Cerimônias católicas e cultos evangélicos nas
instalações da Alerj causam polêmica
Natanael Damasceno
natand@oglobo.com.br
Uma reunião movimentou o auditório Senador Nelson Carneiro, no sexto andar do prédio anexo da Assembleia Legislativa do Rio, ontem à tarde. Com cerca de um terço do espaço ocupado, o lugar foi palco de discussões sobre temas díspares, como o significado da Páscoa e o papel da mulher na sociedade. Os assuntos, precedidos da exibição de um filme sobre a celebração cristã, chamaram a atenção das 36 pessoas que participaram do evento com fervor. O grupo, no entanto, formado por funcionários do Parlamento, assessores de deputados e visitantes, não estava numa audiência pública. Tampouco estava de uma das reuniões das comissões da Casa. Todos participavam de um culto evangélico conduzido pela ex-deputada Edna Rodrigues e pelo pastor Joel Vilon da Costa. Prática antiga, os eventos religiosos no espaço legislativo têm incomodado parlamentares, que ressaltam a laicidade da instituição. E, seja nos bastidores da Casa ou nas ruas, alimentam uma polêmica: se o Legislativo é laico, esse tipo de manifestação é constitucional?
Procurador regional da República e professor de direito constitucional da Uerj, Daniel Sarmento afirma que essa prática, também adotada por um grupo católico ligado à deputada Miriam Rios (PDT), vai contra o que determina a Carta Magna:
— Uma coisa é você fazer um culto num local público, como um parque. Outra coisa é você fazer isso num local como o Parlamento, onde o espaço deveria ser usado para discussões de interesse público.
Atualmente organizados sob a responsabilidade da deputada Graça Pereira (PSD), os cultos evangélicos acontecem todas as quartas-feiras há pelo menos nove anos. Edna Rodrigues, pastora da Igreja Universal, que conduziu o encontro de ontem à tarde, conta que eles começaram a acontecer devido ao interesse de um grupo de parlamentares na oitava legislatura da Casa (entre 2003 e 2006).
— Fizemos um requerimento ao então presidente da Casa, Jorge Picciani, e não houve qualquer manifestação contrária — afirma.
Edna, que perdeu o mandato em 2006, explicou ainda que hoje cada reunião é patrocinada por um deputado da extensa bancada evangélica da Casa — segundo a Alerj, pelos menos dez dos 70 deputados estaduais professam a religião — e organizada pelo pastor Vilon da Costa, assessor parlamentar de Graça Pereira.
— Cada reunião tem um responsável, que nem sempre vem aqui. Alguns nem são evangélicos — explica a pastora Edna Rodrigues.
Ela, Vilon da Costa e Graça Pereira rebatem as acusações de que atrapalham a atividade parlamentar. Dizem que ocupam o espaço na hora do almoço e que não usam dinheiro da Assembleia para realizar os encontros. No entanto, os parlamentares contrários à prática afirmam que já tiveram dificuldade para agendar discussões de interesse público devido à extensa agenda dos eventos religiosos. De acordo com a mesa diretora, pelo menos dez encontros aconteceram no local nos últimos dois meses.
E, na semana que vem, haverá mais três: o culto dos evangélicos na quarta-feira, o encontro católico na quinta-feira e uma missa na terça-feira à tarde.
— Só comecei a organizar os encontros católicos depois que meus eleitores vieram a mim com o pedido. E não fiz isso sem consultar a mesa diretora e a Arquidiocese. A missa de terça-feira, por exemplo, deve ser celebrada pelo próprio Dom Orani (arcebispo do Rio) — argumenta Miriam Rios. — E nos últimos dois anos, apenas duas vezes cancelamos um encontro porque alguém precisou do espaço. A prioridade são os eventos da Casa.
Graça Pereira também se defende:
— As pessoas trabalham aqui e a gente percebe que, quando estão ansiosas, buscam conselhos. Por isso, sentimos a necessidade do espaço, semelhante ao que existe em instituições como a Polícia Militar e o Tribunal de Justiça.
O procurador Daniel Sarmento, porém, lembra que a Casa representa um dos poderes do Estado. Presidente da Alerj, o deputado Paulo Melo disse, por meio de sua assessoria, que o auditório não é um espaço da Casa usado só para eventos religiosos e que eles acontecem apenas quando não atrapalham a agenda política. •
‘É inadequado, inconstitucional’
Corpo a corpo
Daniel Sarmento
Procurador regional da República e professor de direito constitucional, ele diz que o Brasil não incorporou o princípio do Estado laico
• O senhor acha que os cultos e missas no Parlamento são adequados ao espaço?
Essa é uma prática totalmente inadequada. É inconstitucional. Você não pode utilizar as instalações do Poder Legislativo para fazer um culto religioso. A Constituição fala do princípio do Estado laico, mas o Estado brasileiro não conseguiu incorporar esse princípio ao seu dia a dia.
