sábado, 30 de março de 2013

Você já sabe disso ? - O Mulato






O romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, foi publicado em 1881 e causou escândalo na sociedade maranhense, não só pela crua linguagem naturalista, mas sobretudo pelo assunto de que tratava: o preconceito racial. A obra teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte e tomado como marco do Naturalismo no Brasil.

Na época, a obra foi muito mal recebida pela sociedade maranhense e Aluísio Azevedo, que já não era visto com bons olhos, tornou-se o "Satanás da cidade". Para se ter uma idéia da indignação causada pela obra, pode-se citar o fato de o redator do jornal A civilização ter aconselhado Aluísio a "pegar na enxada, em vez de ficar escrevendo". O clima na cidade ficou tão ruim para o autor que ele decidiu retornar ao Rio de Janeiro.

Alguns elementos naturalistas quer estão presentes nesta obra são: a crítica social, através da sátira impiedosa dos tipos de São Luis: o comerciante rico e grosseiro, a velha beata e raivosa, o padre relaxado e assassino, e uma série de personagens que resvalam sempre para o imoral e para o grotesco; o anti-clericalismo projetado na figura do padre e depois cônego Diogo, devasso, hipócrita e assassino; a oposição ao preconceito racial que é o fulcro de toda a trama; o aspecto sexual referido expressamente em relação à natureza carnal da paixão de Ana Rosa pelo mulato Raimundo; o triunfo do mal, pois no desfecho, os crimes ficam impunes e os criminosos gratificados: a heroína acaba se casando com o assassino de Raimundo (grande amor de sua vida), e o padre Diogo, responsável por dois crimes, é promovido a cônego.

Observa-se no texto abaixo a caracterização dos costumes da província, dos mexericos e do preconceito, manifesto na maledicência de que participam D. Bibina, Lindoca, D. Maria do Carmo e Amância Souselas:
- Ele não é feio... a senhora não acha, D. Bibina?... segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo.
- Quem? O primo d’Ana Rosa?
- Primo? Eu creio que ele não é primo, dona!
- É! sustentou Bibina, quase com arrelie. É primo sim, por parte de pai!...
Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Souselas:
- Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!...
E batia no seu peito sem seios. - Muita vez a vi no relho. Iche!
- Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outro, fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo!


Há também muitos resíduos românticos, pois foi escrito em plena efervescência da Campanha Abolicionista e o autor não manteve uma posição neutra, imparcial. Ao contrário, ele toma o partido do mulato, idealizando exageradamente Raimundo, que mais parece o herói dos romances (ingênuo, bondoso, ama platonicamente Ana Rosa e ignora a sua condição de homem de cor).

O autor descreve o ambiente da cidade de São São Luiz com muita nitidez. Observe:

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam, os vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; os folhas das árvores nem se mexiam; os carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios, e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçados, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontra vã viva alma no rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.

É nessa atmosfera abafada, tanto do ponto de vista climático quanto do convívio social, que são apresentadas as personagens. Até os cães se envolvem no ambiente de letargia preguiçosa: Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. O mal cheiro domina o ambiente: Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. A grosseria do ambiente envolve as ações das personagens: O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço (...) as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.

Observa-se que, se os cães "tinham uivos que pareciam gemidos humanos", as peixeiras, animalizadas, têm "tetas opulentas". Homens e animais se misturam, portanto, no universo bestializado e asfixiante de São Luís do Maranhão.

É nesse ambiente que chega a São Luís o jovem advogado Raimundo, sobrinho há muito afastado de Manuel Pescada. Raimundo corresponde perfeitamente ao protótipo do herói romântico, pelo qual Ana Rosa tanto esperava. Sua descrição em tudo contrasta com a de Luís Dias. Ambos são, no entanto, personagens planas, superficiais, e servem apenas para que o autor prove sua tese anti-racista.

Sobre o personagem Raimundo

Raimundo saíra criança de São Luís para Lisboa. "Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo, não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se no entanto de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. "Esse jovem rico e virtuoso regressa a São Luís, depois de anos na Europa, formado e com o intuito de desvendar o mistério de seu passado. Antes, passara um ano no Rio de Janeiro e agora volta a São Luís para rever seu tio e protetor distante, Manuel Pescada.

Depois do nascimento de Raimundo, José Pedro casou-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher branca e impiedosa. Enciumada com a atenção especial que José Pedro dedicava ao pequeno Raimundo e à escrava Domingas, Quitéria ordenou que a negra fosse açoitada e que suas partes genitais fossem queimadas.

José Pedro, indignado com tamanha crueldade, leva o filho para a casa do irmão em São Luís. Voltando à fazenda, flagra a mulher e o então jovem e sedutor Padre Diogo em pleno adultério. Enfurecido, José Pedro mata Quitéria e forma um pacto de cumplicidade com o Padre Diogo: esconderão a culpa um do outro. Desgraçado e doente, José Pedro refugia-se na casa do irmão. Ao se restabelecer, resolve voltar à fazenda, mas, no meio do caminho, é assassinado por ordem do Padre Diogo, que já começara a insinuar-se também na casa de Manuel Pescada.
Raimundo é bem recebido pela família do tio, com exceção da sogra de Manuel, a racista radical Dona Maria Bárbara. Estranha alguns olhares enviesados da população, mas imagina-os fruto do estranhamento causado por um forasteiro.

