Antropofagia e música
O período que vai do movimento modernista à inauguração de Brasília compreende um ciclo especialmente fecundo da vida cultural brasileira. Ele inclui do Macunaíma (1928) de Mario de Andrade ao Grande Sertão Veredas (1956) de Guimarães Rosa, da Antropofagia de Oswald de Andrade (1928) à Bossa Nova de Tom Jobim e João Gilberto (1958), da música de Villa-Lobos às obras de Oscar Niemeyer, todas elas peças-chave para o entendimento do país, ao mesmo tempo que movimentos decisivos para o pensamento sobre o modo de inserção brasileiro no mundo. Certas linhas de força do período estendem-se ainda, para além dos quadros cronológicos desta exposição, ao Cinema Novo de Glauber Rocha e à Tropicália de Caetano Veloso e Gilberto Gil, nos anos sessenta, movimentos que se alimentam diretamente das proposições e das realizações modernistas.
Cito intencionalmente exemplos que vão da literatura à música, ao cinema e à arquitetura, e onde se combinam manifestações eruditas com manifestações da cultura popular e de massas. Quero assinalar com isso o caráter algo fusional e mesclado da singularidade cultural brasileira, ligado a sua vocação para cruzar ou dissipar fronteiras, o que não deixa de ser um traço "antropofágico" (embora a Antropofagia seja uma apenas entre as várias tendências e estratégias culturais do período, tendo permanecido inclusive pouco reconhecida até a segunda metade dos anos sessenta, quando se dá sua revalorização pelos movimentos da Poesia Concreta, do Teatro Oficina e do Tropicalismo em música popular). Em 1924, Oswald de Andrade afirmava que "O Carnaval é o acontecimento religioso da raça", e que "Wagner submerge ante os cordões do Botafogo" (Manifesto da Poesia Pau Brasil). A afirmação é propositalmente disparatada: imagina a Tetralogia aniquilada ou festivamente arrastada pelos blocos de populares que dançam o carnaval num bairro do Rio de Janeiro. A boutade, bem ao estilo do autor, indicava humoradamente a potencialidade de uma "ópera" popular de rua em que a distinção entre o erudito e o popular, assim como a distinção entre arte e vida, não vigorassem mais da maneira usual, insinuando-se em vez disso nas formas emergentes do carnaval urbano, em contraponto paródico com a cultura erudita.
Para além do sentido literal, a afirmação oswaldiana é uma metáfora musical da cultura, a um só tempo séria e debochada, que constata com realismo a força de um fenômeno popular de massas nascente (o carnaval urbano na capital de um país mestiço e tardo-escravocrata), ao mesmo tempo que projeta nele as energias utópicas de um novo modelo de arte que engolfaria consigo os modelos tradicionais de importação europeus.
Aceite-se ou não esse crivo, deve-se reconhecer sua validade para o entendimento do lugar que a música ocupa na vida brasileira e do modo de formação da música brasileira moderna, que resulta freqüentemente do contato entre o erudito e o popular, e dos saltos de um nível para outro, às vezes com efeitos assumidamente carnavalizantes.
Comecemos por Heitor Villa-Lobos, o mais importante músico erudito brasileiro deste século. Filho de um funcionário da Biblioteca Municipal, professor e instrumentista amador que o formou no estudo do violoncelo e na admiração por Bach, o jovem Heitor saltava a janela, durante os anos dez, para ir ao encontro dos chorões e sambistas cariocas, músicos populares da noite, entre os quais era conhecido pelo apelido de "Violão Clássico". Há muito de simulação na versão de vida e obra criada para si pelo próprio compositor (incluindo a famosa viagem que teria feito pelo Brasil inteiro recolhendo música popular e indígena, até os mais recônditos rincões do Amazonas), mas a verdade é que essa fuga para a boemia carioca, assim como traços de suas viagens musicais pelo Brasil, estão estampados em sua obra, do Noneto (1923) aos Choros (anos 20) e às Bachianas brasileiras (anos 30). Na década de vinte, quando se tornou conhecido em Paris, impressionando pela força algo bárbara de suas sonoridades, declarou à imprensa francesa (mentindo como Macunaíma) que suas melodias, autenticamente indígenas, tinham sido anotadas por ele em plena selva amazônica, na iminência de ser devorado por canibais que cantavam e dançavam.
Não confundamos essa antropofagia puramente anedótica, através da qual o compositor brincava com a atração pelo exotismo que ele mesmo despertava então na Europa, com a antropofagia como identificação afirmativa do traço radicalmente multicultural e multiétnico da condição brasileira, que se inscreve anarquicamente nos manifestos de Oswald de Andrade, no Macunaíma de Mário de Andrade (romance concebido sob a forma musical da "rapsódia"), na música popular urbana das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo e, posteriormente, nas canções, pronunciamentos e atitudes do movimento tropicalista, em 67-68 (que se inspiram em grande parte na obra de Oswald, com a qual dialogam). Num filme de 1983, Tabu, Julio Bressane projetou um encontro imaginário entre Oswald de Andrade, o poeta modernista, e Lamartine Babo, o compositor carnavalesco e cantor de rádio dos anos trinta. O encontro, significativo dessa dupla remissão da poesia de vanguarda à canção de massas e vice-versa, sob a espécie do carnaval, não é propriamente verídico ou histórico, mas uma alegoria dos níveis disparatados com que se traça a fisionomia do Brasil moderno. O filme, aliás, só é concebível no contexto pós-Bossa Nova e pós-Tropicalismo quando a música popular urbana ganhou, no Brasil, foros de poesia altamente relevante, realizando sob muitos aspectos o encontro que o filme figura imaginariamente.
