Livro conta como os acontecimentos da confeitaria centenária que marcou a Belle Époque no Rio se misturam com a crônica da cidade
Carla Rocha
Todos os dias, ele chegava com seu terno impecável, pequenos óculos que lhe davam ar de dândi e um bigode meticulosamente aparado com as pontas viradas para cima. Os garçons acertavam seus relógios. O poeta Olavo Bilac pisava nos azulejos hidráulicos da casa pontualmente às 17h. As rodas de intelectuais da Confeitaria Colombo, no alvorecer do século XX, começavam no chá das cinco e destilavam poesia, sátiras e veneno político até alta noite, embaladas por vermute. A “sucursal” da douta Academia Brasileira de Letras estava para o sofisticado Centro do Rio da Belle Époque como o Les Deux Magots estava para Paris.
O Rio, como Paris, era uma festa. A Colombo estava no centro do burburinho e o replicava, como se seus oito espelhos trazidos da Antuérpia, emoldurados por jacarandá, tivessem esse poder. Se disputava em charme e fazia na cidade o papel do café de Saint-Germain-des-Prés, onde batiam ponto Picasso e Hemingway, em matéria de beleza, com o perdão dos esnobes, sempre ofuscou a concorrência de qualquer sotaque com seus lustres tchecos e a grande claraboia de vitral que filtra a luz natural. Os tempos áureos da cidade, as mudanças por que passou, as épocas difíceis, as alegrias, as tragédias, tudo era dito e vivido nos salões centenários, como conta o livro, recém-saído do prelo, “Confeitaria Colombo - Sabores de uma cidade”, da Casa da Palavra. Do bota-abaixo de Pereira Passos à Revolução de 30. Do início da República à democratização.
— O menu era todo em francês. Até o vatapá era “à la bahienne” em 1901 — diz o chef Renato Freire, engenheiro químico que se deixou levar pela paixão e, depois de um rolé pela Europa, assumiu a cozinha da Colombo. — A influência da Colombo foi além da culinária. Aqui nasceu a boemia, o hábito carioca de sentar num bar para jogar conversa fora com os amigos. Eu digo que o Lebrão foi mais importante para o Brasil do que o Cabral — brinca Freire, degustando um café, depois de cumprimentar os convivas, em uma Colombo lotada em plena quarta-feira, por volta das 16h.
Manuel Lebrão, do Alto Minho, em Portugal, chegou ao Brasil aos 13 anos e fundou a Colombro em 1894, na Rua Gonçalves Dias, 32, onde está até hoje. Era uma personalidade tão rica quanto o lugar que criou, capaz de acolher o que havia de melhor da poesia, dos romances, da política, da intelectualidade e tudo o mais que fosse ligado à crônica cotidiana. Devemos a ele a máxima de que “o cliente tem sempre razão”. O Pai Lebrão, como era conhecido, socorria até os boêmios falidos, o que é uma redundância. O primeiro que seduziu foi Bilac, que não saía da Pascoal até ter problemas com a pendura. Ele debandou, arrastando jornalistas como José do Patrocínio e Luís Murat, ou escritores como Lima Barreto.
Outro jornalista, Emílio de Menezes, que dia sim, outro também, conferia o brilho dos cristais Baccarat da Colombo, dedicou a Lebrão o “Hino à dentada”. Os versos do imortal a promoveram a “sucursal” da ABL. Todo um rococó parnasiano para, na cara mais dura que os jacarandás da Colombo jamais viram, deixar à posteridade o primeiro pedido de empréstimo a rimar pastéis com réis. “Nisto mostras que és homem de talento, que não cuidas somente de pastéis. Nem de lucros tirar cem por cento. Atende pois a um dos amigos fiéis. que está passando por um mau momento. Anda doido a cavar trinta mil réis!”
