A esteira iniciou sua marcha para o túmulo. Marcha lenta, para começar, até a primeira tomada de pressão. Na tela, os gráficos com as medições dos eletrodos impressionavam
Dia de teste ergométrico é sempre um dia muito tenso. Só perde para a próstata. O T.E., como é conhecido no jargão médico, para quem não sabe é aquele exame no qual o sujeito sobe numa esteira e tem que caminhar cada vez mais rápido, pelo maior tempo possível e num ângulo ascendente, ladeira acima, até não aguentar mais. Quando está, ou pelo menos pensa que está, prestes a morrer, a esteira é desacelerada.
O temor não é à toa: é um exame com risco de 0,01% de morte e uma chance um pouco maior de sofrer uma parada cardíaca e não morrer. Tanto que, na mesma sala onde fica a esteira há um equipamento de reanimação com dispositivo de choque e tudo. Essa tortura, até segunda ordem, é necessária, nos check-ups adultos, para avaliar a capacidade cardiorrespiratória do pobre paciente e também para saber se há sinais de arritmia ou doença coronariana.
Eu não fazia o meu T.E. há quase três anos, quando estava 20 quilos mais magro, malhando pilates e andando de bike.
— Parabéns! Você está em forma! — dissera, à época, o doutor, apertando minha mão.
O exame de terça-feira passada foi bem diferente. Buchudo como um peixe, assinei o termo liberando o laboratório de responsabilidades por minha possível morte e segui para a salinha de depilação, tão pequena que a porta tinha que ficar aberta, expondo a raspagem de meu peitoral e de meu ventre inflado aos passantes. Levantei os braços e quase derrubei o teto baixo de gesso.
— Opa! Devagar aí, moço — pediu a enfermeira. Uma paciente que assistia à cena deixou um livro cair no chão de tão chocada.
— É hoje — exclamei, com mau presságio.
— Ser grande tem suas vantagens — a enfermeira me consolou, colando dezenas de adesivos com eletrodos em minha mama.
Nisso, vi que um rapaz alto e de olhar agudo manjava meu corpinho.
— Qual a sua data de nascimento?
— Vinte de abril de mil novecentos e sessenta e cinco. Por quê?
Ele nada disse. Com gravidade, anotou. No formulário, possivelmente, em branco, o espaço para a data de óbito e a causa mortis.
— Pode vir.
Lá dentro, uma surpresa: o doutor apressou-se em quebrar o gelo e revelou-se um rapaz alegre, desinibido e brincalhão.
— Virgem Maria! Que barrigão, hem? Pra que isso, menino? Afe! Ronaldinho perde!
— Pois é... não tenho malhado, estacionei a bike e ando comendo como um porco.
— Isso nem precisa dizer.
A esteira iniciou sua marcha para o túmulo. Marcha lenta, para começar, até a primeira tomada de pressão. Na tela, os gráficos com as medições dos eletrodos impressionavan.
Quando pensei que estava enfim a me concentrar no exercício, esse doutor muito gozado voltou à carga.
— Olha, não magoa. É só pra descontrair.
— Claro.
— Seus avós tiveram doença cardíaca?
Era a pergunta perfeita para relaxar.
— Um teve dois enfartes . Outro era cardiopata e morreu aos 51 anos de mal súbito.
— Você não precisa disso, bofe. Tem músculos muito fortes, ossatura boa, postura legal, substância. Se emagrecer, além de ser bom para a saúde, pode ficar com um corpo legal. Ah, vou dizer logo: bonito mesmo.
Cada vez menos descontraído, agradeci.
— Obrigado. Você morde e assopra, hem?
— Chega uma hora em que tem que tomar jeito, bonitão. Isso aí não tá nada charmoso. — ele disse, enquanto media minha pressão pela segunda vez.
Junto com a palavra “bonitão” a esteira passou para o terceiro estágio de aceleração e inclinação.
— Puf, puf — protestei, com ênfase.
— E aí? De zero a dez, como é que está o cansaço?
Se eu fosse responder diria “zero”, já que começava a não sentir mais minhas pernas e ter o crânio invadido por uma espécie de ventania que levava minha consciência para aquele local distante que Ingmar Bergman, ao tomar por acidente uma anestesia em excesso, descreveu como “passagem do ser ao não ser”.
Mas tinha que responder.
— Seis e meio.
— Ótimo — disse o doutor, passando ao estágio 4 do exercício.
— Pufffff? — perguntei, alarmado, sem qualquer ideia do que dizia.
— Calma, queridão. Tenho que medir a pressão mais uma vez só.
A agonia final durou 30 segundos, até que a esteira, enfim, desacelerou.
— E aí? Só cansado ou algo mais? — indagou, olhando para o equipamento de reanimação com cobiça.
Na saída, perguntei se estava muito ruim.
Ele disse que a pressão e o ritmo cardíaco iam bem, mas advertiu, pondo as duas mãos na minha cintura:
— Cinquenta por cento. Meia bomba, né?
Arnaldo Bloch - Jornal O Globo
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