sábado, 11 de agosto de 2012

Te Contei, não ? - Memórias do palácio

 
ÍCONE MODERNISTA O Palácio Capanema, em 1957: Le Corbusier deu as linhas mestras (Foto: Arquivo / Ag. O globo)
Dos porões e gabinetes do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, ressurgem objetos e obras de arte que ajudam a resgatar um passado esquecido nesse marco da arquitetura moderna

Em 1936, quando o arquiteto Lucio Costa e seu grupo esboçaram os primeiros traçados do que viria a ser o Palácio Gustavo Capanema, foram consultar Le Corbusier, o mestre suíço-francês da arquitetura moderna. Corbusier não gostou muito e pôs-se, ele mesmo, a rabiscar um projeto para a futura sede do então Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro.
Queria que o novo edifício destoasse de todos os outros da Esplanada dos Ministérios da então capital federal, conjunto que Corbusier apelidara de “A m. de Agache”. Referia-se a seu rival nas pranchetas, o arquiteto francês Alfred Agache, responsável pelo plano urbanístico do Rio que incluía a Esplanada em estilo eclético que ele tanto repudiava. O Palácio, inaugurado no apagar das luzes do Estado Novo, em 1945, preservou a fachada toda de vidro e as persianas brise-soleil(projetadas para vedar o sol acompanhando seu movimento) idealizadas por Le Corbusier.
Marco da arquitetura modernista, mas não uma unanimidade
Tornou-se um marco da arquitetura modernista – mesmo que nunca tenha sido uma unanimidade. “É uma aberração”, dizia um grupo de acadêmicos da época. O projeto foi uma espécie de ensaio da parceria entre Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que, dez anos mais tarde, iriam juntos a Brasília para projetar a nova capital federal.
 
Até hoje sede de repartições federais, o Palácio – cuja decadência se percebe nos elevadores interditados, pisos quebrados e infiltrações – passará pela mais completa reforma desde a sua inauguração. Numa etapa que antecede a obra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) acaba de concluir, junto com a consultoria Tapuias, o primeiro levantamento de tudo o que o Palácio abriga de maior valor em seu interior – um vasto patrimônio tombado, entre obras de arte e mobílias (algumas delas assinadas por Lucio Costa e Niemeyer) que nunca haviam sido inventariadas.
Essa coleção foi sendo amea­lha­da sob a liderança do próprio ministro Gustavo Capanema, que supervisionava cada detalhe. No afã de ver brotar um verdadeiro palácio nos trópicos, ele chegou a pedir a um marchand americano que lhe enviasse cotações de quadros de Van Gogh e Picasso para ornar os gabinetes, mas, com a ditadura Vargas em declínio, não conseguiu o dinheiro.
 
Capanema fez muitas encomendas a artistas nacionais, cujas obras enfim catalogadas, assim como os objetos que agora vêm à luz, ajudam a contar passagens da história desse símbolo do modernismo e da vida de figuras ilustres que batiam ponto ali. Caso do poeta Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do ministro Capanema, que atraía ao centro do Rio o fã-clube feminino que ia ao edifício só para ouvi-lo falar de poesia.

O MINISTRO COM CARA DE PEIXE
Uma coleção de azulejos com desenhos de Candido Portinari ressurgiu do interior de caixas que acumulavam pó no depósito do Edifício Capanema havia décadas. Era dada como perdida. O ocaso desse painel feito para ter 33 metros quadrados e ocupar lugar de visibilidade sob os pilotis do edifício explica-se pelo incômodo que causou ao ministro Gustavo Capanema.
Ele se mostrava entusiasmado com o projeto até que deu de cara com a primeira parte já erguida do painel. Foi econômico nas palavras: “Ficou esteticamente insatisfatório”. Só as pessoas que testemunharam a cena entenderam o real motivo da desaprovação do ministro. Portinari tinha feito todos os peixes com a testa proeminente e feições que lembravam muito a do próprio Capanema, e ele não viu nenhuma graça na “homenagem”.
Mandou que encaixotassem aquilo e pediu a Portinari que criasse outra cena marítima – o que resultou no mural pontilhado de estrelas-do-mar que até hoje cobre uma das paredes no térreo. Nada se sabe sobre a reação do artista, só que, vez ou outra, ele também se irritava com Capanema, dado a intervir demais nas obras.

