sábado, 16 de março de 2013

Personalidade - Carlos Vereza - Por vezes samurai, por vezes gueixa


‘A reencarnação é um fato’, diz Vereza
Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O GloboRIO - Ali pelo meio da conversa, Carlos Vereza pede licença, vai até o banheiro e volta trazendo duas folhas de papel higiênico e um tubo de creme de barbear. Então abre as folhas do papel sobre a mão esquerda e, com o tubo na outra mão, passa a fazer uma pequena escultura. É um trabalho silencioso. O perfume mentolado toma conta do ambiente e a espuma vai aos poucos ganhando formas. Às vezes ela se assemelha a um corpo humano deitado em um lençol branco; outras vezes se parece com um suspiro daqueles de bolo de aniversário. Vereza explica:
— O ectoplasma é assim, a materialização do espírito. É como uma espuma. A forma é essa. Assisti a isso diversas vezes. Quem vê algo assim não pode fazer de conta que não viu. É exatamente como esse creme de fazer barba — diz, enquanto estampa um sorriso de triunfo. — Eu sou puta velha, cara, criado no cinema, não ia cair em picaretagem. Não tem truque, não tem mágica ali. É irrefutável. A reencarnação é um fato.
Vereza está sentado na sala de seu apartamento, em um prédio de frente para o mar da Barra da Tijuca. O lugar — no 13º andar do edifício — está cercado de referências que explicam, em parte, as crenças do ator. Na porta de entrada há um filtro de sonhos e uma máscara teatral em forma de lua e estrela. Há imagens de São Jorge, Jesus Cristo, Oxalá, Gandhi, Virgem Maria, Iemanjá e Buda. Mais que tudo, a casa guarda retratos de médiuns e entidades que demonstram sua fé na vida após a morte. O ator — homem de 74 anos, vivaz, inteligente e bem-humorado — é, de muitas formas, a representação fiel de sua fé: quando muitos o julgam morto e enterrado, Vereza teima em ressurgir, vivíssimo, para tocar sua vida adiante.
Confronto, sedução e dor
No dia 5 de abril, como sinal dessa vitalidade, estreia “O teste”, no Teatro Ariano Suassuna, na Barra. Ele escreveu, dirige e atua. É sua volta ao palco depois de um hiato de 21 anos. O texto ajuda a entender como ele vê o tempo: um homem fracassado, operador de câmera em um estúdio de quinta categoria, é surpreendido pelo aparecimento de uma jovem aspirante a um papel num filme idiota. Ela tem beleza, juventude e um talento desconcertante. Entre os dois se cria um jogo de confronto, sedução e dor. Ressurreição, em última instância. Caroline Figueiredo — mais conhecida como a Domingas de “Malhação” — é a garota do teste:
— Quase tão importante quanto encenar o texto está sendo o processo em si. Saio dos ensaios com pelo menos dois filmes e um texto novo para ler. Meu dever de casa — explica a atriz, 23 anos, que conheceu Vereza em uma das sessões de estudos do espiritismo oferecidas pelo ator em seu apartamento. — É uma chance única. O Vereza carrega muita coisa com ele.
As coisas que traz com ele estão impregnadas no seu corpo. O ator nasceu em Madureira e começou a fazer teatro na década de 1960, pelas mãos de Oduvaldo Viana Filho. Foi Vianinha também que o levou para o velho Partido Comunista Brasileiro. No meio da década de 1970, Vereza era um alvo fácil para a ditadura. Frequentava reuniões do partido, trabalhava para o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, se metia em passeata, usava cabelo grande e, na TV, vivia personagens com um pé na marginalidade — Miro, de “Selva de pedra”, novela de Janete Clair que estreou em 1972, foi o maior deles. Sem contar as drogas:
— Naquela época, ou você entrava para a luta armada ou fugia do país. Eu não queria nenhuma das duas coisas. As drogas foram minha saída.
Por conta de tudo isso, passou duas temporadas preso. Outras duas vezes foi simplesmente sequestrado.
— Tive sorte, estava fazendo “Cavalo de aço” (na mesma TV Globo em que permanece com contrato assinado), não poderia desaparecer de repente. O Tarcísio Meira foi de quartel em quartel atrás de mim até eu aparecer.
Não foi o único desaparecimento. Em 1990, um acidente provocado por excesso de pólvora em uma cena da série “Delegacia de mulheres” provocou ruptura do tímpano e deu início a anos de sofrimento e sumiço. O caso está narrado em “Efeito especial”, livro de fragmentos de memórias do ator. Vereza conta que era como se sua cabeça fosse subitamente tomada por um enxame de abelhas. Além da dor física, a lesão no ouvido o deixava desequilibrado — em muitos sentidos. Um acidente de carro — em que derrubou um poste sobre o teto do veículo e causou danos à sua coluna — piorou as coisas. Vereza estava sem trabalho, sem saúde, sem dinheiro e sem ânimo para viver.
— Pensei em suicídio, claro que pensei — explica o ator, que tem três filhos e conta ter sido salvo por uma cirurgia espiritual feita no Lar de Frei Luiz — Eu ia de clínica em clínica e ninguém resolvia nada. Numa, chegaram a dizer “Aí, ó, se deu bem. Vai ficar no quarto em que ficou o Raul Seixas”, como se fosse um upgrade para a minha doença. E tome injeção. Eu me sentia como se estivesse rodando em cima de um LP. Dava para imaginar por que o Raul gostava daquele lugar. Raul Seixas é do cacete.
Discos voadores na Pedra da Gávea
Talvez para reafirmar convicções religiosas, Vereza, ao falar de amigos mortos, conjuga o verbo no presente. Raul é do cacete. Carlos Imperial é um injustiçado. Nelson Cavaquinho é um gênio. Walter Avancini é um revolucionário. Graciliano Ramos (que não era exatamente um amigo) é o maior. Graciliano — que dizia que escrever é cortar palavras — é uma espécie de exemplo para o estilo minimalista que Vereza usa em cena. Em “Memórias do cárcere” (1984), o ator — que pela primeira e única vez se submetera a um teste de elenco — viveu o escritor alagoano.
— Com dois minutos eu já bati o martelo. Ele não interpretava o Graciliano, ele era o Graciliano — lembra o diretor Nelson Pereira dos Santos. — Parte da trama se passava em 1935 e um dia ele disse que não dava para fazer uma cena com uma cueca estilo sunga, mesmo por baixo do terno. A produção teve que se virar atrás de uma samba-canção. Vereza sempre sabe o que quer.
Recuperado da depressão, o ator — que não foi ateu nem em época de partidão — quis se voltar mais para o espírito. Protagonizou “Bezerra de Menezes” (2008), filme que somou mais de um milhão de espectadores. Depois fez “Um homem qualquer” (2012). Na TV, esteve em “Escrito nas estrelas”, de 2010, e “Amor eterno amor”, de 2012, novelas que também tratavam de vida além da morte. Fora isso, afirma que teve uma experiência com extraterrestres, gravada da varanda de casa e disponível no YouTube. “É um privilégio que os senhores estão nos concedendo”, diz, lá pelo meio da fita, dirigindo-se a possíveis discos voadores que sobrevoavam a Pedra da Gávea. “O teste” é sua volta ao teatro com os pés no chão.
— Teatro não é padaria, cara, é arte. Mas eu não hierarquizo nada — diz o autor, que ganhou um Molière por sua primeira peça “Nó cego”, de 1977. — Já fiz muita coisa boa na TV e muita porcaria no teatro. Também já quis dar muita porrada em diretor, mas muitos quis beijar. É a vida. Posso ser tanto um samurai quanto uma gueixa.

Jornal O Globo

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