Às vésperas das Olimpíadas de Londres, que começam em julho, e em meio aos andaimes para a Copa da Fifa e os Jogos Olímpicos no Brasil, o fascínio por disputas esportivas consagra a intuição generalizada: a cada evento, o esporte se revela mais orgânico à sociedade atual. Tanto que, no Brasil, ampliou o alcance, e por vezes o caráter, da linguagem cotidiana.
A riqueza expressiva é tal no esporte que facilita até o entendimento de recursos do idioma. As associações com o esporte garantem expressões figuradas fora do horizonte das competições medalháveis, mas de conceitos opacos e nomenclatura inclemente com o leigo.
É grande a quantidade, por exemplo, de metáforas esportivas - a ideia de transferir um termo do esporte para campo de significação que não é o seu. Elas, que não criam palavras novas, mas mudam significados, estão até na Bíblia: São Paulo compara os esforços requeridos pela vida cristã aos de atletas e corredores que desejam vitórias (I Cor. 9: 24 e ss.). No século 19, ante o preconceito de igrejas contra o esporte ("culto ao corpo", etc.), o "aval" do apóstolo era usado por cristãos esportistas que invocavam a Epístola aos Coríntios (daí o nome do time inglês Corinthian, que inspirou o Corinthians).
No abastecimento de expressões figuradas, há contribuições olímpicas de boxe ("jogar a toalha"); basquete ("assistência") e vôlei ("levantar a bola para outro cortar"). Para não falar no legado de esportes não olímpicos: o "grid de largada" e a "pole position" do automobilismo (usados, digamos, em "corridas" eleitorais), o "páreo" do turfe; o "pôr em xeque" do xadrez e a "ginga" da capoeira (que, apesar da riqueza do léxico, é esotérica para transcender o círculo de iniciados).
Mesmo categorias de popularidade emergente, como lutas de vale-tudo, começam a inspirar expressões figuradas, encaradas como peça promocional. O narrador Rhoodes Lima, por exemplo, criou nas exibições do UFC 140 pelo canal Combate um bordão que é pura hipálage (abuso na combinação entre termos): "Calce suas luvas e vista seu protetor bucal". Agora que a Globo parece adotar essa modalidade de luta como franquia, foi a vez do locutor Galvão Bueno improvisar uma hipérbole (exagero da ideia para melhor enfatizá-la) candidata a bordão: "Gladiadores do 3º milênio, disparou, ao narrar um corpo a corpo entre Júnior Cigano e Cain Velásquez no ano passado.
Em março, muitos discursos ligados ao esporte fincaram bandeira na linguagem figurada. É o que se viu na elegância discursiva de Tostão reunida em A Perfeição Não Existe - Paixão do Futebol por um Craque da Crônica (Três estrelas, 288 páginas, R$ 37), com textos de Folha de S.Paulo, de 2000 a 2011. Na obra, ele flerta com figuras de pensamento e sintaxe de difícil manuseio, como a ironia: "Vamos correr atrás do prejuízo. Se o time está perdendo, tem de correr atrás do lucro."
A crônica esportiva é celeiro de tropos. João Saldanha cunhou eufemismos (trocar expressão por uma menos agressiva), como o nonsense "macaquinho namorado de girafa" (jogador que vai e volta estabanadamente). Já Nelson Rodrigues era um poço de expressões; algumas hipálages (sandálias da humildade); outras antonomásias (trocar nome por expressão: "pátria em chuteiras"). Boa parte de sua expressividade, no entanto, era hiperbólica, como "saúde de vaca premiada" e "nasceu 40 séculos antes do paraíso".
Confronto
Criador da catacrese (abuso na troca de palavra por outra) "peixe" (amigo, colega), o deputado federal Romário (PSB-RJ) usou uma hipérbole em março para referir-se ao preparo físico de um ex-colega dos campos: "Juninho com 80 anos parece ter 18". O ex-jogador é crítico de cartolas, em particular a gestão de Ricardo Teixeira na presidência da CBF. Mês passado, ao renunciar (sob denúncias de corrupção), Teixeira retomou o apreço por metáforas em sua carta de despedida:
- Presidir paixões não é uma tarefa fácil em nosso país.