Há um momento em que se condensa algo da essência do procedimento antropológico: reproduzindo uma cena do Tabu de Murnau e Flaherty, em que se mostra uma dança nativa polinésia filmada in loco, Bressane superpõe marchinhas carnavalescas, ao som das quais as nativas de Murnau se transfiguram, como se dançassem um carnaval deslocado, projetado para o tempo de uma inocência impossível e no entanto quase tangível, escondido surpreendentemente entre as coincidências e descoincidências do ritmo das imagens e da música. Carnaval urbano, mundo selvagem e documento fílmico entram num estado de suspensão indecidível que não esconde o artifício alegórico que os desnaturaliza e desloca. Nativas polinésias, filmadas por um cineasta alemão e um documentarista americano dos anos vinte, tornam-se enigmaticamente brasileiras e estranhamente familiares, ao mesmo tempo que familiarmente estranhadas, recebendo de volta, alterada pelo circuito, sua quota de estranheza e doçura. Concluído ao som de O teu cabelo não nega, famosa marchinha de Lamartine que faz a apologia da mulata, não sem marcas, entre inocentes e cínicas, do passado escravista brasileiro, o filme dá uma significativa amostra da devoração antropofágica como procedimento estético: entre a promessa de felicidade contida na utopia carnavalesca, a descontinuidade dos choques narrativos e a exposição indireta dos índices de arbítrio e violência que perpetuam as marcas do passado escravocrata, contém uma reflexão implícita sobre a natureza múltipla e transnacional da cultura. Nela, sem deixar de ser um documento de barbárie (para lembrar a frase de Walter Benjamin), cada ato cultural é, também, um ato de singularidade plural.
O contraponto entre Oswald de Andrade e Lamartine, fulcro do filme de Bressane, justifica-se na comparação entre os autores. Sem que houvesse intenção ou influência, podemos apreciar as correspondências entre uma canção como História do Brasil, de Lamartine, e um poema como Brasil, de Oswald. A singeleza esperta da primeira não deixa de afinar, mesmo surpreendentemente, com a complexidade implícita na malha textual do poema. A canção:
Quem foi que inventou o Brasil?
foi seu Cabral
foi seu Cabral
no dia 21 de abril
dois meses depois do carnaval
Aí Peri beijou Ceci
Ceci beijou Peri
ao som
ao som do Guarani
do Guarani ao guaraná
criou-se a feijoada
e depois a Parati
Nesse mito de fundação paródico, a descoberta-invenção do Brasil aparece, num anacronismo provocado, como posterior ao carnaval e humoradamente simultânea a sua própria representação no romance e ópera românticos O Guarani, de José de Alencar e Carlos Comes, dando origem, por sua vez, a esses ícones populares e nacionais modernos, a feijoada, o guaraná e a cachaça Parati. O Brasil, ao mesmo tempo pré-cabralino e atual, engole sua própria história num movimento simultaneísta que carnavaliza tudo, incluindo seus mitos de fundação novecentistas. O poema de Oswald de Andrade:
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
- Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
O poema oswaldiano registra as instâncias fundamentais da colonização brasileira: a cena da catequese (em que o índio responde parodicamente à interpelação do colonizador com um fragmento do poeta romântico Gonçalves Dias), a escravidão, o trabalho brutalizado no engenho da monocultura açucareira ("o negro zonzo saído da fornalha") e, ainda assim, a festa que resulta do qüiproquó das incongruências entre o mercantilismo salvacionista cristão (do português tocando o bumbo carnavalesco e remotamente pagão do Zé Pereira) e os dionisismos tribais do índio e do africano, cujas respostas à pergunta do colonizador, negativas ou afirmativas, são onomatopaicas e rítmicas, respostas do significante e não do significado. Curiosamente, elas prefiguram as sonoridades básicas da bateria da escola de samba, nascidas da orquestração ruidosa desse encontro/desencontro de português, índio e africano: tamborins ("Teterê teté Quizá Quizá Quecê"), surdo e caixa ("Canhem Babá Cum Cum") secundados ao longe pelos glissandi ritmados da cuíca (instrumento melódico-percussivo feito com pele de gato), sugeridos pelo resmungo da onça ("Uu! ua! uu"). Como diz o próprio Oswald, em outro texto, "nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval".