• Na sua avaliação, essa é uma exclusividade do Parlamento fluminense?
Isso não acontece apenas no Rio. Outro dia, fui participar de uma audiência pública em Brasília, sobre o direito ao aborto, e tivemos todos que ficar esperando o fim de um culto evangélico que acontecia no local.
• Por que isso acontece?
Embora o princípio da laicidade exista desde o nascimento da República, ele nunca foi levado a sério. Então, não é uma novidade. Você pode observar isso ao constatar que há um crucifixo na sala do Supremo Tribunal Federal, onde se discutem questões como o direito ao aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, assuntos aos quais a Igreja sempre foi abertamente contrária.
• Mas e a liberdade de expressão?
Isso não é cerceamento ao direito de expressão. O cidadão tem todo o direito de professar sua religião. Mas uma coisa é ele fazer isso na sua igreja. Outra é usar o espaço do Poder Legislativo para isso. (Natanael Damasceno)
‘A Casa não deixa de ser laica’
Corpo a corpo
Joel Vilon da Costa
Pastor da Igreja Presbiteriana, o assessor da deputada Graça Pereira coordena hoje o agendamento dos cultos evangélicos na Alerj
• O que o senhor tem a dizer aos críticos dos encontros religiosos na Assembleia?
Essa é uma casa aberta ao povo. Os eventos não são fechados aos evangélicos. Já recebemos convidados de outras religiões, como o deputado Marcio Pacheco, que não só patrocinou um encontro como participou do culto. Nunca impedimos que um padre participasse das nossas reuniões, nem nunca reclamamos das manifestações ligadas às outras religiões.
• Mas o Legislativo não deveria ser uma instituição laica?
A Casa não deixa de ser laica por causa dos nossos encontros. Uma coisa é a atividade parlamentar. Outra é a utilização do espaço para dar aquilo de que o povo precisa. Não utilizamos recursos públicos. E, institucio-nalmente, não existe uma comissão de parlamentares evangélicos ou religiosos para tratar dos cultos. Nós organizamos, fazemos de forma voluntária, fora do horário do trabalho. Por isso, não acho que os encontros afetem a laicidade da Casa.
• Quem frequenta os cultos evangélicos? Os deputados responsáveis acompanham os cultos?
Nem sempre os parlamentarem acompanham as reuniões. E não são apenas os funcionários da Alerj que aparecem. Os cultos são conhecidos e atraem muitos visitantes de empresas próximas e de instituições como o Tribunal de Justiça, que mantém iniciativas semelhantes. (N.D.)
Natanael Damasceno
natand@oglobo.com.br
Uma reunião movimentou o auditório Senador Nelson Carneiro, no sexto andar do prédio anexo da Assembleia Legislativa do Rio, ontem à tarde. Com cerca de um terço do espaço ocupado, o lugar foi palco de discussões sobre temas díspares, como o significado da Páscoa e o papel da mulher na sociedade. Os assuntos, precedidos da exibição de um filme sobre a celebração cristã, chamaram a atenção das 36 pessoas que participaram do evento com fervor. O grupo, no entanto, formado por funcionários do Parlamento, assessores de deputados e visitantes, não estava numa audiência pública. Tampouco estava de uma das reuniões das comissões da Casa. Todos participavam de um culto evangélico conduzido pela ex-deputada Edna Rodrigues e pelo pastor Joel Vilon da Costa. Prática antiga, os eventos religiosos no espaço legislativo têm incomodado parlamentares, que ressaltam a laicidade da instituição. E, seja nos bastidores da Casa ou nas ruas, alimentam uma polêmica: se o Legislativo é laico, esse tipo de manifestação é constitucional?
Procurador regional da República e professor de direito constitucional da Uerj, Daniel Sarmento afirma que essa prática, também adotada por um grupo católico ligado à deputada Miriam Rios (PDT), vai contra o que determina a Carta Magna:
— Uma coisa é você fazer um culto num local público, como um parque. Outra coisa é você fazer isso num local como o Parlamento, onde o espaço deveria ser usado para discussões de interesse público.
Atualmente organizados sob a responsabilidade da deputada Graça Pereira (PSD), os cultos evangélicos acontecem todas as quartas-feiras há pelo menos nove anos. Edna Rodrigues, pastora da Igreja Universal, que conduziu o encontro de ontem à tarde, conta que eles começaram a acontecer devido ao interesse de um grupo de parlamentares na oitava legislatura da Casa (entre 2003 e 2006).
— Fizemos um requerimento ao então presidente da Casa, Jorge Picciani, e não houve qualquer manifestação contrária — afirma.
Edna, que perdeu o mandato em 2006, explicou ainda que hoje cada reunião é patrocinada por um deputado da extensa bancada evangélica da Casa — segundo a Alerj, pelos menos dez dos 70 deputados estaduais professam a religião — e organizada pelo pastor Vilon da Costa, assessor parlamentar de Graça Pereira.