Ele já se declarara adepto da figura de palavra em 2007, durante o Pan-Americano no Brasil.
- Não vou deixar que me encurralem na linha de escanteio; tenho de me livrar da marcação do adversário antes - declarara.
Ele não se livrou da marcação.
O futebol continua o centro de gravidade brasileiro das figuras de linguagem de origem esportiva, usadas até por quem não liga para jogos de qualquer espécie. No Brasil, não surpreende ouvir dizeres do tipo:
"Nessa altura do campeonato, você acha que vou vestir a camisa da firma? Eu não. O chefe pisou na bola: se tivesse pedido antes para mim ou para o Geraldo, que tem cancha, dava para tirar de letra. Em time que ganha não se mexe! Mas não: deu cartão vermelho ao Geraldo e me botou para escanteio. Agora que embolou o meio de campo, vem pedir para virar o jogo? Eu não. Vou lá só cumprir tabela... Quem não faz, toma! E o Geraldo, agora, tá com a bola toda e a concorrência, com ele, ficou show de bola...".
Futebol arte
Veio da criatividade popular a reconfiguração dos termos do futebol. Os recursos, para isso, vão da prosopopeia (humanização) "animal" à antonomásia "É fogo no boné do guarda", da metáfora "bola pra frente" à apóstrofe (invocação) "Por que parou, parou por quê?". Certos empréstimos especializam sentidos. É assim que, por metonímia (trocar causa pelo efeito), "voluntarioso" virou "aplicado"; por metáfora, "assistência" se tornou (via basquete) a passagem da bola para um colega fazer o gol; e, por eufemismo, "chegar junto", em vez de "aproximar-se", virou "falta violenta".
Objeto de culto, a bola inspira sinônimos figurados: pelota, criança, perseguida, vagabunda, margarida, maricota, nega, caroço, pipoca, redonda, gorduchinha... Mas não falta elasticidade até a termos alheios ao futebol, como "tabu". Do sentido de "interdição" virou "tendência à derrota". Uma rede de influências notável: apropriado da antropologia, foi ressignificado e o novo sentido ganhou as ruas. Linguistas acreditam que, nesses casos, não há liberdade desmedida com as palavras. A noção enfatizada estaria subentendida no termo original.
Plasticidade
Assim, itens como "lençol", "chapéu" e "banho de cuia" batizam o ato de driblar o rival com a bola por cima de sua cabeça. Metáfora visual: a semelhança entre elementos da transferência de sentido é plástica, como em "bicicleta" e "carrinho". Em Portugal, o nosso "lençol" se chama "cabrita". A ênfase não é na trajetória da bola. As imagens do chapéu que nos esconde, do lençol que nos mergulha e do banho que nos afunda são, todas, desenhos de um futebol que o imaginário vê como arte. A cabrita portuguesa enfatiza o movimento isolado da bola - a cabra pula e quica.
O futebol traduziria nosso desprezo pela racionalidade, a preferência pela malícia, a alegria sincera de ver algo feito com manha, levado pela molecagem do drible. Num país de tantas incertezas, de tanto obstáculo a planejamentos duradouros, de amanhãs imprevisíveis, promessas que sabemos de antemão irrealizáveis, o imperativo é fazer pelota com garantias cemporcento.
Apesar da popularidade do futebol, muitas figuras de linguagem procedem de campos esportivos que despertam, hoje, pouco interesse: se, digamos, o vôlei e o basquete atraem mais interessados, não são páreo para o turfe, o bilhar ou o boxe. A razão talvez esteja na particular configuração destes, que produz potencialmente situações figuradas: é sugestiva a configuração plástica de "sinuca de bico", a jogada em que a bola branca toca o bico, o contorninho rente à caçapa, não dando vez ao jogador alcançar outra bola.
