifestação durante o Quarup.
De cima, a imagem do desmatamento
A escassez e as limitações já experimentadas pelos povos do Xingu refletem as pressões que se intensificaram na área em torno do parque, visíveis a olho nu em qualquer sobrevoo na área indígena. Como o que fizeram os convidados do Quarup, entre a cidade de Canarana (MT), onde está a sede da Coordenação do Parque do Xingu, e o Posto Leonardo, da Funai, que tem a pista de pouso mais próxima da Aldeia Yawalapiti.
O piloto aponta as fronteiras secas, que parecem desenhadas à régua tão claro é o traço entre o desmatamento para o plantio de soja e a mata densa da área protegida. Nos limites definidos por rios, não é diferente. Há pontos em que a margem oposta ao parque foi desmatada até a praia. Perde-se a conta da quantidade de bancos de areia e dos trechos de rios em que esses bancos engolem os canais.
O que se vê do alto tem uma versão bem concreta em terra: a balsa de ferro, que até 2005 navegava por todo o parque durante o ano inteiro, está parada já há dois meses na margem do Tuatuari, rio que banha a Aldeia Yawalapiti, e só deve ganhar a água novamente em janeiro, no auge das chuvas.
— Essa balsa navegava pesada, levava até combustível para os aviões da FAB. Desde a construção de uma PCH (hidrelétrica de pequeno porte) lá na cabeceira, há três anos, ela passa a maior parte do tempo parada aí — afirma o índio Pirakumã, um dos líderes da aldeia.
Essas mudanças no cotidiano dos povos do Xingu, para Pirakumã, é só uma pequena mostra do que está por vir com o que ele classifica de “grande golpe nos direitos indígenas” que está sendo maquinado em Brasília: a Proposta de Emenda Constitucional 215, que dá ao Congresso a competência exclusiva para estabelecer os limites das áreas indígenas e decretar a criação de novas áreas; a portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), que exclui os povos indígenas das consultas sobre a realização de empreendimentos de interesse público em suas áreas; e as mudanças no Código Florestal, que flexibilizam as áreas de proteção permanente (APPs) e deixam vulneráveis os rios.
— A gente não pode nem pensar o que vai acontecer se essas coisas forem adiante. Quem diz que não vai acontecer nada é porque não conhece ou não quer ver — lamenta Pirakumã.
Ministra se negou a receber manifesto
É essa assombração que paira sobre os indígenas que foi capaz de unir as 16 etnias do Xingu. Frequentemente adversários, todos os líderes do parque assinaram manifesto endereçado à presidente Dilma Rousseff, que foi lido com pompa e solenidade na abertura do cerimonial do Quarup e deveria ter sido entregue à ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Para não receber a carta, a ministra se escondeu em uma oca e, no dia seguinte, justificou-se dizendo que o documento tratava de temas alheios à sua área, a da cultura. Watatakalu discorda e é didática com a ministra:
— A nossa cultura, a nossa tradição, a nossa vida é a nossa terra. Sem nossa terra e sem nossos rios não vai existir nada do que ela está vendo aqui, não vai existir cultura nem vai existir índio.
A carta, marcada com o urucum da pintura ritual, foi, afinal, recebida pelo senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que leu o documento no plenário do Senado e disse que vai entregá-lo à presidente Dilma.

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