— Cada reunião tem um responsável, que nem sempre vem aqui. Alguns nem são evangélicos — explica a pastora Edna Rodrigues.
Ela, Vilon da Costa e Graça Pereira rebatem as acusações de que atrapalham a atividade parlamentar. Dizem que ocupam o espaço na hora do almoço e que não usam dinheiro da Assembleia para realizar os encontros. No entanto, os parlamentares contrários à prática afirmam que já tiveram dificuldade para agendar discussões de interesse público devido à extensa agenda dos eventos religiosos. De acordo com a mesa diretora, pelo menos dez encontros aconteceram no local nos últimos dois meses.
E, na semana que vem, haverá mais três: o culto dos evangélicos na quarta-feira, o encontro católico na quinta-feira e uma missa na terça-feira à tarde.
— Só comecei a organizar os encontros católicos depois que meus eleitores vieram a mim com o pedido. E não fiz isso sem consultar a mesa diretora e a Arquidiocese. A missa de terça-feira, por exemplo, deve ser celebrada pelo próprio Dom Orani (arcebispo do Rio) — argumenta Miriam Rios. — E nos últimos dois anos, apenas duas vezes cancelamos um encontro porque alguém precisou do espaço. A prioridade são os eventos da Casa.
Graça Pereira também se defende:
— As pessoas trabalham aqui e a gente percebe que, quando estão ansiosas, buscam conselhos. Por isso, sentimos a necessidade do espaço, semelhante ao que existe em instituições como a Polícia Militar e o Tribunal de Justiça.
O procurador Daniel Sarmento, porém, lembra que a Casa representa um dos poderes do Estado. Presidente da Alerj, o deputado Paulo Melo disse, por meio de sua assessoria, que o auditório não é um espaço da Casa usado só para eventos religiosos e que eles acontecem apenas quando não atrapalham a agenda política. •
‘É inadequado, inconstitucional’
Corpo a corpo
Daniel Sarmento
Procurador regional da República e professor de direito constitucional, ele diz que o Brasil não incorporou o princípio do Estado laico
• O senhor acha que os cultos e missas no Parlamento são adequados ao espaço?
Essa é uma prática totalmente inadequada. É inconstitucional. Você não pode utilizar as instalações do Poder Legislativo para fazer um culto religioso. A Constituição fala do princípio do Estado laico, mas o Estado brasileiro não conseguiu incorporar esse princípio ao seu dia a dia.
• Na sua avaliação, essa é uma exclusividade do Parlamento fluminense?
Isso não acontece apenas no Rio. Outro dia, fui participar de uma audiência pública em Brasília, sobre o direito ao aborto, e tivemos todos que ficar esperando o fim de um culto evangélico que acontecia no local.
• Por que isso acontece?
Embora o princípio da laicidade exista desde o nascimento da República, ele nunca foi levado a sério. Então, não é uma novidade. Você pode observar isso ao constatar que há um crucifixo na sala do Supremo Tribunal Federal, onde se discutem questões como o direito ao aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, assuntos aos quais a Igreja sempre foi abertamente contrária.
• Mas e a liberdade de expressão?
Isso não é cerceamento ao direito de expressão. O cidadão tem todo o direito de professar sua religião. Mas uma coisa é ele fazer isso na sua igreja. Outra é usar o espaço do Poder Legislativo para isso. (Natanael Damasceno)
‘A Casa não deixa de ser laica’
Corpo a corpo
Joel Vilon da Costa
Pastor da Igreja Presbiteriana, o assessor da deputada Graça Pereira coordena hoje o agendamento dos cultos evangélicos na Alerj
• O que o senhor tem a dizer aos críticos dos encontros religiosos na Assembleia?
Essa é uma casa aberta ao povo. Os eventos não são fechados aos evangélicos. Já recebemos convidados de outras religiões, como o deputado Marcio Pacheco, que não só patrocinou um encontro como participou do culto. Nunca impedimos que um padre participasse das nossas reuniões, nem nunca reclamamos das manifestações ligadas às outras religiões.
• Mas o Legislativo não deveria ser uma instituição laica?
A Casa não deixa de ser laica por causa dos nossos encontros. Uma coisa é a atividade parlamentar. Outra é a utilização do espaço para dar aquilo de que o povo precisa. Não utilizamos recursos públicos. E, institucio-nalmente, não existe uma comissão de parlamentares evangélicos ou religiosos para tratar dos cultos. Nós organizamos, fazemos de forma voluntária, fora do horário do trabalho. Por isso, não acho que os encontros afetem a laicidade da Casa.
• Quem frequenta os cultos evangélicos? Os deputados responsáveis acompanham os cultos?
Nem sempre os parlamentarem acompanham as reuniões. E não são apenas os funcionários da Alerj que aparecem. Os cultos são conhecidos e atraem muitos visitantes de empresas próximas e de instituições como o Tribunal de Justiça, que mantém iniciativas semelhantes. (N.D.)
O Globo
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