quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Gente que transforma - Uma fortaleza contra o crack

PROPÓSITO Maria Eulina Hilsenbeck e uma das assistidas pelo Clube de Mães. A ONG oferece alimentação e oficinas técnicas a moradores de rua (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA)


Boaventura tinha fome. Aos 17 anos, o rapaz saíra da casa dos pais, em Mato Grosso, e fora para São Paulo morar com uma tia. O plano inicial, completar o ensino médio e trabalhar, logo foi abandonado. “Minha família achava que eu estava estudando, mas passava o dia usando droga e me prostituindo”, diz. Viciou-se em crack e morou nas ruas por três anos. Um dia, descobriu que serviam comida num casarão em formato de castelo, na Rua Apa, no centro de São Paulo. O Clube de Mães chega a reunir 100 pessoas nos almoços de sábado. São moradores de rua, a maioria vinda da área próxima apelidada de Cracolândia. Sua fundadora, Maria Eulina Hilsenbeck, recebe quem vem em busca de comida e tenta oferecer algo mais. Conversa com vários dos visitantes e encaminha os interessados a albergues. Alguns passam a participar das oficinas promovidas pela ONG durante a semana.
Faz cinco anos que Boaventura entrou no almoço que, provavelmente, salvou sua vida. “Viciado em crack não quer nada com nada, mas a Maria Eulina me deixou entrar mesmo assim”, diz. Eulina não se imagina agindo de outra forma. Ela criou o Clube em 1993, com a proposta de orientar as mães de áreas pobres e violentas. Logo passou a oferecer refeições grátis e cursos baratos aos interessados. Em 2009, a ONG foi obrigada a se reinventar, diante do avanço devastador do crack.
Eulina percebeu o poder destrutivo da nova droga desde o final dos anos 1990. Em 2005, a Secretaria Nacional de Políticas Contra Drogas calculava que 1,29 milhão de pessoas já a experimentaram. “Vi crianças acendendo um cachimbo de crack na minha esquina”, afirma Eulina. “Não podia deixar de me envolver, nem que fosse para salvar um ou dois.”
O índice de sucesso na recuperação desses dependentes é baixo. O tratamento pede recursos, equipes multidisciplinares e atuação em rede de vários tipos de instituições, diz a psiquiatra Ana Célia Marques, da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead). A síndrome de abstinência, se mal diagnosticada, pode causar demência. Entre os desafios antigos e graves com que já lidava – alcoolismo, abandono, falta de expectativas – e o novo, Eulina escolheu enfrentar o mais difícil. “O dependente de álcool, em alguns momentos, recobra a razão. O crack não dá trégua”, diz.
Há três anos, o Clube passou a se dedicar apenas a moradores de rua. Fechou os demais cursos, pagos, e manteve apenas oficinas gratuitas para esse grupo, como as de costura. Elas resultam em sacolas, bolsas e brindes, feitos com material reciclado e vendido a empresas. McDonald’s e Pão de Açúcar estão entre os parceiros eventuais. A ONG conta com dois funcionários e dois voluntários, além de Eulina. Não tem condições de lidar com casos mais graves. Os que pedem são encaminhados para tratamento. Eulina calcula que, desde 2002, o Clube tenha ajudado 2 mil pessoas a deixar drogas variadas.
Deixar de ministrar cursos pagos teve consequências. O Clube deve R$ 48 mil. Eulina não se arrepende da decisão e considera o trabalho na ONG uma extensão de sua própria história. Ela nasceu no Maranhão e foi para São Paulo aos 20 anos. Viveu dois anos nas ruas. Às vezes, escondia-se no Castelinho. O lugar estava abandonado desde 1937. Um dia, uma desconhecida ofereceu abrigo e emprego de assistente. No trabalho, Eulina conheceu o futuro marido, que a ajudou a reorganizar a vida. Ela decidiu ajudar quem precisava. O governo estadual admitiu a ONG no Castelinho em 1996.
Inquieta, Eulina se prepara para um novo desafio. Desde 1o de agosto, 20 pessoas que participaram das oficinas do Clube assumiram a coleta seletiva do Mercado Municipal Paulistano, o Mercadão. A renda com as vendas será dividida entre os trabalhadores. A administração do Mercado se encantou com o projeto. “Nos sete anos em que trabalho aqui, o Clube foi a única ONG que não me pediu mais nada – só trabalho”, diz o supervisor de abastecimento José Roberto Graziani.
Boaventura, que chegou ao Clube em 2007 atrás de comida, participou das oficinas por sete meses. Foi encaminhado para tratamento. Tornou-se atendente na clínica de reabilitação e se matriculou num curso superior. Ele se mantém em tratamento até hoje. Eulina se lembra dele com orgulho: “Fico muito feliz de ver a vida deles decolando”.  

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