POESIA NA REPARTIÇÃO
Por quase duas décadas, o poeta Carlos Drummond de Andrade bateu ponto neste edifício, onde passou a maior parte de sua carreira de funcionário público. Estreou ali como chefe de gabinete do ministro Capanema, cargo que lhe conferia status e certo poder.
 
A sala que ocupava no 2° andar – ainda hoje com a configuração semelhante à de seu tempo – era rota de intelectuais amigos que iam lá lhe pedir favores e de empresários e políticos que buscavam acesso ao ministro mas antes precisavam passar pela peneira de Drummond. Mais tarde ele se mudaria para o 8° andar, como funcionário do Departamento do Patrimônio Histórico.
Já poeta famoso, atraía muita gente à sua sala, especialmente mulheres, que queriam vê-lo falando de literatura e poesia. “Era um fluxo tão grande que, para não incomodar o Lucio Costa, que ficava logo ao lado, acabaram tendo de transferir o arquiteto de sala”, lembra Lygia Martins Costa, colega de repartição de Drummond.
 
O movimento só viria a escassear quando o poeta começou a namorar a chefe da biblioteca, Lygia Fernandes, que respondia diretamente a ele. Eles se mantiveram juntos por trinta anos, até a morte de Drummond. Lygia afugentava suas admiradoras, o que era possível graças à localização da biblioteca, convenientemente colada à sala do poeta. Mais tarde, os móveis dos dois espaços que foram palco do romance acabariam realocados. O Iphan está ainda à procura da mesa de Drummond.

O CACIQUE DO PRÉDIO
Considerado um dos mais talentosos escultores modernistas, Celso Antônio fez a estátua Maternidade sob medida para enfeitar o alto da escada que conduz ao 1º andar do Edifício Capanema. E ali ela ficou até que, num belo dia de 1952, simplesmente desapareceu sem deixar nenhum rastro. O assunto continuava envolto em mistério quando, meses mais tarde, a escultura subitamente surgiu no centro de uma praça na Zona Sul carioca.
Foi aí que a verdade sobre seu sumiço veio à tona. Quem havia mandado remover a obra de Celso Antônio fora Lucio Costa, então chefe da área de arquitetura do Departamento do Patrimônio Histórico, sediado no próprio palácio. O arquiteto não gostava daquela estátua, que considerava rebuscada demais para seus padrões modernistas. Toda vez que dava de cara com ela, incomodava-se. “A obra me desagradava fortemente. Sou muito pacato, pouco disposto a criar caso, mas quando uma coisa me desagrada…”, contou certa vez à sobrinha de Celso Antônio, Leneide Duarte-Plon, autora de uma biografia sobre o tio.
Como arquiteto do prédio, Lucio Costa agia como uma espécie de guardião da área, zelando para que nada ferisse a harmonia que via em seu projeto. Foi ele que doou Maternidade à prefeitura do Rio, que decidiu fincá-la na tal praça onde está ainda hoje. O Iphan negocia agora sua volta ao topo da escada de onde sumiu.

GUERRA PELO ACERVO
No fim de 1943, o ministro Gustavo Capanema escreveu a um marchand americano pedindo cotações de quadros de Van Gogh, Picasso, Miró e Cé­zanne. Queria cobrir as paredes dos gabinetes de seu ministério com os mais proeminentes nomes da vanguarda mundial. Mas, com a ditadura Vargas já em declínio, Capanema não conseguiu dinheiro para levar seu projeto adiante.
E acabou enfeitando as salas com obras de artistas brasileiros então em voga. Encomendou quatro telas a Candido Portinari e, para encorpar o acervo, tomou emprestadas duas obras do Museu Nacional de Belas Artes – Oficinas, de Pancetti, e As Gêmeas, um dos principais retratos de Guignard.
Naquele tempo, era comum que os governantes passassem pelos museus subtraindo-lhes quadros com o propósito de adornar seus escritórios. O Museu Nacional quis expor aquelas telas pelo menos três vezes, sem sucesso, num imbróglio que se arrastou por décadas. Em 1992, finalmente, Oficinas e As Gêmeas retornaram à coleção original.
Mas, recentemente, o Iphan resolveu reavivar a contenda. Voltou à disputa pelas telas alegando serem elas essenciais à recuperação do interior do prédio aos moldes de antes. Os quatro Portinari da era Capanema, raros exemplares da produção em estilo abstrato do artista, repousam até hoje sobre as paredes de gabinetes cujo acesso – até então vetado ao público – será pela primeira vez liberado depois da reforma.
 
REvista Veja
 

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