Entrevista - Arnaldo Coen
Um dos mais renomados pianistas brasileiros lamenta a pobreza do panorama cultural no país e diz que os políticos dão tratamento populista ao tema
Luís Antônio Giron
PARA OS PADRÕES DA MÚSICA CLÁSSICA, O PIANISTA CARIOCA ARNALDO COHEN, DE 64 ANOS, começou tarde demais, mas se consagrou muito cedo. Antes de se decidir pela carreira de concertista internacional, estudara matemática e engenharia. Em 1967, quando tinha 20 anos e já não podia ser considerado um menino prodígio, passou um tempo em Viena, na Áustria, para tentar carreira. Ainda tinha dúvida quanto à profissão a seguir quando, em 1972, em Bolzano, na Itália, venceu o Concurso Busoni de piano, um dos mais difíceis do mundo. Ao chegar ao Brasil com o prêmio, teve de conquistar seu público. Um de seus primeiros recitais depois da consagração precoce teve como audiência apenas duas senhoras no Museu de Arte de São Paulo.
Desde então, colecionou triunfos. Apresentou-se nas melhores salas de concerto. Deu aulas na Royal Academy of Music em Londres por 20 anos. Desde 2004, é professor na Jacobs School of Music, da Universidade de Indiana, em Bloomington, nos Estados Unidos. Como concertista, viaja pelo mundo e visita o Brasil duas ou mais vezes ao ano. Nesta entrevista concedida a ÉPOCA em sua última passagem por São Paulo, ele falou sobre a função do artista, a moda dos pianistas asiáticos e o tema que mais o irrita: a pobreza da cultura no Brasil.
ÉPOCA- No Brasil, a cultura popular é mais forte que a erudita. Isso é qualidade ou defeito?
Arnaldo Cohen - Nem uma coisa, nem outra. É um traço bem brasileiro superestimar a cultura popular e deixar a alta cultura em segundo plano. Há um motivo para isso: a cultura popular dá voto. O Brasil passou o Reino Unido em tamanho do PIB, mas continua indigente em cultura. Os projetos educativos são desprezados em nome dos grandes espetáculos e de eventos populistas e folclóricos. Na vida musical clássica, algumas distorções continuam. Na Europa e nos Estados Unidos, os ricos patrocinam os concertos, e a classe média paga pouco pelos ingressos. No Brasil ocorre o inverso. A classe média paga os impostos e subsidia a frequência dos ricos nos concerto.
ÉPOCA-A música popular brasileira não é um orgulho nacional?
Cohen-É preciso dizer uma coisa: do ponto de vista rítmico, a música popular brasileira encontra poucos rivais na erudita. Talvez Igor Stravinski (compositor russo) tenha conseguido criar um universo sonoro rítmico tão sofisticado quanto os ritmos afro-brasileiros. Na parte harmônica, porém, ela é pobre. Claro que há exceções, como as composições de Egberto Gismonti, Tom lobim ou Francis Hime. Mas, em geral, a música popular brasileira precisa se beneficiar das lições de harmonia que o Ocidente vem dando há 300 anos...
ÉPOCA - Que esperanças o contribuinte pode depositar na ministra da Cultura, Marta Suplicy?
Cohen - Marta Suplicy não entende nada de música. É melhor que não entenda. É mais difícil lidar com políticos que pensam que entendem alguma coisa de arte e cultura. Marta precisará ouvir os profissionais do ramo. É para isso que ela tem assessores. Ela deve se ocupar com a gestão da cultura. Tomara que não repita o fiasco de seus antecessores.
ÉPOCA - O patrocínio de eventos culturais ajudou no desenvolvimento das artes?
Cohen-O Brasil encontrou seu jeitinho e criou um mecanismo de renúncia fiscal: a Lei Rouanet. É uma solução à brasileira. Na verdade, ela serve como pretexto para os gestores culturais desprezarem projetos de formação. Por isso, os Estados Unidos ainda mostram sua pujança cultural. Lá, 99% das iniciativas culturais são privadas. As pessoas se envolvem nelas sem depender do Estado.
ÉPOCA - O Brasil já foi chamado de país dos pianistas. Ainda é?
