A cabeleira rebelde e cor de fogo da escocesinha Merida, de “Valente”, é a mais perfeita tradução visual de uma personagem já alcançada por um desenho animado
Doze filmes, a uma média de 600 milhões de dólares em bilheteria por filme, e nenhum deles com uma personagem feminina como protagonista: se a Disney é o reino das princesas, a Pixar é o quintal dos meninos – brinquedos que percorrem o mundo em aventuras, ratos que querem ser chefs, carros irrequietos, super-heróis irritados por ter de fingir que não são súper.
Um bando de crianças rebeldes, em suma, cheias daquela energia impaciente com que os meninos deixam atrás de si um rastro de adultos exaustos. Desde o início dos anos 2000, no entanto, os animadores da Pixar (que, a começar por seu chefe e mentor, John Lasseter, correspondem integralmente à descrição acima) têm ciência de que a cultura de sua empresa é a de um clube de garotos.
E que, pelo simples fato de esse constituir um ponto cego em seu processo criativo, seria necessário superá-lo. Na Pixar, porém, trabalha-se freneticamente para colher resultados a longuíssimo prazo. Em 2003, Lasseter contratou Brenda Chapman, que havia sido supervisora de roteiro em O Rei Leão. Em maio de 2004, Brenda apresentou seu argumento para um filme sobre uma princesa anticonvencional e recebeu o sinal verde para proceder imediatamente à produção – e, assim, tornar-se a primeira mulher a dirigir um filme na Pixar. Mas só agora há pouco Valente (Brave, Estados Unidos, 2012) chegou aos cinemas.
Merida, a princesa imaginada por Brenda, é uma escocesinha com uma enorme cabeleira ruiva de cachos indomáveis. Resultado da inspiração e do virtuosismo técnico característicos da Pixar, essa juba com vida própria ao mesmo tempo define Merida (não adianta tentar prendê-la, porque ela vai se soltar), ilumina as cenas como uma chama e, mais, torna Merida alegre, impetuosa, vibrante e volúvel.
Toda a força da personagem está nela – e, quando a mãe de Merida, a rainha Elinor, esconde essa maravilha sob uma touca comportada para apresentá-la aos três pretendentes que vão disputar sua mão em casamento, a princesa teima em libertar um cachinho e deixá-lo à vista sobre a testa: sem essa expressão de sua independência, sente Merida, ela não é ninguém.
Ou, pelo menos, não é Merida, a menina que, sob o olhar censurador da mãe mas para orgulho do pai, cavalga pelos bosques e urzes, ri alto demais e tem mira irrepreensível com o arco e flecha. As tentativas de ensiná-la a bordar, cantar ou entreter polidamente visitas formais redundam sempre em fracasso – e mais ainda a tentativa de impor a ela a tradição e fazê-la topar o noivado com o primogênito de um dos três clãs sob guarda de seu pai. Que noivo que nada, resiste a princesa: ela não está pronta para casar, e talvez nunca venha a estar.
Uma princesa sem príncipe – eis algo que faria tremer a Disney. E, segundo se pode peneirar dos rumores, encheu de hesitação também Brenda Chapman. Pelo menos na sua primeira versão do enredo, Merida queria o direito de escolher em vez de ser escolhida – e não o direito de simplesmente dizer não e não.
Após as habituais alegações de “diferenças criativas”, Brenda foi removida da função e substituída por Mark Andrews, um talento em preparação que fora com ela à Escócia em uma viagem de pesquisa por ter certa afinidade com o assunto: toda sexta-feira, Andrews, vestindo um kilt, a tradicional saia escocesa, fica no gramado em frente à entrada principal da Pixar desafiando quem passa por ali para duelos de espadas (de verdade).
Em uma reportagem recente, a revista Time apurou que Andrews adora dar apelidos irritantes aos colegas de trabalho, nunca come a verdura do prato e terminou Valente devendo mais de 1 000 dólares em multas por palavrões. A princesa Merida foi concebida por uma mulher – mas ganhou sua forma final e veio ao mundo pela imaginação de um menino.
Ou isso é o que parece. Na verdade, Andrews teve papel decisivo como supervisor de roteiro de Os Incríveis, uma história de crise conjugal disfarçada em filme de super-heróis. E escreveu e dirigiu um dos mais estupendos curtas da Pixar, One Man Band, sobre uma pequena camponesa ardilosa por cuja moedinha dois homens-banda competem.
