Lançado no ano de 1977, o disco infantil “Os saltimbancos” foi um projeto composto por importantes figuras da música popular brasileira. Entre outros nomes, destacamos as figuras de Chico Buarque, Nara Leão, Vinicius de Moraes e Miúcha como os grandes envolvidos nesse projeto. A inspiração desse disco aparece como uma adaptação da obra literária “Os músicos de Bremen”, criada pelos lendários irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.
De modo geral, essa obra tem uma elaboração interessante e explora de modo muito eficiente no uso de elementos lúdicos. As crianças apreendem a história com grande facilidade e podem aprender sobre valores muito importantes. Questões como união, solidariedade, justiça e diversidade são alguns dos conceitos que a narrativa dos saltimbancos consegue transmitir aos que tem a oportunidade de apreciá-la. Contudo, não podemos entender que “Os saltimbancos” seja uma simples obra pensada para crianças.
Teatro, poesia e música: "Os Saltimbancos", de Chico Buarque
Texto,
música, teatro. Uma rápida e superficial observação e você, caro leitor dessa
página, será levado a pensar que se tratam de unidades estanques, cujo único
diálogo se dá na soma dos dois primeiros para a configuração do
último.
“Nós
gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres. Senhor, senhora, ou
senhorio. Felino, não reconhecerás”. Quem é que nunca ouviu esse trecho da
música “História de uma gata”, de Chico Buarque?
Pois
bem, visto que nossa disciplina tem por conteúdo a abordagem de tópicos de
literatura infantojuvenil,
e que ficamos incumbidos de tecer algumas considerações acerca de teatro
infanto-juvenil e música, não poderia faltar em nossas postagens uma referência
a peça Os Saltimbancos.
Os
Saltimbancos constituiu-se
em um musical elaborado no ano de 1977, tendo por base uma adaptação
de texto homônimo do italiano Sergio
Bardotti, texto esse que bebe na consagrada fonte das fábulas dos Irmãos Grimm,
explorando o conto Os músicos de Bremem. Interessante
se faz, antes de podermos adentrar as especificidades do texto, verificar seu
contexto de produção.
No
período em que foi produzida, o Brasil estava mergulhado em um terrível momento
de censura decorrente da imposição das forças militares no comando da ditadura.
Anos negros que cobriram os céus de nossa pátria até o ano de
1985, pois foram
marcados por intensa repressão a toda e qualquer forma de expressão que se
voltasse contra o regime. Em meio a tantas barreiras, aguçaram-se as habilidades
fundamentais de nossos grandes autores, que souberam explorar as riquezas da
linguagem, a infinidade de palavras e a multiplicidade dos sentidos, colocando
por detrás das máscaras de simplicidade densas críticas e reflexões. Tal
tessitura pode ser verificada nos escritos de Chico Buarque, estando inclusa a
peça em questão.
O
enredo da peça apresenta grande fidelidade quando comparado ao conto original
dos Grimm, tendo, no entanto, modificações pontuais de Chico Buarque, as quais
possibilitam um novo olhar acerca da fábula. A peça relata o encontro de quatro
animais, sendo eles um jumento, uma galinha, um cachorro e uma gata, que
possuíam em comum o fato de terem sido maltratados pelos seus respectivos donos.
Encontrando-se, tem a ideia de juntos formarem uma banda, rumando para a cidade
com o objetivo de se apresentarem e lá viverem. No meio de sua jornada,
deparam-se com os antigos donos, instalados em uma casa. Então, juntos decidem
encará-los, com o intuito de não mais sofrerem com os abusos e violências de
seus antigos mandatários. Saem vitoriosos desse embate de forças, e percebem que
a partir daquele instante, poderiam, como uma equipe, superar toda e qualquer
adversidade.