O sedutor advogado, como não poderia deixar de ser, logo cai nas graças de sua prima Ana Rosa que, arrebatada, declara-lhe seu amor. Raimundo corresponde à paixão da prima, mas os jovens encontram fortes obstáculos. Principalmente a oposição de Manuel Pescada, que queria a filha casada com Luís Dias, da avó Maria Bárbara, racista intransigente e do Cônego Diogo, velho amigo da casa e adversário não declarado e ardiloso de Raimundo.

Acontece que, ao contrário dos amantes, seus três grandes opositores conheciam as raízes negras de Raimundo. Aos poucos o leitor vai tomando conhecimento das origens do herói, que, no entanto, permanece ignorando tudo.

Obcecado por desvendar suas origens, Raimundo insiste em visitar a fazenda onde nascera. Após diversos adiamentos, seu tio finalmente o leva até a Fazenda São Brás. No caminho, o mulato começa a obter as primeiras informações sobre o passado trágico de seus pais. Ao pedir ao tio a mão de Ana Rosa em casamento, vê-se recusado. Perplexo, Raimundo acaba descobrindo que a recusa se deve a suas origens negras. Na fazenda, Raimundo é abordado, à noite, por uma velha negra de aspecto fantasmagórico, que o quer abraçar. Assustado, por pouco não mata a estranha aparição. No caminho de volta a São Luís, descobre que se tratava de sua mãe, Domingas.

Ao retornar à capital do Maranhão, Raimundo resolve voltar para o Rio de Janeiro. Não suporta mais viver com o tio e muda-se de sua casa, enquanto prepara-se para viajar. Pouco antes do embarque, manda uma carta a Ana Rosa confessando seu amor. O amor pela prima o impede de partir. Os amantes se encontram e Ana Rosa acaba engravidando. Contra tudo e contra todos, armam um plano de fuga. No entanto, o Cônego Diogo usa das confissões de Ana Rosa e da colaboração subserviente do caixeiro Dias, que intercepta as cartas do casal, para, ardilosamente, impedir a concretização da fuga. No momento em que planejavam partir, os amantes são surpreendidos. O Cônego Diogo orquestra o escândalo e finge-se de protetor do casal. Raimundo volta para casa atordoado e, ao abrir a porta de casa, é atingido nas costas por um tiro disparado por Luís Dias, com uma pistola que lhe emprestara o Cônego Diogo.

Ana Rosa, desolada, aborta o filho de Raimundo. "A nova firma comercial, Silva e Dias, nasceu entretanto, no meio da mais completa prosperidade."

Desfecho irônico

Seis anos depois da morte de Ramundo, no Clube Familiar, vemos Ana Rosa e seu marido Dias saindo de uma recepção oficial:
 
 
"O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a carne esperta.
Ia toda se saracoteando muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa a dormir.
- Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas.
O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca.
- Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!..."
A ironia final, bem a gosto naturalista, coloca por terra toda a idealização romântica de Ana Rosa e Raimundo. Morto o primo, a prima acaba por se casar com seu assassino, e parece levar, ao lado do marido que tão ferozmente rejeitara anteriormente, uma feliz e próspera vida burguesa. O mal triunfa, associado à igreja corrupta e ao comércio burguês.

Personagens principais

Raimundo - filho do irmão de Manuel Pescada, José Pedro da Silva, com sua escrava negra Domingas. A idealização própria dos romancistas românticos, a superioridade absoluta: moral, intelectual e mesmo física, observa-se na descrição deste personagem:
"Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina, - dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode, estatura alta e elegante, pescoço largo, nariz direitoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuís, pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido,- as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito, vestia-se com seriedade e bom gosto; amava os artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política."


Ana Rosa - prima e noiva de Raimundo, filha de Manuel Pescada que não consentia no casamento da filha com seu sobrinho, por ser ele filho da escrava Domingas. Leitora ávida de romances, como a Emma Bovary, de Flaubert, ou a Luísa do Primo Basílio, de Eça de Queirós. Seu pai, Manuel Pescada, quer fazê-la casar-se com seu colaborador, o caixeiro Luís Dias.

Cônego Dias - assassino do pai de Raimundo.

Luís Dias - empregado de Manuel Pescada, que por instigação do cônego acabou por assassinar Raimundo. (...) era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa - havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo - enriquecer. Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas.

Manuel Pescada - um português de uns cinqüenta anos, forte, vermelho e trabalhador. Diziam-no afilado para o comércio e amigo do Brasil. Gostava da sua leitura nas horas de descanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabeça vários trechos do Camões e não lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com fanatismo o Marquês de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete Português, a qual lhe aproveitava menos a ele do que à filha, que era perdida pelo romance
 
 

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