O que são essas viroses contemporâneas que, de tão banais, trazem em seu bojo toda a melancolia do tempo vivente e toda a carga da Grécia antiga?
Meu pescoço dói e inalo a mistura de salicilato de metila, cânfora, mentol e essência de terebintina que me levam a ouvir os sinos de outrora em ásperas e venenosas atualizações. Carnaval chinês. Rock episcopal. O mal. O remédio não vem em software. Não há posição confortável para a cabeça que repousa sobre travesseiros que um dia foram de penas de ganso e, hoje, não passam de foles sem vento e sem música. Esse é o meu leito. Vida e morte.
Os olhos reclamam em espasmos como se agulhas de luz os perfurassem. A febre vai e vem, trazendo calafrios, tremores, suores e choques de néon, visões involuntárias. No espelho, vejo-me todo pintado, e sinto até uma ternura ao lembrar-me do sarampo, da sonora catapora e outras doenças tênues de infância: é o mesmo corpo de menino acrescido de pelos e estrias, no qual, corpo, as manchas ressurgem como notas de um realejo que traz de volta a doçura dos laranjais.
A caxumba poderia ter resultado em mal maior, o que teria poupado muito palavrório: eram os anos 1970, e minha avó insistiu com Doutor Lombardi para que fosse administrado o antibiótico de modo a se evitar infecção secundária, seja lá isso o que fosse. A vizinha não tomou e morreu, coitada, ou não. Eu, ao contrário, estou aqui para contar a história nesta quinta-feira de fechamento de crônica, quinto dia de uma virose que me impele a dissolver memórias e coragem num ectoplasma ruim, inflamado de maus sentimentos.
É uma virose banal, assegura meu atual clínico, honrando a memória do Doutor Lombardi, o apaziguador. Terá existido mesmo um doutor Lombardi, ou será um nome fantasia para a morte sempre à ronda, com seus avisos banais e servis, como um anúncio de batedeira ecoando os bastidores do programa de calouros de Silvio Santos? O que dirá meu clínico quando eu morrer? Quisera estar vivo só para ouvi-lo.
Seria Doutor Lombardi minha avó com um bigode? Minha mãe, Lombardi, com sua mania de antibióticos, antibióticos para gripe, antibióticos para febre, antibióticos para tosse, antibióticos para o medo e o vazio, antibióticos para curar a doença de viver? Lombardi sou eu, barba malfeita, doutor em minhas fraquezas, em minha pulsão a sucumbir quando o corpo se apresenta frágil e fora do controle dos aplicativos de uma porcaria de smartphone?
O que são essas viroses contemporâneas que, de tão banais, trazem em seu bojo toda a melancolia do tempo vivente e toda a carga da Grécia antiga? Estará a desgraça na morte de Chávez ou no medo de perder a final da Taça Guanabara? Dane-se o Botafogo. Dane-se Cuba e dane-se Miami. Tudo tão chato.
Deu no Fantástico: “O Brasil é o país dos raios”. E daí? Deu no jornal: “O carioca é feliz”. Quem crê? O Papa não faz nem desfaz. Ele não é pop, nunca foi nem será. Tutu é coisa de Exu. Mexico City é o destino dos capitais. Obama é medíocre. Qual é a grande novidade do século?
Foi assim quando irrompeu aquela chuva monstruosa de terça-feira, ocupando o silêncio da noite com seu motor onipresente e seu desejo de jamais parar, de exterminar o que restará de esperança quando os trovões se aquietarem e um pássaro agônico perguntar pelo seu amor.
A televisão dói nos olhos. Um documentário alemão para relaxar: Hitler constrói seu arsenal de morte tendo em vista um ideal paraestético, o paranoico desaloja seu perseguidor e desenha um olimpo alpino, uma lavanderia nórdica insana... e o delírio da virose me leva de Speer a Platão: abaixo os poetas, eles são a perfídia, a bula dos sérvios cuja limpeza étnica exala estrofes e enxofres, e quantos cânticos tão belos trouxeram a morte à glória, e como não curvar-se à beleza de uma abertura de Wagner e ao mesmo tempo abominá-lo, sublime filho de uma puta, foi assim que Deus tudo quis?
A visita da mãe advém ao poente. Manga espada. Espadas. Pacotes de leite sem lactose. Jamais neguei o seio. Pão sem casca. Mamãe Lombardi, você veio. Poucas vezes foi tão bem-vinda. Diz que tenho rubéola e sorri. Acato seu acalanto, deve ser boa a notícia, rubéola, o que traz a mãe senão algo bom e tantas vezes nem atendo o telefone, desnaturado que sou, doente da alma aquele que deixa a mãe à espera.
Lombardi. Ela me olha como quem olha o menino. O bebê. Manchas. Febre. Morte não. Não agora. Se morrer morro nos braços dela. Grito o nome dela como os guerreiros no campo da morte de Alexander Nevski, a ária russa. O que é a mãe senão o amor que se prontifica a negar a morte, que não a reconhece mesmo quando ela é corrente, coerente, a mãe é o fluido que corre para drenar a ferida da consciência e represa a dor, que só vai chorar mesmo quando o corpo do filho se for e ele não puder mais ouvir seu pranto. Música.
Arnaldo Bloch - Jornal O Globo
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