Citamos
como primeira modificação no texto dos Grimm o motivo pelo qual os animais
acabam fugindo de seus antigos lares. No conto Os músicos de Bremem temos
a partida dos quatro animais em decorrência da eminência de morte que lhes
competia pela ausência de serventia perante seus donos. O jumento,
pela idade avançada, já se mostrava fatigado e não conseguia desempenhar seu
trabalho; o cão não servia mais para a caça; o gato preferia ficar deitado e
ronronar do que caçar ratos; e o galo serviria de alimento aos convidados de seu
senhor - realidade mais próxima de um lado“natural” postulado nos demais contos
e fábulas dos Grimm. Já na adaptação de Bardotti e Chico Buarque, podemos
pensar uma “suavização” dos motivos, visto que, os
animais fogem devido aos maus tratos sofridos. Pensando no contexto em
que foi adaptada por Chico Buarque, podemos
pensar também que, ao invés de uma suavização, têm-se a materialização da
violência e da repressão vividas no período do regime
militar.
Um
segundo ponto que vale a pena ser mencionado como diferença significativa entre
os textos se faz na inserção, no texto de Chico Buarque, de personagens
femininas. No conto dos Grimm todos os personagens são masculinos (jumento, cão,
gato e galo). Já na adaptação de Chico,
temos
uma gata ao invés de um gato, e
uma galinha ao invés de um galo. Tal troca poderia ser justificada por mera
causalidade. Mas lembre-se, caro leitor, de duas coisas: em
primeiro lugar, estamos
lidando com um autor de inteligência perspicaz, como é o caso de Chico Buarque,
em que nada aparece de modo solto; segundo, que pensando no contexto em que o
texto é escrito, efervesciam discussões e ganhava corpo a revolução feminista.
Desse modo, colocando duas personagens femininas e duas masculinas, Chico
consegue abordar as questões de igualdade dos sexos.
Uma segunda explicação, segundo alguns críticos, reside em uma leitura alegórica do texto: cada animal serviria como importante alegoria para pensarmos sobre o que estava acontecendo no contesto ditatorial. Desse modo, o burro corresponderia à inteligência; a galinha representaria a classe trabalhadora (operários); o cachorro, os soldados na hierarquia militar e a gata estaria representando a classe artística. Por sua vez, o barão, que aparece textualmente como antagonista, seria uma representação da elite, da classe detentora de poder e, pensando em um âmbito mais fabril, dos meios de produção.
Uma segunda explicação, segundo alguns críticos, reside em uma leitura alegórica do texto: cada animal serviria como importante alegoria para pensarmos sobre o que estava acontecendo no contesto ditatorial. Desse modo, o burro corresponderia à inteligência; a galinha representaria a classe trabalhadora (operários); o cachorro, os soldados na hierarquia militar e a gata estaria representando a classe artística. Por sua vez, o barão, que aparece textualmente como antagonista, seria uma representação da elite, da classe detentora de poder e, pensando em um âmbito mais fabril, dos meios de produção.
Música
A
música exerce função fundamental dentro dos processos de compreensão da peça.
Muito mais do que suscita a superficialidade das músicas infantis, apresentando
canções que se ligam mais ou menos a cada um dos animais e dos momentos, aborda
em suas letras verdadeiros planos de conscientização, de reflexão e de poesia.
As músicas intercalam alguns momentos da peça, sendo interpretadas por um ou
alguns personagens.
Nessa
postagem abordaremos a música História de uma gata,
que tem como preâmbulo um diálogo entre os animais. Com um refrão aparentemente
simples, Chico discute a questão da liberdade, dialogando com a condição
financeira das classes: “nós, gatos, já nascemos pobres/ porém, já nascemos
livres”.