Mesmo pessoas que não seguem corridas de cavalos intuem que as emoções do turfe emparelham com as de outras disputas da vida e falam que, digamos, nas eleições há o candidato que corre por fora, o azarão. Se os adversários na dianteira das pesquisas se aliassem, o pleito seria barbada. Mas será páreo duro e só na reta final saberemos quem cruzará o disco de chegada. Com certeza, um candidato de partido grande, porque os outros não pagam placê.
Eleição
Numa eleição como a deste ano, partidos fortes entrarão divididos na disputa, com candidatos evitando ser a bola da vez da fritura, numa sinuca de bico em que só confiarão no próprio taco. Até eles, no entanto, cantam a aposta: a tacada será emprestar apoio, num 2o turno, a quem estiver na boca da caçapa.
Fiquemos de olho, portanto, nos candidatos que preferem o nocaute a jogar a toalha: terão jogo de cintura, ainda mais com tantos pesos pesados no round? Se estiverem nas cordas e, mesmo assim, não acusarem o golpe, será que, nos debates, vão usar a técnica do clinch ou vão aplicar algum golpe baixo?
Enquanto o país se prepara para torcer nas Olimpíadas e acelera as obras de seus próprios eventos internacionais, a imaginação popular está de prontidão para dar vida à figura de linguagem esportiva.
Do grego metaphorá, transferência, mudança; é a transposição do sentido próprio de uma palavra para o figurado. Nessa relação mental, subjetiva, imaginada, os termos - o que substitui e o substituído - mantêm o significado próprio, porque a palavra é usada por semelhança real ou imaginária; em geral, imaginária.
Evanildo Bechara acentua em Moderna Gramática Portuguesa (Lucerna, 2004) não ser verdade que a metáfora é uma comparação abreviada, como dizem alguns autores, mas "a comparação é que é metáfora explicitada".
Ela só ocorre quando o termo substituto tem significado próprio, diferente do do termo substituído. Em "O veludo de sua pele", veludo será sempre veludo e pele será pele. A metáfora é recurso comum na linguagem e essencial na poesia. Exemplo são os versos de Orestes Barbosa, em Chão de Estrelas:
"Mas a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão".
Os políticos gostam de metáforas. O então ministro Delfim Neto deixou lembranças por anunciar em relação à economia: "Precisamos esperar que o bolo cresça para depois dividi-lo".
Levantemos a hipótese absurda de que alguém, insatisfeito com o trabalho dos congressistas ou dos cartolas do futebol, dissesse deles, ou de parte deles, que são víboras, escorpiões e ratazanas. Estaria construindo metáfora, ou melhor, três, por ver semelhança entre eles e víboras, escorpiões e ratos. Haveria exagero, mas o observador teria feito um paralelo, porque ofídios, artrópodes e roedores lutam como podem, em proveito próprio e com todos os seus recursos.
Evanildo Bechara acentua em Moderna Gramática Portuguesa (Lucerna, 2004) não ser verdade que a metáfora é uma comparação abreviada, como dizem alguns autores, mas "a comparação é que é metáfora explicitada".
Ela só ocorre quando o termo substituto tem significado próprio, diferente do do termo substituído. Em "O veludo de sua pele", veludo será sempre veludo e pele será pele. A metáfora é recurso comum na linguagem e essencial na poesia. Exemplo são os versos de Orestes Barbosa, em Chão de Estrelas:
"Mas a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão".
Os políticos gostam de metáforas. O então ministro Delfim Neto deixou lembranças por anunciar em relação à economia: "Precisamos esperar que o bolo cresça para depois dividi-lo".
Levantemos a hipótese absurda de que alguém, insatisfeito com o trabalho dos congressistas ou dos cartolas do futebol, dissesse deles, ou de parte deles, que são víboras, escorpiões e ratazanas. Estaria construindo metáfora, ou melhor, três, por ver semelhança entre eles e víboras, escorpiões e ratos. Haveria exagero, mas o observador teria feito um paralelo, porque ofídios, artrópodes e roedores lutam como podem, em proveito próprio e com todos os seus recursos.