A Colombo foi a primeira loja da cidade a ter luz elétrica, a vender a quilo — sim, antes vendia-se feijão a litro! —, a ter um elevador, uma Coca-Cola estupidamente gelada e a oferecer artigos diet. Sua rica gastronomia é feita de iguarias como biscoitos artesanais Leque, em latinhas azuis, o milfolhas, a coxinha de galinha. Lebrão queria oferecer tudo do bom e do melhor — “igual não há, melhor não pode haver” —, plantava o marmelo da marmelada e refinava o açúcar que chegava ao Rio de navio, a granel, muito sujo, quase cor de terra. A marmelada dissolvida em água virou um arremedo do nosso primeiro refrigerante. E quem, com mais de 40, que não comeu ou ao menos nunca bebeu água num copo de geleia de mocotó Colombo? O livro em que a história da Colombo se confunde com a do Rio é assinado pelo chef Renato Freire e o historiador Antônio Edmilson Martins Rodrigues. Com fotos antigas e recentes, traz curiosidades saborosas. Com trocadilho, por favor. Dona Noêmia, mãe do gênio Villa-Lobos, quando perdeu o marido ganhou o pão para os sete filhos passando a ferro os guardanapos da Colombo.
Villa-Lobos tocou violoncelo na orquestra que animava a clientela. Há ainda um inacreditável assassinato dentro da Colombo que mais parece coisa de livro: uma mulher traída matou o marido que pulou a cerca com sua irmã. Um bafão.
— Toda a história do Rio está entrelaçada com a da Colombo, até porque a cidade foi o centro do Império e a capital da República — diz Rodrigues, que pesquisou durante um ano para escrever o livro.
Há seis décadas circulando entre as mesas de mármore e cadeiras de palhinha, o garçom Orlando, de 75 anos, acredita que já serviu mais de dois milhões de clientes.
— O Juscelino pedia carré de porco, o Getúlio, peru à brasileira e o Tancredo era light, ficava no linguado — diz, desfiando com orgulho as intimidades gastronômicas dos presidentes da República que serviu à mesa.
Desde que os velhinhos ficavam saçaricando na porta da Colombo, ou quase, a família do desembargador federal aposentado Sérgio de Andrea Ferreira é habitué. Botafoguense roxo, o pai aguentava as provocações da mesa do Flamengo, mas não abria mão do saçarico.
— Ele era funcionário da Caixa e eu, garoto, quando ele me levava para almoçar lá. Eu levei os meus filhos e agora levo netos e bisnetos. Engordei pelo menos cinco quilos com o casamento e os casadinhos de marmelada. Uma vez, o Max Nunes fez uma piada depois de pedir o doce que estava em falta. Disse que tinha tanta marmelada entre os casadinhos da Colombo que eles se separaram.
A Colombo continua lá, os mil-folhas, os pingos de tocha — receita resgatada do passado, de fios de ovos cobertos por fondant, despejados à alta temperatura — e os leques, de volta graças ao garimpo de antigas máquinas de fabricação no galpão desativado da confeitaria, na Gamboa. A essas delícias, juntou-se, agora, o sugestivo quindim de camisola, que se aboletou nas vitrines para fazer história.
O Globo
O Rio, como Paris, era uma festa. A Colombo estava no centro do burburinho e o replicava, como se seus oito espelhos trazidos da Antuérpia, emoldurados por jacarandá, tivessem esse poder. Se disputava em charme e fazia na cidade o papel do café de Saint-Germain-des-Prés, onde batiam ponto Picasso e Hemingway, em matéria de beleza, com o perdão dos esnobes, sempre ofuscou a concorrência de qualquer sotaque com seus lustres tchecos e a grande claraboia de vitral que filtra a luz natural. Os tempos áureos da cidade, as mudanças por que passou, as épocas difíceis, as alegrias, as tragédias, tudo era dito e vivido nos salões centenários, como conta o livro, recém-saído do prelo, “Confeitaria Colombo - Sabores de uma cidade”, da Casa da Palavra. Do bota-abaixo de Pereira Passos à Revolução de 30. Do início da República à democratização.
— O menu era todo em francês. Até o vatapá era “à la bahienne” em 1901 — diz o chef Renato Freire, engenheiro químico que se deixou levar pela paixão e, depois de um rolé pela Europa, assumiu a cozinha da Colombo. — A influência da Colombo foi além da culinária. Aqui nasceu a boemia, o hábito carioca de sentar num bar para jogar conversa fora com os amigos. Eu digo que o Lebrão foi mais importante para o Brasil do que o Cabral — brinca Freire, degustando um café, depois de cumprimentar os convivas, em uma Colombo lotada em plena quarta-feira, por volta das 16h.
