Coletânea reúne todos os poemas do ‘pensador selvagem’ que defendia a contaminação entre a literatura e outras linguagens
Por Manoel Ricardo de Lima*
Paulo Leminski declara em 1987, dois anos antes de sua morte, que é um “pensador selvagem”. Um pensamento que “abastece uma experiência criativa tem que ser selvagem”, diz ele. Escritor singular, nascido filho de negra com polaco, em 1944, em Curitiba, cidade sobre a serra e muito gelada. Mas, como todas as outras cidades desse país, erguida na deriva de nossa composição antropológica e cultural com politicas públicas desastrosas e distribuição social vergonhosa.
A reunião de seus poemas publicada agora tem muito mais a ver com um rito de festa, o que por um lado pode ser bom. É um quadro que vai desde “Quarenta clics em Curitiba” (1976), seguindo um percurso por seus outros livros de poemas — “Caprichos & relaxos” (1983) e “Distraídos venceremos” (1987), publicados em vida, e os póstumos “La vie en close” (1991), “O ex-estranho” (1996) e “Winterverno” (2001) — e poemas esparsos. Depois, um texto apressado de José Miguel Wisnik sobre as canções de Leminski. Num apêndice, um ensaio de Leyla Perrone-Moisés, interessante desde à época, quando arma a imagem ambivalente do “samurai-malandro”. E as orelhas e os textos de quarta capa que estão nos livros — de Haroldo de Campos, Caetano Veloso, do próprio Leminski, de Alice Ruiz e Wilson Bueno. São textos pequenos, já conhecidos, que podem servir ao leitor mais desavisado. Assim também como a apresentação amorosa feita por Alice Ruiz.
Um sopro novo, ainda hoje
Mas é a diferença inventiva e corajosa do texto de Wilson Bueno, originalmente a orelha de “O ex-estranho”, que ainda aponta a importância da publicação dos poemas de Leminski nesse momento: um “sopro invariavelmente novo na sempre melancólica estância seresteira que é, sabemos, o país”. E este é o contradito, porque é importante não confundir os destrambelhos conservadores que a meca editorial nos impõe como “novidade”, na busca insossa de um romance e de um livro de poemas que demarquem uma geração insuspeita, e o “novo”, um vínculo distraído àquilo que tem pensamento, frescor, suspeição e aventura, caso de todo o trabalho de Leminski.
Insisto numa ideia de trabalho porque Leminski escreveu que “assim como não há raças puras, também não há códigos puros”. Ele defende o tempo inteiro como política incondicional, ou seja, como ética, entre a hospitalidade e a destituição, a ideia de uma contaminação possível da literatura consigo mesma e com outras linguagens: “outros códigos, outros recursos, outros meios. Nem que seja só em pensamento”.
Sua opção visceral seria justificada quando publica, nos anos 1980, quatro biografias como forma de “pedir providências” e apontar como a vida poderia/deveria se manifestar através de uma radicalização política da arte como experiência. São biografias de Cruz e Sousa, poeta brasileiro do século XIX, negro e simbolista em terra de brancos parnasianos; de Bashô, um superintendente de águas e inventor do haikai, uma forma orgânica; de Jesus, o nabi que exagera, escreve na areia e quer virar o homem pelo avesso: dar a outra face; e de León Trótski, a pressão sanguínea da arte como uma forma política de vida revolucionária e transgressora em direção ao pouco.
Daí em diante podemos entender que o trabalho de Leminski — como uma exatidão da literatura, ou seja, a literatura como imperfeição, desajuste em relação ao comum e relação direta com o conhecimento — é muito mais especulativa se lida diante de tudo o que escreveu. Porque ele parece optar — como resposta criativa e pensamento selvagem — por uma tentativa de interrupção da catástrofe. É Walter Benjamin quem nos avisa que a verdadeira catástrofe é que as coisas permaneçam como estão.
A extremidade do seu gesto a-funcional e anti-institucional, uma atribuição da poesia, tem a ver com o que ele postula interrogativamente ao compreender que há uma violência paradoxal na cultura letrada brasileira: “A cultura letrada já tem um destino, no Brasil. Uma história, uma direção, um sentido”. E argumenta: “De momento, porém, como falar sobre público para um povo em sua maioria como o nosso?” Para isso, parte de um marco de variação e deriva a essa história, que é supostamente a publicação de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, em 1900, que ele chama de “cordel de guerra / de um homero anônimo”.