Cohen - Um repórter me perguntou o que eu achava de ser o segundo pianista brasileiro. Achei graça. Se fosse há 40 anos, teria sido ótimo ser o vigésimo pianista brasileiro. Eu daria uma festa com fogos de artifício. Hoje, acho ruim. Vivemos uma crise de talentos.
ÉPOCA - A que o senhor atribui o sucesso dos pianistas asiáticos?
Cohen -À lei da quantidade que produz qualidade. Na China, as pessoas investem em música. Lá, existem 80 milhões de pianos de armários. Se, desses, apenas 0,1% forem talentos, teremos 800 bons pianistas. Dentre eles, garanto que podemos tirar oito virtuoses inquestionáveis, capazes de desequilibrar o mercado. Daí o sucesso de pianistas notáveis como Yundi Li, Chu-Fang Hung ou Lang Lang. Por isso, a supremacia dos pianistas asiáticos durará muito tempo.
ÉPOCA - A música de concerto vive uma decadência?
Cohen-Num mundo de oferecimentos e seduções, a prática da música clássica perdeu a força que tinha no passado. A música é uma linguagem alternativa. E há uma razão para isso, porque você não pode falar determinadas coisas com a linguagem corriqueira. A música expressa uma linguagem sem palavras. Isso se deve à opressão e à falta de vocabulário. É possível verificar na história a importância política da música no mundo da opressão. A MPB foi beneficiada pela ditadura nos anos 1960. Ela ganhou uma importância de protesto maior do que teria numa democracia. O mesmo aconteceu com os pianistas na União Soviética. Eles se esforçavam para ser escolhidos pelo regime ditatorial e, assim, podiam viajar.
ÉPOCA - Ainda resta um papel para música erudita diante da cultura pop?
Cohen-A função da arte, e não só da música, é construir uma ponte entre as pessoas e a compreensão de si mesmas. A gente ouve música para se encontrar - ou se perder. Não é à toa que a música é consumida por muitos como uma anestesia para a alma. O rock e o pop servem para isso.
ÉPOCA - Por que o senhor não gosta de gravar?
Cohen-O músico precisa mostrar o que ele é, sem disfarces, até para que o público entenda que música é uma arte que tende à perfeição, mas não é perfeita. Pianistas erram e desafinam. A gravação em estúdio maquia o som original, colocando no lugar uma versão ideal do músico. Foi a opção radical do Glenn Gould (pianista canadenseJ, que trocou os concertos pelo disco. Penso que a gravação tem de ser a prova material do trabalho do pianista. Gravei pouco: em 40 anos de carreira, só oito discos. Pretendo gravar mais três.
ÉPOCA - Mas os pianistas gravam para a posteridade. O senhor não pensa nisso?
Cohen - Não me importo com a posteridade. Posteridade é egotrip. A vida do artista é o momento.
ÉPOCA - Num concerto para piano e orquestra, quem manda mais, o maestro ou o pianista?
Cohen - Nem uma coisa, nem outra. É preciso o diálogo. Maestros como Cláudio Abbado (regente italiano) têm essa característica. Há outros que mandam em tudo.
ÉPOCA - O que um maestro deve fazer para ficar famoso?
Cohen - A qualidade musical é um detalhe. Além dela, o maestro precisa ter bons contatos políticos e exercer a liderança diante dos músicos. Tem de saber lidar com os seres humanos com quem trabalha. Os grandes maestros entendem o ser humano: Carlos Kleiber (maestro alemão, morto em 2004) e Mariss Jansons (maestro letão) são bons exemplos. Mas a maioria pensa que é Deus, o que é uma pena.
ÉPOCA - Que conselhos o senhor pode dar a um jovem pianista que pretende fazer carreira internacional?
Cohen - Para entender o prazer e o sofrimento que a música traz, observe três pilares: busque a qualidade musical, desenvolva a técnica do instrumento e tenha consciência das limitações para poder superá-las. Como naquela piada do turista em Nova York que, na rua, pede uma informação a um pianista. "Como chego ao Carnegie Hall (famosa sala de concertos)?" E o pianista responde: "Pratique, pratique, pratique!".
Revista Época
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