Os meninos continuam jogando futebol pelas ruas e campinhos improvisados, mas, onde antes havia buraco e barro, hoje tem asfalto. O medo, simbolizado na desembestada fuga de uma galinha durante um tiroteio, foi amenizado. Dez anos depois de mostrar ao mundo as violentas entranhas de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, o filme “Cidade de Deus” – homônimo da comunidade onde a história se desenrola – é reconhecido como um divisor de águas do cinema brasileiro e revisitado através de um documentário e de uma história em quadrinhos. “Ele revelou o outro lado do País para o Exterior e para os brasileiros também. Acusá-lo de violento é se portar como o gordo que culpa o espelho pelo que vê”, diz o diretor Fernando Meirelles. Foi a partir do longa, indicado a quatro Oscar e ganhador de diversos prêmios internacionais, que a comunidade Cidade de Deus ganhou fama e começou a se transformar, com a chegada de ONGs e projetos sociais. Depois, vieram duas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que ajudaram a espantar as sanguinárias quadrilhas de traficantes. A favela não virou, claro, o avesso do que era, mas melhorou bastante. A vida dos 200 atores que se lançaram na carreira com a produção, no entanto, não teve a mesma sorte. Alguns se deram bem, outros viram a realidade imitar a ficção.
Intérpretes adultos dos personagens Buscapé e Zé Pequeno, Alexandre Rodrigues e Leandro Firmino, respectivamente, continuam na profissão, mas nunca mais fizeram papéis de tanto sucesso. Hoje, com 34 anos e alguns quilos a mais, Firmino continua morando na Cidade de Deus, em casa alugada, com a mulher e um filho de 10 meses. “Já fiz outros personagens, mas Zé Pequeno ficou muito vivo na memória das pessoas”, afirma o ator. Na época, ele usou boa parte do cachê de R$ 10 mil para ajudar os pais. Comprou também um computador. “Não fiquei milionário, mas nunca tinha visto tanto dinheiro”, recorda. Alexandre Rodrigues, 29 anos, recebeu o mesmo salário e também “investiu” na família. Ele morava no morro do Cantagalo e fazia curso de teatro por influência da mãe, Rosângela, para quem comprou uma casa: “Era ela quem administrava meu dinheiro.” Dono de duas casas alugadas na favela do Vidigal, Rodrigues está no segundo casamento, tem um filho de 5 anos e fez uma participação, recentemente, na novela “Amor Eterno Amor”, da Rede Globo. “Ganhei outros papéis muito diferentes, não posso reclamar. Mas também não posso omitir que ainda existe preconceito contra o ator negro”, afirma.
O cineasta Cavi Borges, que coassina com Luciano Vidigal o documentário “Cidade de Deus – 10 Anos Depois”, disse ter se surpreendido com o destino dos envolvidos na produção. “Achava que estavam todos bem, mas a maioria vive com dificuldade. O Jonathan (Haagensen, intérprete de Cabeleira) está sem trabalhar há algum tempo”, diz. Alguns deles vivenciaram episódios tristes. Bernardo Santos Pereira, 25 anos, que integrou na história o bando da Caixa Baixa, foi preso por dois meses. “Fui pego furtando, me deixei levar por falsos amigos”, lembra Pereira, nascido e criado na favela. Finda a pena, arranjou emprego de mecânico em uma oficina de motos. Está casado e tem um filho de 5 anos. Um pouco mais grave é a situação de Rubens Sabino, intérprete de Neguinho. Ele foi preso por roubo e se tornou dependente químico. Em junho, deu entrada em um centro comunitário, mas fugiu antes de concluir o tratamento. “O Fernando Meirelles e o Marcelo Yuka deram chances, mas ele não soube aproveitar”, lamenta o ex-Buscapé Alexandre Rodrigues. Pior foi o destino de Jonas Michel, que no filme participava do bando de Zé Pequeno: ele morreu esfaqueado há seis anos após se envolver em um caso de adultério.
No extremo oposto, Eduardo BR Dorneles, 36 anos, ex-morador do Complexo do Alemão, considera-se um vitorioso. Quando foi escalado para participar de “Cidade de Deus” como Jorge Piranha, era uma espécie de contador do tráfico, para o qual foi atraído aos 11 anos de idade. “Não tinha o que comer”, diz. A experiência de atuar mudou tudo: “Foi um rito de passagem. Hoje, vivo do audiovisual.” Além da profissão, ganhou uma nova família: “Conheci uma menina do Leblon e acabamos nos casando.” Eles vivem em uma cobertura duplex no Recreio dos Bandeirantes, com os dois filhos. “Não escondo o meu passado. Quero que minha vida lhes sirva de exemplo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário