Crônica do Dia - Visíveis para si mesmo - Martha Medeiros
ZERO HORA - 24/03
Ficar
sozinho não é estar abandonado, ao contrário: é encontro dos mais sagrados
Se você fosse um super-herói, qual o poder que gostaria de ter? Pergunta
clássica, resposta clássica: 99% das pessoas gostariam de ficar invisíveis. É o
desejo também do senhor Y, o enigmático personagem de O Homem Visível, de Chuck
Klosterman, livro que mistura ficção científica, bizarrice e suspense numa trama
que, ainda que inverossímil, prende o leitor e faz refletir.
Y trabalhou
num projeto ultrassecreto do governo americano e acabou desenvolvendo uma
tecnologia de camuflagem ele criou uma espécie de segunda pele que o torna
invisível. Com que propósito? Entrar na casa de pessoas que morem sozinhas e,
sem ser percebido, vê-las em sua rotina comum. O obcecado Y acredita que uma
pessoa é 100% autêntica apenas quando ninguém a está observando.
Ah,
super Y. Além de invisível, você lê pensamentos? Acredito no mesmo que você.
Sozinha não finjo, não disfarço, não retruco, não provoco, não julgo, não
condeno, não sumo, não volto. Sozinha não há céu que me rejeite – assim encerra
um poema que escrevi certa vez sobre o benefício da solidão.
Não que
sejamos todos uns falsos ao sair pela porta de casa, mas é indiscutível que,
assim que entra um vizinho no elevador, você automaticamente aciona um
dispositivo que produz um sorriso e um comentário sobre o clima, quando na
verdade está morta de sono e preferiria continuar calada. Uma atuação inofensiva
e gentil, mas, ainda assim, uma atuação. É preciso contracenar.
No
entanto, em suas visitas secretas a homens e mulheres que se acreditavam em
total privacidade dentro de seus apartamentos, Y repara que elas não se sentem
tão relaxadas como deveriam. Ele se dá conta de que as pessoas não consideram o
tempo que passam sozinhas como parte de suas vidas. Diz o personagem: “Sempre me
senti mais vivo quando estava sozinho, porque esses eram os únicos momentos que
não sentia medo de ter minhas ações examinadas e interpretadas. O que acabei
descobrindo é que as pessoas precisam que suas ações sejam examinadas e
interpretadas, para acreditar que o que fazem tem importância”.
É
preocupante. Hoje, as pessoas só confirmam sua existência quando estão em
público. No entanto, creio que é justamente quando estamos misturados aos demais
que nos tornamos invisíveis.
Acabamos infiltrados na manada e
compartilhamos opiniões originadas do senso comum, tudo pela ansiedade de fazer
parte de alguma coisa. Já ao nos concedermos momentos de isolamento, entramos em
real conexão com nossos desejos, processamos as experiências vividas e
esculpimos silenciosamente o homem e a mulher que estamos nos tornando. Ficar
sozinho não é estar abandonado, ao contrário: é encontro dos mais sagrados.
Invisível para os outros, extremamente visível para si mesmo.
É
divertido ser invisível e todos nós temos esse poder, basta estar numa festa
para 800 convidados, por exemplo. A visibilidade é que é rara: olhar
profundamente para dentro e enxergar o que ninguém mais consegue ver.
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