Há uma possibilidade de pensarmos que Paulo Leminski é um poeta-crítico dos mais entranhados ao seu tempo, às questões mais impertinentes da cultura e a certa tradição da arte produzida no Brasil. Desse modo, faz todo sentido compor com seus poemas alguns de seus textos-ideia-invenção como o “Catatau” (1975), que narra a vinda de Descartes ao Brasil na brigada de Maurício de Nassau nos idos de 1630/40, numa inversão sintomática entre colonizado e colonizador; “Agora é que são elas” (1983), que desmonta a ideia da literatura como funcionalidade ou caráter normativo: “EU QUERO É O INFERNO”; e “Metaformose” (1994), um fabulare do mito de Narciso que, como diz Régis Bonvicino, é um texto “que se coloca na zona de intersecção entre a prosa de ficção, a prosa crítica, a poesia — com amparo em pesquisa de História”.
Por Manoel Ricardo de Lima*
Paulo Leminski declara em 1987, dois anos antes de sua morte, que é um “pensador selvagem”. Um pensamento que “abastece uma experiência criativa tem que ser selvagem”, diz ele. Escritor singular, nascido filho de negra com polaco, em 1944, em Curitiba, cidade sobre a serra e muito gelada. Mas, como todas as outras cidades desse país, erguida na deriva de nossa composição antropológica e cultural com politicas públicas desastrosas e distribuição social vergonhosa.
A reunião de seus poemas publicada agora tem muito mais a ver com um rito de festa, o que por um lado pode ser bom. É um quadro que vai desde “Quarenta clics em Curitiba” (1976), seguindo um percurso por seus outros livros de poemas — “Caprichos & relaxos” (1983) e “Distraídos venceremos” (1987), publicados em vida, e os póstumos “La vie en close” (1991), “O ex-estranho” (1996) e “Winterverno” (2001) — e poemas esparsos. Depois, um texto apressado de José Miguel Wisnik sobre as canções de Leminski. Num apêndice, um ensaio de Leyla Perrone-Moisés, interessante desde à época, quando arma a imagem ambivalente do “samurai-malandro”. E as orelhas e os textos de quarta capa que estão nos livros — de Haroldo de Campos, Caetano Veloso, do próprio Leminski, de Alice Ruiz e Wilson Bueno. São textos pequenos, já conhecidos, que podem servir ao leitor mais desavisado. Assim também como a apresentação amorosa feita por Alice Ruiz.
Um sopro novo, ainda hoje
Mas é a diferença inventiva e corajosa do texto de Wilson Bueno, originalmente a orelha de “O ex-estranho”, que ainda aponta a importância da publicação dos poemas de Leminski nesse momento: um “sopro invariavelmente novo na sempre melancólica estância seresteira que é, sabemos, o país”. E este é o contradito, porque é importante não confundir os destrambelhos conservadores que a meca editorial nos impõe como “novidade”, na busca insossa de um romance e de um livro de poemas que demarquem uma geração insuspeita, e o “novo”, um vínculo distraído àquilo que tem pensamento, frescor, suspeição e aventura, caso de todo o trabalho de Leminski.
Insisto numa ideia de trabalho porque Leminski escreveu que “assim como não há raças puras, também não há códigos puros”. Ele defende o tempo inteiro como política incondicional, ou seja, como ética, entre a hospitalidade e a destituição, a ideia de uma contaminação possível da literatura consigo mesma e com outras linguagens: “outros códigos, outros recursos, outros meios. Nem que seja só em pensamento”.
Sua opção visceral seria justificada quando publica, nos anos 1980, quatro biografias como forma de “pedir providências” e apontar como a vida poderia/deveria se manifestar através de uma radicalização política da arte como experiência. São biografias de Cruz e Sousa, poeta brasileiro do século XIX, negro e simbolista em terra de brancos parnasianos; de Bashô, um superintendente de águas e inventor do haikai, uma forma orgânica; de Jesus, o nabi que exagera, escreve na areia e quer virar o homem pelo avesso: dar a outra face; e de León Trótski, a pressão sanguínea da arte como uma forma política de vida revolucionária e transgressora em direção ao pouco.
Daí em diante podemos entender que o trabalho de Leminski — como uma exatidão da literatura, ou seja, a literatura como imperfeição, desajuste em relação ao comum e relação direta com o conhecimento — é muito mais especulativa se lida diante de tudo o que escreveu. Porque ele parece optar — como resposta criativa e pensamento selvagem — por uma tentativa de interrupção da catástrofe. É Walter Benjamin quem nos avisa que a verdadeira catástrofe é que as coisas permaneçam como estão.