Essas peças lúdicas – que dão uma versão pode-se dizer que infantil, além de perverso polimorfa, da história nacional – podem ser entendidas como parte de um movimento de desrecalque do colonizado, que revira anarquicamente as versões oficiais, apropriando-se delas para incutir-lhes outros sentidos, em que o lastro da experiência coletiva inconsciente vem à tona. Mais que isso, assumir escancaradamente o que há de farsesco e rebaixado na história do colonizado significa ao mesmo tempo, resgatando-o pelo humor, afirmar um novo ethos e um novo pathos mais trágico-carnavalesco do que épico.
Dito em outros termos, trata-se de uma formação sócio-cultural feita de aculturações e deculturações, à qual falta identidade (pois resulta sempre da mistura e do deslocamento), e onde a alteridade, que também falta (pois o outro, o escravo, a tem negada pela sua própria condição), insinua-se e prolifera nos significantes corporais e sonoros. Assumindo afirmativamente as vicissitudes do colonizado, e tornando-as a seu favor, a Antropofagia busca fazer do déficit um plus, compensando o que apresenta de irrisório e fracassado com sua vocação para abraçar as diferenças.
Heitor Villa-Lobos
A figura de Villa-Lobos domina largamente o panorama da música erudita brasileira neste século, estando sua personalidade indissociavelmente ligada ao arco produtivo do modernismo. Compondo, na década de dez, obras inicialmente marcadas por um romantismo tardio e muitas vezes descritivista, chega à Semana de Arte Moderna, de 1922, como figura de destaque, com peças onde se ouve uma certa liberação da dissonância, a relativização dos encadeamentos harmônicos e a utilização de novas combinações instrumentais, como no Quarteto simbólico (1921) para flauta, saxofone, celesta e harpa, com coro oculto de vozes femininas. Ao mesmo tempo, ensaia algumas peças características inovadoras, como as Três danças africanas (1914-1916), onde combina ritmos sincopadamente brasileiros com a escala debussysta de tons inteiros.
Mesmo com esses procedimentos ainda timidamente modernos (mesmo que apresentados com sua conhecida desenvoltura), que remetem a linhas da música francesa do fim do século, Villa-Lobos provocou escândalo e muita reação no meio musical brasileiro, ainda marcado por um gosto predominantemente novecentista.
Imediatamente após a Semana de 22, no entanto, que terá funcionado como um aguilhão provocador, o compositor expande o arco das sonoridades, das pesquisas instrumentais, das agregações politonais, da complexidade das texturas rítmicas, e passa a fazer um amplo uso de referências às músicas populares brasileiras, montadas em agregados de células muitas vezes simultâneas e descontínuas. É, portanto, no movimento pelo qual des-reprime o lastro de sua experiência com a música popular, posto em contato com o repertório da vanguarda européia, que Villa-Lobos desencadeia, nos anos vinte, o impulso gerador de sua obra, que se confunde com uma espécie de visão sonora do Brasil.
Nesse sentido, a trajetória de Villa-Lobos identifica-se exemplarmente com o arco do grande ciclo a que se refere esta Exposição, que vai da Semana de Arte Moderna a Brasília, às vésperas de cuja inauguração o compositor faleceu, em 1959. Algumas características gerais desse período vital, brilhante e fecundo da cultura brasileira podem ajudar a situar as próprias obras. Ele marca o momento em que a cultura letrada de um país escravocrata tardio enxergou na liberação de suas potencialidades mais obscuras e recalcadas, ligadas secularmente à mestiçagem e à mistura cultural, entremeadas de desejo, violência, abundância e miséria, a possibilidade de afirmar seu destino e de revelar-se através da união do erudito com o popular.
Com todas as diferenças que nele se abrigam, ou que nele brigam, o período tem como nota cultural dominante a expectativa de um Brasil transformado pelo alto, por intelectuais modernizantes e comprometidos com a orquestração das forças populares e nativas, inclusive e às vezes principalmente naquilo que o país possa conter de arcaico, inconsciente e dissonante. Contentes e descontentes se unem num coro dos contrários que tem como pressuposto comum a cultura e a nação, para as quais se busca muitas vezes uma formulação totalizante, pendendo turbulentamente para a sinfonia e para o carnaval, para a utopia anárquica e para o impulso autoritário.
Na verdade, esse desejo de modernização do Brasil pela cultura alta, aliada à força do popular, foi minado nas últimas três décadas pelas realidades da modernização conservadora (a ditadura), da indústria cultural e da globalização, mas contém o código genético de algumas das questões do Brasil contemporâneo, que não se superam com facilidade. O Tropicalismo (67-68), último marco reconhecível de um "movimento" cultural com empuxe nacional e internacional, assinala ao mesmo tempo, e contraditoriamente, o fim do ciclo e a vontade de dar-lhe uma nova e incisiva atualidade.
Pois esse projeto difuso e amplo, se teve no escritor e musicólogo Mário de Andrade um animador atormentado (para o qual o destino do Brasil aparece como dilema e pergunta) e no ficcionista Guimarães Rosa o mais profundo e universal, simbolizador (para o qual o destino do Brasil aparece como carma e enigma), teve em Villa-Lobos sua expressão instintiva, imediatamente sensível, transbordante, grandiloqüente e voluntarista. Para ele, o Brasil é uma tumultuada afirmação: ao mesmo tempo a problemática e a "solucionática", para usar a famosa expressão de um jogador de futebol. Nesse sentido, Villa-Lobos é um perfeito oswaldiano ao contrário: antropófago sentimental e prolífico, romântico e inconsciente, caudatário da "maroteira dos primeiros mestiços" (como disse Oswald de Andrade dele, num poema cifrado), buscando, como um duplo de Getúlio Vargas e pai da pátria macunaímico, a conversão do país num grande orfeão cívico (por ocasião da ditadura do Estado Novo, de 37 a 45, quando pôs em prática um projeto cívico-pedagógico com que procurava, pelo ensino de música nas escolas, dar ampla penetração à música "elevada", em oposição a expansão da música de massas e do rádio).
Como dissemos, sua ligação com o "choro" carioca, gênero de música instrumental urbana e suburbana, será a chave para a expansão de seu grande projeto nos anos vinte, a série dos Choros. O aproveitamento do choro popular não é, no entanto, direto e simplista. Ao longo da década, quando se dá sua eclosão no Brasil e na Europa, a música de Villa-Lobos promove um verdadeiro arrastão de gêneros, técnicas e materiais, numa voragem que carrega consigo o sinfonismo descritivo romântico, os timbres e os modos debussystas, os blocos sonoros polirrítmicos e politonais aparentados com o Stravinski da Sagração, as melodias indígenas colhidas em Jean de Léry ou nos fonogramas de Roquete Pinto, os cantos sertanejos, a música dos coretos de banda, a salsa suburbana, a bateria de escola de samba.
Ao mesmo tempo em que adaptava a seu modo as inovações da vanguarda européia, assimilando suas liberações sonoras, Villa-Lobos absorveu rápida e crescentemente os formantes prismáticos da psiquê musical brasileira, aglomerados, recombinados e ambientados em massas orquestrais pontuadas por alusões florestais, sertanejas, cantos de pássaros, ritos, ranchos, cantigas, dobrados. A cultura e a natureza, os significantes indígenas, africanos, urbanos, suburbanos e rurais, captados e amplificados pelo olho mágico do choro carioca, compõem a redução (ou tradução) grandiosa de um Brasil latente percebido como susto, trauma, impulso e maravilhamento. Toda a música de Villa-Lobos pode ser entendida como o retorno a um interminável, como se jamais consumado, Descobrimento do Brasil (nome, por sinal, de uma grande suíte orquestral composta para o filme de Humberto Mauro em 1937).
É o que se sente ouvindo o pouco conhecido Noneto, de 1923, e é o que se estende na série dos Choros, que vai de uma pecinha para violão nos moldes de Ernesto Nazareth (Choros n. 1) até as grandes concentrações sinfônicas e corais com que magnífica, entre umas turbulências, o Rasga coração de Anacleto de Medeiros e de Catullo da Paixão Cearense (em Choros n. 10, de 1926).
Acompanhando algo do espírito geral do tempo, as peças da década de vinte são de um lirismo mais ríspido e "bárbaro" do que o das peças da década de trinta, como indica o titulo do Rudepoema (1926). Aliás, cristalizou-se no Brasil o reconhecimento de um Villa-Lobos mais fácil e fluente, palatável e delimitado, que não faz justiça nem aos arranques desmesurados e mais surpreendentes nem às preciosidades camerísticas de sua obra imensa e desigual.
A recepção de Villa-Lobos na Europa assinala o interesse pela desmedida de sua vontade musicalizante, testemunho de uma América do Sul ambivalentemente cheia de atraso e potência, que pode ser vista com admiração, curiosidade ou desdém. Assinala também a admiração pela originalidade de suas formações instrumentais e de suas texturas sonoras, pelas quais se interessaram tanto o pianista romântico Arthur Rubinstein quanto um sonorista experimental como Edgar Varese. Porque Villa-Lobos combina às vezes admiravelmente safoxofone, harpa, celesta e coro, cuíca e cordas, onomatopéias indígenas, tímpano, reco-reco e caxambu.
Às vezes, tempera o seu ímpeto espontaneísta com intenções construtivas curiosas, como na peça New York Skyline Melody, de 1939, decalcada sobre o contorno dos edifícios de Manhattan. Este é, alias, o ano da Feira Mundial de Nova Iorque, da qual o Brasil participa, num pavilhão criado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer – os futuros autores do projeto urbanístico e arquitetônico de Brasília –, com numerosa amostra de sua música erudita e alguma música popular, despontando aí o início da carreira americana da cantora Carmen Miranda, que se constituirá depois num ícone hollywoodiano das veredas tropicais.
Mas o processo de composição de melodias harmonizadas a partir da silhueta de paisagens já tinha sido experimentado por Villa-Lobos quando compôs a Melodia da montanha, a partir do gráfico acidentado da Serra da Piedade, localizada em Minas Gerais.
Primitivo e cosmopolita, índice de dimensões telúricas do mundo do som que se expressam nas músicas nacionais de países periféricos, ao mesmo tempo que indicador de transformações sonoras de ponta, embora pontuais e não sistemáticas, Villa-Lobos tem um lugar na música do mundo deste século findante que é inseparável dos arranques desiguais e poderosos com que a cultura "subdesenvolvida" buscou sua via de afirmação.
Gilberto Mendes reconheceu no caráter disparatado e desigual de sua obra um traço de autenticidade e independência próprios das músicas inventivas das Américas (como as de Charles Ives, Cowell ou George Antheil), cujo suposto "mau gosto'" não seria um acidente nem um desvio, mas uma dimensão própria à tumultuada procura da qual elas fazem parte e na qual estão envolvidas1.
A música de Villa-Lobos alimentou a "estética da fome" de Gláuber Rocha, quase inconcebível sem o suplemento de força telúrica, antropológica e cósmica que ela empresta à épica do subdesenvolvimento e ao drama barroco brasileiro, assim como alimenta até hoje O incansável dionisismo trágico carnavalesco do teatro de José Celso Martinez Correa. Tom Jobim tinha nele seu ídolo e modelo, o que deixa marcas visíveis nos desenvolvimentos sinfonizantes comidos em Urubu e Terra brasilis (além da frustrada Sinfonia de Brasília).
Nazareth e Milhaud
A estada no Brasil do compositor francês Darius Milhaud (que viveu no Rio de Janeiro em 1917-18, como adido de Paul Claudel, então embaixador da França) marcou de maneira significativa sua obra posterior, como é o caso de Le boeuf sur le toit (1919), para orquestra, e das Saudades do Brasil (1921), para piano. Mais do que pelos compositores eruditos brasileiros, Milhaud interessou-se pela música popular urbana, em especial os maxixes, "tangos brasileiros" e sucessos de carnaval (data dessa época o samba de Donga, Pelo telefone considerado o inaugurador do gênero, ao qual Milhaud se refere em suas memórias). Os maxixes encontravam-se superiormente tratados por dois compositores que despertaram vivamente sua atenção: Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. "Os ritmos dessa música popular me intrigavam e me fascinavam [...]. Eu comprei então uma porção de maxixes e tangos, e me esforcei para tocá-los com suas síncopas que passam de uma mão para outra. Meus esforços foram compensados e eu pude enfim exprimir e analisar esse 'quase nada' tão tipicamente brasileiro".
Vale lembrar que a música de Nazareth, como anota Mário de Andrade citando Brasílio Itiberê, resulta da síntese realizada pelos "pianeiros", músicos "que se alugavam para tocar nos assustados da pequena burguesia e em seguida nas salas de espera dos primeiros cinemas" fundindo lundus e fados, danças de origem popular negra e polcas e habaneras importadas, transferindo a música de uma camada social a outra, ao mesmo tempo que convertiam formas vocais em formas tipicamente instrumentais (notar que o pianismo das peças de Nazareth, tão afins do instrumento, incorpora também traços instrumentais do violão, da flauta, do cavaquinho, do ofcleide).
Vindo dessa linha "pianeira", a obra de Nazareth é produto, como todo o maxixe, de uma síntese de elementos africanos e europeus. Além disso, em seu caso particular, elementos recém-vindos das camadas populares se fundem a influências cultas (o pianismo de Nazareth tem muito de chopiniano). O material com que Milhaud se depara não é, pois, estritamente "folclórico" (como ele mesmo o chama), mas o resultado composto da interferência de vários níveis culturais. Além do mais, sua grande riqueza rítmico-melódica, associada a um esquematismo harmônico funcionando sobre movimentos cadenciais elementares, presta-se bem ao tratamento politonal que Milhaud imprimira a sua música, logo depois de seu período carioca.
Sobre Le boeuf sur le toit, diz Stuckenschmidt: "Cantos populares brasileiros, melodias de carnaval do Rio de Janeiro ligam-se aí, da mais simples maneira, a duas, três e uma vez mesmo a quatro tonalidades. O encanto paradoxal desta música relaciona-se com a seguinte circunstância: o autor utiliza em cada registro tonal as mais simples cadências de tônica, dominante e subdominante; estas, no entanto, uma vez colocadas em consonância com cadeias de acordes situadas num segundo nível tonal, produzem uma forma de harmonia das mais dissonantes e de caráter acentuadamente moderno. O efeito obtido, nesse caso particular, é comparável aos monstros sonoros que a execução simultânea de dois orfeons produz, numa feira, ou de dois realejos tocando em tonalidades diferentes"2.
Ao avaliar a música brasileira, Milhaud valoriza o caráter surpreendentemente original e criativo da música popular urbana, o que confirma aquele traço que viemos apontando: a vocação, na música brasileira, para o cruzamento e a fusão de diferentes níveis culturais, traço a que também Darius Milhaud se mostrou sensível, incorporando-o a sua obra. O compositor francês não demonstra, no entanto, o mesmo interesse por aqueles compositores jovens que, na esfera erudita, se exercitavam na linguagem de Debussy, porque isso não lhe representava novidade, embora fosse o caso de Villa-Lobos, que se preparava, dessa forma, para dar seu próprio salto.
Nacionalismo e dodecafonismo
Escritor com formação musical, estudioso da cultura popular e professor de história da música ao mesmo tempo que poeta e ficcionista, Mário de Andrade teve uma influência considerável nos rumos da composição erudita nos anos vinte, trinta e começo dos quarenta. No mesmo ano da publicação do romance Macunaíma, 1928, publica seu Ensaio sobre a música brasileira, no qual defende a tese de que a composição brasileira deve basear-se numa pesquisa sistemática da música popular rural capaz de sugerir direções para a constituição de uma linguagem musical original, que se distinga da mera transposição de modelos europeus. Junto a uma coleção de temas populares, pesquisados em campo, desenvolve uma análise dos traços melódicos, rítmicos, harmônicos e polifônicos da música popular brasileira, de modo a discutir processos de sua incorporação à música de concerto.
Se a antropofagia oswaldiana terá seu desdobramento natural, décadas mais tarde, no campo da música popular urbana, o projeto mariodeandradino defende uma aliança entre a música erudita e a música popular rural, na qual vê resguardadas as bases de uma cultura nacional autêntica, livre das influências estrangeiras e dos chamativos comerciais e industriais. Pode-se compará-lo a Béla Bartók, pela combinação de pesquisa musical e criação, mas um Bartók dividido entre a música e a literatura, que preconiza caminhos para os músicos enquanto escreve a "rapsódia" ficcional Macunaíma. Nesta, no entanto, as fontes populares são incorporadas em seus fundamentos técnicos, criando uma plurifábula meta-narrativa baseada numa intuição profunda da morfologia do conto popular, ao invés de simplesmente estilizar temas folclóricos, o que nem sempre foi compreendido pelos músicos que desenvolveram os princípios da composição nacionalista.
Respaldada pelos esforços musicológicos e programáticos de Mário de Andrade, a composição erudita baseada em motivos populares rurais predomina no panorama que se seguiu ao movimento modernista. Essa direção geral está presente também, e sem dúvida, na obra de Villa-Lobos, cuja personalidade invulgar impede, no entanto, de situá-lo no âmbito da escola nacionalista. Mas se pode falar, de fato, num grupo numeroso e consistente (para padrões brasileiros de música de concerto) de autores que constituem, resguardadas suas diferenças, uma escola de composição com traços comuns, ligados à estilização do folclore. São eles Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnieri, Luciano Gallet, Fructuoso Vianna.
No final da década de trinta, exila-se no Brasil o músico alemão Hans Joachim Koellreutter. Sua presença terá, com os anos, um forte poder de influência pedagógica com marca inovadora. Reunindo em torno de si um grupo de jovens alunos de composição, entre os quais Cláudio Santoro e Guerra-Peixe, Edino Krieger e Eunice Calundu, e formando o movimento Música Viva, que assume uma postura crítica e polêmica em relação ao panorama vigente, Koellreutter introduz os fundamentos da técnica dodecafônica, que se chocam, em princípio, com os moldes de composição nacionalistas e, como vimos, àquela altura hegemônicos. Situados à esquerda estética e política, Santoro e Guerra-Peixe ensaiam a prática de um tipo de composição cosmopolita e pós-tonal, até que as diretivas zdanovistas, ditadas no fim dos anos quarenta, representem para eles um verdadeiro curto-circuito estético-político. Na seqüência, tenderão também para a composição a partir de fontes populares, mas certamente com traços de sua formação pós-tonal, que os distingue dos nacionalistas clássicos.
Tudo isso indica um panorama complexo e tateante, mais do que claramente dualista. Nacionalismo e cosmopolitismo, folclorismo e dodecafonismo opõem-se num movimento sujeito à idas e vindas, que indica, em sua procura de caminhos, o caráter problemático da inserção da música erudita no Brasil, fundada numa legitimação sempre precária, oscilante entre a cultura popular e a modernidade internacional, ao mesmo tempo que ameaçada pela onda crescente da música popular urbana. Pode-se dizer que o nacionalismo representou um projeto sistemático de cultura musical erudita, empenhado na criação de um público, uma tradição instrumental, uma compreensão histórica, além de uma poética, baseados todos no pressuposto da autenticidade pura da música popular rural. No campo específico da cultura musical, esse projeto sofre, num dado momento, o abalo estético da ruptura atonal, que por sua vez sofre o abalo político do zdanovismo. Considerado o contexto maior, é o pressuposto não-urbano do nacionalismo musical, o paradigma do folclore rural, que sofre com o avanço da industrialização e da internacionalização mercadológica da chamada cultura de massas.
