Nos últimos dias, tenho vivido uma experiência diferente. Ao acordar, antes até de sair da cama, digo pra mim mesmo: “Sou feliz!”. Totalmente influenciado pela pesquisa que O GLOBO vem publicando que associa morar no Rio à felicidade, encho o peito e repito: “Sou carioca! Sou feliz!”
Minha determinação não dura muito tempo. Ao sair de casa, o porteiro me entrega a correspondência. Como acontece uma vez por mês, recebo mais uma carta de um cartão de crédito que já tenho. Ele me oferece as vantagens de me tornar associado. Como não preciso de dois cartões de crédito da mesma bandeira, rasgo a correspondência e procuro uma lixeira para livrar-me dela. Perto da minha casa existem três. E todos os dias me pergunto como, às 8 da manhã, já estão
todas abarrotadas de lixo. Nelas não cabe nem minha carta rasgada. Pior: na calçada, no espaço em torno das lixeiras, o carioca joga fora caixas de papelão, sacos de plásticos, garrafas vazias... O Rio é sujo. Dá pra ser feliz em meio à sujeira?
Procuro não pensar nisso, pego um táxi e... fico preso dez minutos num engarrafamento dentro do Túnel Velho. Alguém pode me dizer que, no Rio, até engarrafamentos são felizes. Imagine estar engarrafado na Lagoa. Não dá para reclamar da paisagem em volta. Não tenho muito tempo para raciocinar sobre isso. Após me livrar do engarrafamento no túnel, fico engarrafado em frente ao Cemitério São João Batista e, admirando jazigos perpétuos, tenho vontade de perguntar ao motorista do carro ao lado: “Tá rindo de quê?”
Desisto da felicidade inerente a minha condição de morador do Rio e procuro alguém que seja pessimista como eu. Dizem que no Morro da Mangueira mora um carioca infeliz. Desempregado, descrente da UPP e arrasado porque, após a última chuva, as águas invadiram seu barraco e levaram toda a cozinha, ele contraria as pesquisas. Um vizinho, felicíssimo, lembra ao morador desiludido que no Rio tem carnaval. Foi o bastante para nosso infeliz personagem cair no choro, lembrando-se que a Mangueira ficou em oitavo lugar no último desfile de escolas de samba.
Não sei quando começou essa moda de associar felicidade a regiões geográficas. Talvez seja uma invenção do rei do Butão que, nos anos 70 do século passado, criou o índice de Felicidade Interna Bruta para compensar o péssimo PIB de seu país. No Butão, o budismo leva à felicidade. O Brasil também anda com o PIB lá embaixo. Só nos resta a felicidade.
Felicidade, hoje, é lazer barato, oportunidade de emprego, paisagem bonita. Sou do tempo em que felicidade era algo mais abstrato. Lembro-me de uma telenovela, das primeiras a serem produzidas pela televisão brasileira lá pela década de 60, que chamava-se “Em busca da felicidade”. Na trama, Carlos Zara mantinha duas esposas, Lolita Rodrigues e Odete Lara. Uma não sabia da existência da outra. Ele era feliz com as duas. Na mesma década, um filme francês escandalizou o país. Chamava-se “Le bonheur” e, além de nos ensinar que, em francês, felicidade é um substantivo masculino, contava a história de um homem feliz no casamento, que arranjava uma amante, com quem também era feliz. No Brasil, ganhou o título de “As duas faces da felicidade” e uma frase publicitária que mexeu com a cabeça dos espectadores: “Pode um homem amar duas mulheres ao mesmo tempo?”
Na novela, quando uma esposa descobre que existe a outra, a felicidade de Carlos Zara vai pro brejo. No filme, o triângulo amoroso é desfeito pelo suicídio de um dos vértices. Resumindo: nos anos 60, felicidade era ser bígamo. Resumindo de novo: a felicidade dura pouco.
A poesia já nos ensinou isso há muito tempo. Vinícius de Moraes disse que “a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor”. E concluiu: “Tristeza não tem fim, felicidade, sim.”
A minha felicidade, aquela felicidade estimulada por ser carioca, dura pouquíssimo. Dura o tempo de ler o jornal. Esta semana mesmo, enquanto saboreava a pesquisa do GLOBO, ao mesmo, ficava perplexo com a tragédia do incêndio do Leblon. Trancado por uma porta blindada com quatro fechaduras (ué, o carioca não vive uma maior sensação de segurança?), um casal encontra a morte jogando-se do quarto andar para fugir do fogo. O incêndio se apaga sozinho, após
consumir todo o apartamento. Os bombeiros chegaram meia hora depois, não tinham escada Magirus, não havia água no hidrante da rua. É esse o Rio feliz?