A extremidade do seu gesto a-funcional e anti-institucional, uma atribuição da poesia, tem a ver com o que ele postula interrogativamente ao compreender que há uma violência paradoxal na cultura letrada brasileira: “A cultura letrada já tem um destino, no Brasil. Uma história, uma direção, um sentido”. E argumenta: “De momento, porém, como falar sobre público para um povo em sua maioria como o nosso?” Para isso, parte de um marco de variação e deriva a essa história, que é supostamente a publicação de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, em 1900, que ele chama de “cordel de guerra / de um homero anônimo”.
Há uma possibilidade de pensarmos que Paulo Leminski é um poeta-crítico dos mais entranhados ao seu tempo, às questões mais impertinentes da cultura e a certa tradição da arte produzida no Brasil. Desse modo, faz todo sentido compor com seus poemas alguns de seus textos-ideia-invenção como o “Catatau” (1975), que narra a vinda de Descartes ao Brasil na brigada de Maurício de Nassau nos idos de 1630/40, numa inversão sintomática entre colonizado e colonizador; “Agora é que são elas” (1983), que desmonta a ideia da literatura como funcionalidade ou caráter normativo: “EU QUERO É O INFERNO”; e “Metaformose” (1994), um fabulare do mito de Narciso que, como diz Régis Bonvicino, é um texto “que se coloca na zona de intersecção entre a prosa de ficção, a prosa crítica, a poesia — com amparo em pesquisa de História”.
Contra a domesticação do poeta
Estamos diante de um jogo entre a força da imaginação e o sentido: “O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo” e “Me recuso a viver num mundo sem sentido”, afirmava. Ou seja, o seu trabalho nos coloca o tempo inteiro no plano do inespecífico, na insuficiência da linguagem, numa memória ativa sem mecanismo ou domesticação. Diz ele: “... isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação”. Por isso seus textos solicitam ser lidos como zona contaminada e desejante; na armadilha do indistinto entre seus poemas, ensaios, cartas, narrativas, letras de canção etc, provocando uma temporalidade impermanente que podemos chamar de POESIA, de invenção, de trabalho de poeta: “uma maneira de sair da maioria”.
Vale muito ver algo disso em “Caprichos & relaxos”, por exemplo. Livro que reúne pequenas plaquetas publicadas anteriormente de forma amadora (ou seja, com rasgo amoroso) e que, desde o título, monta uma imagem dialética, logo ambivalente, como começo de um jogo e de uma tomada de posição no mundo, na História. Ele escreve: “a vida é as vacas / que você põe no rio / para atrair as piranhas / enquanto a boiada passa” e “agora eu quero a pedrada / chuva de pedras palavras / distribuindo pauladas”. Ou em “Distraídos venceremos”, quando persegue uma saída para a recuperação do aforismo em contraponto ao uso descabido do slogan como a máxima inócua de nosso tempo: “vim pelo caminho difícil, / a linha que nunca termina”, “Tudo o que faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo” ou “e que a pedra só não voa / porque não quer / não porque não tem asa”.
É possível criar uma resistência à acessibilidade recorrente em que são lançados os seus poemas por causa do tom aparentemente simples, de uma dicção da rua (da pichação à conversa de bar) à ideia de uma malandragem da linguagem. Até porque isso pode ser lido muito mais como um pretexto para problematizar a circulação do poema “como qualquer mercadoria ou produto industrial”.
O seu jogo é provocar um scherzo: móbile que vem do pensamento de Mário de Andrade, e não apenas de Oswald, que, muito mais intempestivo e bárbaro, é sempre a clave mais óbvia para a poesia de Leminski. É com essa argúcia de Mário, me parece, que Leminski brinca para enfrentar a adaptação e a domesticação do poeta, tão reclamadas agora. Como afirma Silvina Rodrigues Lopes, precisamos indagar de perto esta tendência de nosso tempo em adaptar “grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objetos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado”.
Por isso, o sopro é a POESIA de Leminski, essa aventura entre erotismo e desespero com a vida das formas ("sem desespero não haverá provavelmente decisão", afirma Silvina). Uma poesia que ensina a resistir: “nunca erro uma vez”, diz ele. E assim mantém sua “infinita estranheza (o impoder da literatura, a qual, recusando submeter-se a qualquer modelo, também não pretende provocar qualquer submissão), relação que não classifica, não hierarquiza”. A sua poesia é uma articulação daquele que entende que, para operar o poema num enlace com a modernidade, é preciso constituir um processo histórico impermanente, descontínuo e anacrônico: o que leva a nada. Tanto é que num ensaio que recupera a sobrevivência do quase invisível, da miniatura contra a institucionalização definitiva e imponente dos holofotes, intitulado, não à toa, de “Bonsai”, ele diz: “Todos os homens são, enfim, herdeiros da produção cultural de todos os homens, de todos os povos, de todas as épocas”. Selvageria pura.