A camponesinha cheia de opinião é uma espécie de precursora de Merida; e o trajeto seguido por Valente, assim, não resulta de uma imaginária divisão entre meninos e meninas, mas da cultura de crivos brutais e responsabilidade absoluta que é a fundação da Pixar e que responde tanto pelo seu êxito criativo quanto por seu sucesso comercial. Na Pixar, os funcionários podem andar de patinete e decorar suas salas como forte apache ou castelo, mas a brincadeira em serviço termina aí. Todo projeto em andamento é regularmente avaliado – e trucidado – por um conselho independente.
Nenhum diretor é obrigado a acatar as críticas e sugestões do conselho. Mas pode ser deposto a qualquer momento se concluir-se que o trabalho não está satisfatório e sua rota não poderá ser corrigida sob aquela liderança. Além de Brenda, os diretores iniciais de Toy Story 2, Ratatouille e Carros 2 já haviam sido tirados da corrida antes de cruzar a linha de chegada.
Doloroso para o ego e custoso para a empresa, já que quando se demite um diretor é porque será preciso refazer trechos inteiros do desenho, com imenso dispêndio de tempo e dinheiro. Mas tranquilizador para a instituição de excelência criativa em que a Pixar se tornou. Merida, a exemplo da camponesinha de One Man Band, fez Brenda e Andrews trabalhar duro pelo direito à sua recompensa. Mas, generosamente, deixou que os dois a recebessem – não uma moeda, mas ela mesma, uma heroína e pioneira.
E os meninos foram enganados
Se a cabeleira de Merida não viesse a incendiar Valente, os meninos de todas as idades que vinham assistindo aos filmes da Pixar talvez nunca houvessem tomado consciência da ausência de uma protagonista feminina entre as animações do estúdio.
Tão felizes estávamos todos com o caubói e o astronauta de Toy Story (Barbie só ganharia destaque no terceiro filme da série) e com as máquinas falantes de Carros! A inovação, porém, é relativa. Sim, a Pixar tem sua cultura empresarial masculina. Foi criada por um colecionador de brinquedos, John Lasseter, em parceria com um genial criador de gadgets eletrônicos (i.e., brinquedos de adulto), Steve Jobs.
Mas Lasseter ganhou sólidas credenciais feministas ao supervisionar produções da Disney estreladas por princesas pró-ativas: A Princesa e o Sapo e Enrolados. Se não houve protagonistas mulheres, a galeria feminina da Pixar já era variada e expressiva, da desmiolada peixinha Dory em Procurando Nemo à high-tech EVA em Wall-E.
E as meninas, elas estariam mesmo sentindo falta de uma heroína? Bem, gênios do mercado – do mercado cultural, inclusive – são aqueles que dão ao público aquilo que ele desejava sem saber que o desejava. Aí está Merida, a revolucionária princesa sem príncipe.
A questão agora é outra: os meninos que até aqui acompanhavam a Pixar vão aceitá-la? A resposta tende a ser positiva. Merida é aquela menina com quem talvez gostássemos de brincar (não, não de médico: brincar mesmo, inocentemente), mesmo com o risco de sairmos da brincadeira humilhados pela desenvoltura física dessa garota espoleta. Valente é uma versão com sinais trocados de uma animação tipicamente “de menino”: Como Treinar o Seu Dragão, do estúdio rival DreamWorks.
O herói daquele filme era um garoto magrelo oprimido pelas expectativas de seu pai machão; a heroína de Valente é uma garota atlética sufocada pelas imposições de sua mãe dondoca. E os dois desenhos têm um elenco de extras muito parecidos: guerreiros violentos mas pueris (escoceses em Valente, vikings em Como Treinar o Seu Dragão, e nos dois casos a matriz estará nos irredutíveis gauleses de Asterix) que adoram se espancar afetivamente.
Bem pesadas as coisas, Valente, mesmo centrado nas sutilezas do relacionamento entre uma mãe e uma filha, será talvez o filme em que a Pixar quase abandonou uma certa delicadeza feminil. John Lasseter e sua turma, afinal, vinham enganando os meninos havia muito tempo: no fundo, sempre fizeram animações de mulherzinha. Até em Os Incríveis, um filme de super-herói, o que estava em causa na verdade era um casal “discutindo a relação”.
Revista Veja
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