A pesquisa diz que a felicidade do carioca está também associada ao otimismo. Temos lixo, engarrafamentos, enchentes, incêndios, mas tudo vai melhorar porque estamos nos preparando para os grandes eventos. Em outras palavras: se a gente já é feliz agora, imagina na Copa!
Minha determinação não dura muito tempo. Ao sair de casa, o porteiro me entrega a correspondência. Como acontece uma vez por mês, recebo mais uma carta de um cartão de crédito que já tenho. Ele me oferece as vantagens de me tornar associado. Como não preciso de dois cartões de crédito da mesma bandeira, rasgo a correspondência e procuro uma lixeira para livrar-me dela. Perto da minha casa existem três. E todos os dias me pergunto como, às 8 da manhã, já estão
todas abarrotadas de lixo. Nelas não cabe nem minha carta rasgada. Pior: na calçada, no espaço em torno das lixeiras, o carioca joga fora caixas de papelão, sacos de plásticos, garrafas vazias... O Rio é sujo. Dá pra ser feliz em meio à sujeira?
Procuro não pensar nisso, pego um táxi e... fico preso dez minutos num engarrafamento dentro do Túnel Velho. Alguém pode me dizer que, no Rio, até engarrafamentos são felizes. Imagine estar engarrafado na Lagoa. Não dá para reclamar da paisagem em volta. Não tenho muito tempo para raciocinar sobre isso. Após me livrar do engarrafamento no túnel, fico engarrafado em frente ao Cemitério São João Batista e, admirando jazigos perpétuos, tenho vontade de perguntar ao motorista do carro ao lado: “Tá rindo de quê?”
Desisto da felicidade inerente a minha condição de morador do Rio e procuro alguém que seja pessimista como eu. Dizem que no Morro da Mangueira mora um carioca infeliz. Desempregado, descrente da UPP e arrasado porque, após a última chuva, as águas invadiram seu barraco e levaram toda a cozinha, ele contraria as pesquisas. Um vizinho, felicíssimo, lembra ao morador desiludido que no Rio tem carnaval. Foi o bastante para nosso infeliz personagem cair no choro, lembrando-se que a Mangueira ficou em oitavo lugar no último desfile de escolas de samba.
Não sei quando começou essa moda de associar felicidade a regiões geográficas. Talvez seja uma invenção do rei do Butão que, nos anos 70 do século passado, criou o índice de Felicidade Interna Bruta para compensar o péssimo PIB de seu país. No Butão, o budismo leva à felicidade. O Brasil também anda com o PIB lá embaixo. Só nos resta a felicidade.
Felicidade, hoje, é lazer barato, oportunidade de emprego, paisagem bonita. Sou do tempo em que felicidade era algo mais abstrato. Lembro-me de uma telenovela, das primeiras a serem produzidas pela televisão brasileira lá pela década de 60, que chamava-se “Em busca da felicidade”. Na trama, Carlos Zara mantinha duas esposas, Lolita Rodrigues e Odete Lara. Uma não sabia da existência da outra. Ele era feliz com as duas. Na mesma década, um filme francês escandalizou o país. Chamava-se “Le bonheur” e, além de nos ensinar que, em francês, felicidade é um substantivo masculino, contava a história de um homem feliz no casamento, que arranjava uma amante, com quem também era feliz. No Brasil, ganhou o título de “As duas faces da felicidade” e uma frase publicitária que mexeu com a cabeça dos espectadores: “Pode um homem amar duas mulheres ao mesmo tempo?”
Na novela, quando uma esposa descobre que existe a outra, a felicidade de Carlos Zara vai pro brejo. No filme, o triângulo amoroso é desfeito pelo suicídio de um dos vértices. Resumindo: nos anos 60, felicidade era ser bígamo. Resumindo de novo: a felicidade dura pouco.
A poesia já nos ensinou isso há muito tempo. Vinícius de Moraes disse que “a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor”. E concluiu: “Tristeza não tem fim, felicidade, sim.”
A minha felicidade, aquela felicidade estimulada por ser carioca, dura pouquíssimo. Dura o tempo de ler o jornal. Esta semana mesmo, enquanto saboreava a pesquisa do GLOBO, ao mesmo, ficava perplexo com a tragédia do incêndio do Leblon. Trancado por uma porta blindada com quatro fechaduras (ué, o carioca não vive uma maior sensação de segurança?), um casal encontra a morte jogando-se do quarto andar para fugir do fogo. O incêndio se apaga sozinho, após
consumir todo o apartamento. Os bombeiros chegaram meia hora depois, não tinham escada Magirus, não havia água no hidrante da rua. É esse o Rio feliz?
A pesquisa diz que a felicidade do carioca está também associada ao otimismo. Temos lixo, engarrafamentos, enchentes, incêndios, mas tudo vai melhorar porque estamos nos preparando para os grandes eventos. Em outras palavras: se a gente já é feliz agora, imagina na Copa!
Artur Xexéo - O Globo
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