*Manoel Ricardo de Lima é poeta e professor de literatura na Unirio. Publicou, entre outros, “Entre percurso e vanguarda — alguma poesia de P. Leminski” (Annablume, 2002) e “Jogo de Varetas” (7Letras, 2012). Este texto é uma versão do prefácio que escreveu para a antologia bilíngue de Paulo Leminski “Yo iba a ser Homero”, com tradução de Aníbal Cristobo, a sair pela Edições Kriller71, de Barcelona.
Estamos diante de um jogo entre a força da imaginação e o sentido: “O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo” e “Me recuso a viver num mundo sem sentido”, afirmava. Ou seja, o seu trabalho nos coloca o tempo inteiro no plano do inespecífico, na insuficiência da linguagem, numa memória ativa sem mecanismo ou domesticação. Diz ele: “... isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação”. Por isso seus textos solicitam ser lidos como zona contaminada e desejante; na armadilha do indistinto entre seus poemas, ensaios, cartas, narrativas, letras de canção etc, provocando uma temporalidade impermanente que podemos chamar de POESIA, de invenção, de trabalho de poeta: “uma maneira de sair da maioria”.
Vale muito ver algo disso em “Caprichos & relaxos”, por exemplo. Livro que reúne pequenas plaquetas publicadas anteriormente de forma amadora (ou seja, com rasgo amoroso) e que, desde o título, monta uma imagem dialética, logo ambivalente, como começo de um jogo e de uma tomada de posição no mundo, na História. Ele escreve: “a vida é as vacas / que você põe no rio / para atrair as piranhas / enquanto a boiada passa” e “agora eu quero a pedrada / chuva de pedras palavras / distribuindo pauladas”. Ou em “Distraídos venceremos”, quando persegue uma saída para a recuperação do aforismo em contraponto ao uso descabido do slogan como a máxima inócua de nosso tempo: “vim pelo caminho difícil, / a linha que nunca termina”, “Tudo o que faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo” ou “e que a pedra só não voa / porque não quer / não porque não tem asa”.
É possível criar uma resistência à acessibilidade recorrente em que são lançados os seus poemas por causa do tom aparentemente simples, de uma dicção da rua (da pichação à conversa de bar) à ideia de uma malandragem da linguagem. Até porque isso pode ser lido muito mais como um pretexto para problematizar a circulação do poema “como qualquer mercadoria ou produto industrial”.
O seu jogo é provocar um scherzo: móbile que vem do pensamento de Mário de Andrade, e não apenas de Oswald, que, muito mais intempestivo e bárbaro, é sempre a clave mais óbvia para a poesia de Leminski. É com essa argúcia de Mário, me parece, que Leminski brinca para enfrentar a adaptação e a domesticação do poeta, tão reclamadas agora. Como afirma Silvina Rodrigues Lopes, precisamos indagar de perto esta tendência de nosso tempo em adaptar “grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objetos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado”.
Por isso, o sopro é a POESIA de Leminski, essa aventura entre erotismo e desespero com a vida das formas ("sem desespero não haverá provavelmente decisão", afirma Silvina). Uma poesia que ensina a resistir: “nunca erro uma vez”, diz ele. E assim mantém sua “infinita estranheza (o impoder da literatura, a qual, recusando submeter-se a qualquer modelo, também não pretende provocar qualquer submissão), relação que não classifica, não hierarquiza”. A sua poesia é uma articulação daquele que entende que, para operar o poema num enlace com a modernidade, é preciso constituir um processo histórico impermanente, descontínuo e anacrônico: o que leva a nada. Tanto é que num ensaio que recupera a sobrevivência do quase invisível, da miniatura contra a institucionalização definitiva e imponente dos holofotes, intitulado, não à toa, de “Bonsai”, ele diz: “Todos os homens são, enfim, herdeiros da produção cultural de todos os homens, de todos os povos, de todas as épocas”. Selvageria pura.
*Manoel Ricardo de Lima é poeta e professor de literatura na Unirio. Publicou, entre outros, “Entre percurso e vanguarda — alguma poesia de P. Leminski” (Annablume, 2002) e “Jogo de Varetas” (7Letras, 2012). Este texto é uma versão do prefácio que escreveu para a antologia bilíngue de Paulo Leminski “Yo iba a ser Homero”, com tradução de Aníbal Cristobo, a sair pela Edições Kriller71, de Barcelona.
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