Os “pobres” são livres, e por livres podemos entender a liberdade de convenções sociais, de aparências e, principalmente, livres por não terem essa mesma ilusão de liberdade que hoje nos rodeia, quando não percebemos sermos escravos de nossas próprias criações e necessidades. A canção critica ainda a naturalização de elementos que se dão por meio dessas mesmas convenções sociais, o automatismo a que nos atamos. Utiliza verbos fortes, que se não forem entendidos em seu sentido mais amplo, aparecem apenas como meras figuras de estilo e de retórica, como na parte que segue: Me alimentaram/ Me acariciaram/ Me aliciaram/ Me acostumaram. Podemos imaginar toda essa parte como uma gradação, em que “alimentar” se refere aos sonhos e esperanças que nos injetam e nos penetram dia e noite ao longo de nossas vidas. Acariciar poderia estar simbolizando uma tentativa de remediar as dores causadas pelo mundo, ou uma forma de atrair uma falsa impressão amistosa, rodeada pelos mais mundanos interesses, o que levaria ao passo seguinte, aliciar, com sentido de seduzir, convocar. Por fim, "me acostumaram" pode referir-se a uma das maiores violências que ainda vemos presente em nossa sociedade: aquela imperceptível, decorrente das imposições e naturalizações a que somos acostumados.
Os “pobres” são livres, e por livres podemos entender a liberdade de convenções sociais, de aparências e, principalmente, livres por não terem essa mesma ilusão de liberdade que hoje nos rodeia, quando não percebemos sermos escravos de nossas próprias criações e necessidades. A canção critica ainda a naturalização de elementos que se dão por meio dessas mesmas convenções sociais, o automatismo a que nos atamos. Utiliza verbos fortes, que se não forem entendidos em seu sentido mais amplo, aparecem apenas como meras figuras de estilo e de retórica, como na parte que segue: Me alimentaram/ Me acariciaram/ Me aliciaram/ Me acostumaram. Podemos imaginar toda essa parte como uma gradação, em que “alimentar” se refere aos sonhos e esperanças que nos injetam e nos penetram dia e noite ao longo de nossas vidas. Acariciar poderia estar simbolizando uma tentativa de remediar as dores causadas pelo mundo, ou uma forma de atrair uma falsa impressão amistosa, rodeada pelos mais mundanos interesses, o que levaria ao passo seguinte, aliciar, com sentido de seduzir, convocar. Por fim, "me acostumaram" pode referir-se a uma das maiores violências que ainda vemos presente em nossa sociedade: aquela imperceptível, decorrente das imposições e naturalizações a que somos acostumados.
Seguem
abaixo os links com a letra da música e com um vídeo que ilustra a montagem da
peça. Nas próximas publicações abordaremos as outras canções da
peça!
Quem quiser ficar com aquele gostinho
de quero mais, vale a pena conferir um vídeo curtinho que mostra uma
das montagens da peça no
Teatro Folha.
História
de uma gata
Jumento:
Querem saber? Me sinto melhor agora que somos três.
Gata:
Quatro!
Cachorro:
Que? Quem está aí?
Gata:
Sou eu, estou aqui na árvore, miau, eu sou uma gatinha.
Cachorro:
Au au
Gata:
ui ai
Jumento:
Para, cachorro. 1ª lição do dia, o melhor amigo do bicho é o bicho. E você gata
desce da arvore.
Gata:
Depende do programa.
Galinha:
Nós vamos à cidade, vamos fazer um cocococonjunto você também sabe cantar a sim,
infelizmente...
Todos
(menos a gata): Infelizmente? ? ?
Gata:
Porque fazer um som não foi nada jóia pra mim.
Jumento:
Perdão como disse?
Gata:
Porque cantar um musica me custou muitíssimo, miau.
Todos
(menos gata): Conta.
Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram
O
meu mundo era o apartamento
Detefon, almofada e trato
Todo dia filé-mignon
Ou mesmo um bom filé...de gato
Me diziam, todo momento
Fique em casa, não tome vento
Mas é duro ficar na sua
Quando à luz da lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite vão cantando assim
Detefon, almofada e trato
Todo dia filé-mignon
Ou mesmo um bom filé...de gato
Me diziam, todo momento
Fique em casa, não tome vento
Mas é duro ficar na sua
Quando à luz da lua
Tantos gatos pela rua
Toda a noite vão cantando assim
Nós,
gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás
De
manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria
Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria
Mas agora o meu dia-a-dia
É no meio da gataria
Pela rua virando lata
Eu sou mais eu, mais gata
Numa louca serenata
Que de noite sai cantando assim
Nós,
gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás.
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio
Felino, não reconhecerás.
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