Em 1930 o nacionalista Camargo Guarnieri, herdeiro simbólico de Mário de Andrade, ataca, num episódio turbulento e confuso, o dodecafonismo simbolizado por Koellreutter. É este, no entanto, que musicará, anos mais tarde, o Café de Mário de Andrade, projeto de ópera engajada que Mário esperava ver realizado pelo nacionalista Francisco Mignone. Esse é um dos sinais indicadores do quanto, num país em que a música de concerto nunca se consolida completamente como um sistema estável de autores, obras, público e intérpretes, os caminhos de sua legitimação se fazem através de uma busca incessante e muitas vezes tortuosa.
Samba e Bossa Nova
A música popular urbana, por outro lado, encontra no Brasil um amplo espaço de irradiação e repercussão (não poucas vezes sentido nos meios eruditos e literários como abusivo). O fato é que, desde o final da década de dez, a introdução do gramofone criou espaço para a expansão da canção, galvaniza da pelo samba, gênero de música que traz à tona as bases rítmicas das músicas de negros, muitas vezes improvisadas a partir de refrões coletivos, e a partir de então condensada e compactada com vistas a seu novo status de mercadoria industrializada. Reconhecido em 1917 através do sucesso de Pelo telefone composição de Donga que adaptava e bricolava temas anônimos já conhecidos, o samba foi se constituindo pouco a pouco, mas em especial ao findar da década de trinta, em símbolo da cultura popular brasileira moderna, já capaz de apoiar-se nos signos daquilo que era, até pouco tempo, marca e estigma de um escravismo mal admitido.
Desenvolvida ao longo dos anos vinte (com Sinhô, João da Baiana, o próprio Donga), trinta (com Ismael Silva, Wilson Batista, Noel Rosa, Assis Valente), quarenta (com Dorival Caymmi e Ari Barroso), cinqüenta (Geraldo Pereira), a tradição do samba vai ganhando, mais que sua cidadania, a condição de emblema – entre malandro e apologético – do Brasil. Ao longo desse tempo, transcorre a produção de Pixinguinha, mais voltada para o choro do que para o samba, em sua extraordinária finura instrumental.
A expansão da música popular urbana se dá, ao mesmo tempo, em estreita ligação com o fenômeno do carnaval de rua (assinalado por Oswald no Manifesto da Poesia Pau Brasil), fenômeno que ganha força com a modernização urbanística do Rio de Janeiro, juntando numa espécie de caleidoscópio social polimorfo a festa antes reparada dos ricos, pobres e remediados. Uma parte considerável das gravações de sambas e marchinhas (entre as quais destacam-se as de Lamartine Babo, já citadas) definia-se até os anos cinqüenta pelo espírito carnavalesco ou destinava-se diretamente a esse uso.
Nas décadas de quarenta e cinqüenta, a música popular centrada no Rio de Janeiro, e especialmente veiculada pela Rádio Nacional, rende culto também a Bahia, através de Dorival Caymmi e Ari Barroso; ao nordeste, através dos baiões de Luiz Gonzaga; e ao sul do país, também representado pelo intimismo de Lupicínio Rodrigues. Pode-se dizer que o papel difusor da Rádio Nacional acabou por decantar a experiência da música popular urbana, consolidando-a como uma tradição moderna e amplamente enraizada na memória coletiva, com seu leque de "cantores do rádio", de reis e rainhas da voz. Essa consolidação nacional da música popular brasileira tem seu rebatimento internacional na figura de Carmen Miranda; lançada pelo cinema americano, no contexto da geopolítica cultural que acompanha a Segunda Guerra, como ícone do mundo tropical latino-americano, em que se fundem marchinhas e rumbas com uma visualidade pródiga em bananas e abacaxis. A força da figura de Carmen Miranda e sua consagração como fetiche pitoresco, exótico e bizarro do mundo subdesenvolvido serão assumidas ostensivamente pelo Tropicalismo, nos anos de 67-68 – numa estratégia propriamente antropofágica –, como afirmação paródica da diferença através da qual o colonizado, assinalando voluntária e criticamente as marcas de sua humilhação histórica, desrecalca os conteúdos reprimidos e dá a eles uma potência afirmativa.
Mas isso não teria sido possível sem a Bossa Nova, que, no final da década de cinqüenta, revoluciona a música popular brasileira ao incorporar harmonias complexas de inspiração debussysta ou jazzista, intimamente ligadas a melodias nuançadas e modulantes, cantadas de modo coloquial e lírico-irônico e ritmadas segundo uma batida que radicalizava o caráter suspensivamente sincopado do samba. Essa síntese resulta especialmente da poesia de Vinícius de Moraes, da imaginação melódico-harmônica de Tom Jobim e da interpretação rigorosa das mínimas inflexões da canção e da solução rítmica encontrada por João Gilberto. A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta lírico reconhecido desde a década de trinta, migrou do livro para a canção em fins dos anos cinqüenta e começos dos sessenta, a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores de grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Meireles. O paradigma estético resultante dessa migração, entre as colaborações de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, poderia remeter-nos, se quiséssemos, à época áurea da canção francesa ou ao acabamento e à elegância das canções de George e Ira Gershwin. Nas de Tom Jobim e Newton Mendonça, ao sentido irônico, paródico ou metalinguístico das canções de Cole Porter.