Catacrese | |
Espécie de metáfora, mas já incorporada à língua por falta de um termo próprio. Na verdade, é o uso abusivo de uma palavra ou expressão fora de seu significado. Do grego katákhresis, "mau uso". Daí ser conhecida por "abusão". Embora haja reconhecido abuso em figuras como: pelada (jogo de várzea), peixe (amigo, colega), pernas da mesa, da cama, da cadeira; mão de pilão; embarcar (de barca) num avião; dentes do serrote; nariz do avião; braços da poltrona; cabeça do alfinete - há relação subjetiva, embora remota, que justifica as figuras. (JM) |
Antonomásia | |
É uma variedade da metonímia; a substituição do nome de um ser (próprio) pelo de uma qualidade dele. Do grego antonomasía, pelo latim antonomasìa; em retórica, o nome que nada tinha que ver, morficamente, com o nome a que se juntava ou substituía. Os brasileiros da Europa (jogadores), a seleção canarinho (do Brasil), o templo do futebol (Maracanã); Redentor (Cristo); a Águia de Haia (Rui Barbosa); o Bruxo do Cosme Velho (Machado de Assis); um champanhe (vinho de Champagne). Os cognomes podem ser classificados entre as antonomásias: Pelé (Edson Arantes do Nascimento); Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa). A antonomásia também nomeia a substituição contrária, isto é, o uso do nome próprio como comum por suas características marcantes: ele é um calígula (mau e devasso); um judas (traidor); um cristo (sofredor). (JM) |
Metonímia | ||
Do grego metonumía, pelo latim metonymìa, é a substituição de um nome por outro com que se relaciona de alguma forma. Ela ocorre de muitos modos; em geral, no uso da parte pelo todo (sinédoque), do efeito pela causa, do autor pela obra, do continente pelo conteúdo, etc., como se relaciona a seguir. (JM) |
Eufemismo | |
Do grego euphemismós, pelo inglês euphemism e francês euphémisme. Suavização de uma realidade desagradável ou grosseira: faleceu, entrou em óbito ou partiu desta para a melhor (morreu); aquele político desviou recursos públicos (afanou); ganhou a grana praticando tráfico de influência (afanando). (JM) |
Perífrase | |
Uso de mais palavras para exprimir o que poderia ser dito com menos. Do grego períphrasis, circunlóquio, perífrase, pelo latim periphràsis.Na perífrase lexical ou circunlóquio, substitui-se uma palavra por duas ou mais. Usa-se esse recurso por motivos em geral estilísticos: terra de Graciliano Ramos (Alagoas); rei dos animais (leão), o galinho de Quintino (Zico). Na perífrase morfológica, substitui-se a flexão gramatical da palavra por uma locução em que outra palavra expressa a função gramatical: íamos voltar (voltaríamos). (JM) |
Hipérbole | |
Do grego hyperbolé, pelo latim hipérbole, excesso. Palavra ou frase de sentido exagerado para tornar a ideia mais expressiva."Estraçalhar" (ser superior ao time adversário)."Meio da rua" (corredor do campo)"Gladiadores do 3º milênio""Derramei lágrimas de sangue." "Morreu de medo na partida com o Barça." (JM) |
Apóstrofe | |
Do grego apóstrophe, pelo latim tardio apostrophe, ação de desviar, despertar; fuga; distração; refúgio, asilo; apóstrofe, do v. apostrépho 'voltar, fazer voltar; chamar. (Houaiss). É a invocação ou interpelação que se faz a algo ou alguém, por expressão ou termo desligado da frase. O alvo da apóstrofe, que o autor imagina diante de si, pode ser real ou fictício:"Por que parou? Parou por quê?""Veja você, caro leitor, a paciência que devo ter." "Deus! ó Deus! Onde estás que não respondes?" (Castro Alves) |
Ironia | |
Exprime literalmente o contrário do que se pensa ou do que se quer dizer. Em geral, depende do contexto. Quando sutil demais, pode não ser entendida:"Bela a manobra que você fez com o carro contra o poste." "Que maravilha, você conseguiu estragar meu texto!". (JM) |
Hipálage | |
É a figura que realça um determinante, ligando-o a um termo que não é o seu correspondente lógico: "Linha burra"."Passe rasgado". (JM) |
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