Manuel Lebrão, do Alto Minho, em Portugal, chegou ao Brasil aos 13 anos e fundou a Colombro em 1894, na Rua Gonçalves Dias, 32, onde está até hoje. Era uma personalidade tão rica quanto o lugar que criou, capaz de acolher o que havia de melhor da poesia, dos romances, da política, da intelectualidade e tudo o mais que fosse ligado à crônica cotidiana. Devemos a ele a máxima de que “o cliente tem sempre razão”. O Pai Lebrão, como era conhecido, socorria até os boêmios falidos, o que é uma redundância. O primeiro que seduziu foi Bilac, que não saía da Pascoal até ter problemas com a pendura. Ele debandou, arrastando jornalistas como José do Patrocínio e Luís Murat, ou escritores como Lima Barreto.
Outro jornalista, Emílio de Menezes, que dia sim, outro também, conferia o brilho dos cristais Baccarat da Colombo, dedicou a Lebrão o “Hino à dentada”. Os versos do imortal a promoveram a “sucursal” da ABL. Todo um rococó parnasiano para, na cara mais dura que os jacarandás da Colombo jamais viram, deixar à posteridade o primeiro pedido de empréstimo a rimar pastéis com réis. “Nisto mostras que és homem de talento, que não cuidas somente de pastéis. Nem de lucros tirar cem por cento. Atende pois a um dos amigos fiéis. que está passando por um mau momento. Anda doido a cavar trinta mil réis!”
A Colombo foi a primeira loja da cidade a ter luz elétrica, a vender a quilo — sim, antes vendia-se feijão a litro! —, a ter um elevador, uma Coca-Cola estupidamente gelada e a oferecer artigos diet. Sua rica gastronomia é feita de iguarias como biscoitos artesanais Leque, em latinhas azuis, o milfolhas, a coxinha de galinha. Lebrão queria oferecer tudo do bom e do melhor — “igual não há, melhor não pode haver” —, plantava o marmelo da marmelada e refinava o açúcar que chegava ao Rio de navio, a granel, muito sujo, quase cor de terra. A marmelada dissolvida em água virou um arremedo do nosso primeiro refrigerante. E quem, com mais de 40, que não comeu ou ao menos nunca bebeu água num copo de geleia de mocotó Colombo? O livro em que a história da Colombo se confunde com a do Rio é assinado pelo chef Renato Freire e o historiador Antônio Edmilson Martins Rodrigues. Com fotos antigas e recentes, traz curiosidades saborosas. Com trocadilho, por favor. Dona Noêmia, mãe do gênio Villa-Lobos, quando perdeu o marido ganhou o pão para os sete filhos passando a ferro os guardanapos da Colombo.
Villa-Lobos tocou violoncelo na orquestra que animava a clientela. Há ainda um inacreditável assassinato dentro da Colombo que mais parece coisa de livro: uma mulher traída matou o marido que pulou a cerca com sua irmã. Um bafão.
— Toda a história do Rio está entrelaçada com a da Colombo, até porque a cidade foi o centro do Império e a capital da República — diz Rodrigues, que pesquisou durante um ano para escrever o livro.
Há seis décadas circulando entre as mesas de mármore e cadeiras de palhinha, o garçom Orlando, de 75 anos, acredita que já serviu mais de dois milhões de clientes.
— O Juscelino pedia carré de porco, o Getúlio, peru à brasileira e o Tancredo era light, ficava no linguado — diz, desfiando com orgulho as intimidades gastronômicas dos presidentes da República que serviu à mesa.
Desde que os velhinhos ficavam saçaricando na porta da Colombo, ou quase, a família do desembargador federal aposentado Sérgio de Andrea Ferreira é habitué. Botafoguense roxo, o pai aguentava as provocações da mesa do Flamengo, mas não abria mão do saçarico.
— Ele era funcionário da Caixa e eu, garoto, quando ele me levava para almoçar lá. Eu levei os meus filhos e agora levo netos e bisnetos. Engordei pelo menos cinco quilos com o casamento e os casadinhos de marmelada. Uma vez, o Max Nunes fez uma piada depois de pedir o doce que estava em falta. Disse que tinha tanta marmelada entre os casadinhos da Colombo que eles se separaram.
A Colombo continua lá, os mil-folhas, os pingos de tocha — receita resgatada do passado, de fios de ovos cobertos por fondant, despejados à alta temperatura — e os leques, de volta graças ao garimpo de antigas máquinas de fabricação no galpão desativado da confeitaria, na Gamboa. A essas delícias, juntou-se, agora, o sugestivo quindim de camisola, que se aboletou nas vitrines para fazer história.
O Globo
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