Para um país cuja cultura e cuja vida social se defrontavam a cada passo com as marcas e os estigmas do subdesenvolvimento, a Bossa Nova representou, pode-se dizer, um momento privilegiado da utopia de uma modernização dirigida por intelectuais progressistas e criativos, plasmada também a essa mesma época na construção de Brasília, e que encontrava correspondência popular no futebol da geração de Pelé. Como as demais manifestações contemporâneas, ressoam em suas harmonias e em sua batida rítmica os sinais de identidade de um país capaz de produzir símbolos de validade internacional, sem que sua singularidade os remetesse necessariamente ao pitoresco e ao folclórico.
A evolução da Bossa Nova proporcionou elementos musicais e poéticos para a fermentação política e cultural dos anos sessenta, nos quais a democracia e a ditadura militar, a modernização e o atraso, o desenvolvimentismo e a miséria, as bases arcaicas da cultura colonizada e o processo de industrialização, a cultura de massas internacional e as raízes nativas não podiam ser compreendidas simplesmente como oposições dualistas mas como integrantes de uma lógica paradoxal e complexamente contraditória, que nos distinguia e ao mesmo tempo nos incluía no mundo.
A compreensão e a agressiva formulação desse estado de coisas encontram-se no movimento da Tropicália e na obra de seus principais representantes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé. A alegoria barroca do Brasil (levada a cabo sobretudo no cinema de Glauber Rocha), a carnavalização paródica dos gêneros musicais, que se traduz numa densa trama de citações e no deslocamento de registros sonoros e poéticos, trazem à cena ao mesmo tempo o cantador nordestino, o bolero urbano, os Beatles e Jimi Hendrix. No âmbito da canção de massas, esses fenômenos têm uma afinidade explícita com a estratégia "antropofágica" oswaldiana, revalorizada em 1967 pelo Teatro Oficina com a encenação de O rei da vela. A propósito, a canção emblemática do movimento, Tropicália de Caetano Veloso, une as pontas do nosso assunto: inspirada pela Antropofagia e pela redescoberta, em 1967, da peça de Oswald de Andrade, ela compõe uma figuração das espantosas, dolorosas e desafiadoras incongruências do Brasil, vistas através da alegoria de uma Brasília onírica, deslocada como monumento ao mesmo tempo moderno e carnavalesco, plural e precário, traçada com ímpeto prospectivo sobre o chão de um inconsciente colonial movediço e labiríntico:
sobre a cabeça os aviões
sob os meus pés os caminhões
aponta contra os chapadões
meu nariz
eu organizo o movimento
eu oriento o carnaval
eu inauguro o monumento
no planalto central
do país
viva a bossa-sa-sa
viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
o monumento é de papel crepom e prata
os olhos verdes da mulata
a cabeleira esconde atrás da verde mata o luar
do sertão
o monumento não tem porta
a entrada é uma rua antiga estreita e torta
e no joelho uma criança sorridente feia e morta
estende a mão
viva a mata-ta-ta
viva a mulata-ta-ta-ta-ta
no pátio interno há uma piscina
com água azul de amaralina
coqueiro brisa e fala nordestina
e faróis
na mão direita tem uma roseira
autenticando a eterna primavera
e nos jardins os urubus passeiam
a tarde inteira entre os girassóis
viva Maria-ia-ia
viva Bahia-ia-ia-ia-ia
no pulso esquerdo um bang-bang
em suas veias corre muito pouco sangue
mas seu coração balança a um samba de tamborim
emite acordes dissonantes
pelos cinco mil alto-falantes
senhoras e senhores ele põe os olhos grandes
sobre mim
viva Iracema-ma-ma
viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
domingo é o fino da bossa
segunda-feira está na fossa
terça-feira vai à roça
porém
o monumento é bem moderno
não disse nada do modelo do meu terno
que tudo mais vá pro inferno
meu bem
que tudo mais vá pro inferno
meu bem
viva a banda-da-da
Carmen Miranda-da-da-DADA
(*) Este texto foi escrito originalmente para o catálogo da exposição BRASIL 1920-1950: De la Antropofagia a Brasília, realizada no museu Instituto Valenciano de Arte Moderna, na cidade de Valência, Espanha, entre Outubro de 2000 e Janeiro de 2001. A Curadoria Geral foi do Prof. Dr. Jorge Schwartz e a sub-curadoria Musical ficou sob minha responsabilidade. O texto tinha o objetivo de apresentar parte da cultura musical brasileira do período ao público espanhol. Algumas das questões tratadas foram discutidas em textos anteriores: O coro dos contrários. A música na semana de 22, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978; "Getúlio da Paixão cearense (Villa-Lobos e o estado Novo)". In: O nacional e o popular na cultura brasileira. Música. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982; "Gaia ciência: literatura e música popular no Brasil". In: Ao encontro da palavra cantada, Rio de Janeiro: 7 letras, 2001. Porém, aqui elas foram em parte sintetizadas e em parte ampliadas, ganhando nova articulação e novos contornos.
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