segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Te Contei, não? - Como salvar um idioma



 
Pode um idioma considerado extinto e pouco documentado ser novamente parte ativa do patrimônio linguístico? Essa é a aposta de grupos indígenas e pesquisadores engajados na retomada das identidades ameríndias e no combate ao silenciamento das línguas nativas do Brasil.

A questão tem recebido apoio internacional, como mostra a recente inclusão do ritual yaokwa do povo enaewene nawe (MT) na Lista de Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente, da Unesco. O Brasil já tem candidaturas engatilhadas para a relação, como o projeto Documentação da Língua Poruborá, iniciativa do Museu Emílio Goeldi, do Pará.

Os poruborá, de Rondônia, são um dos casos mais recentes de reavivamento étnico e linguístico. Foram considerados extintos na década de 1940 quando a população foi dizimada por doenças advindas do contato. Mas em 1989 membros da etnia foram reconhecidos por pesquisadores e, então, outros indígenas dispersos foram se reunindo para reivindicar as terras onde viviam. Hoje há cerca de 300 poruborá, dos quais só quatro idosos conhecem palavras e expressões na língua, única dentro do tronco tupi.

A melhor maneira de saber como ocorre uma revitalização linguística é examinando um marco na luta indígena: a recuperação da língua pataxó. Eni Orlandi, da Universidade Estadual de Campinas, esteve na equipe que coletou e analisou evidências linguísticas que ajudaram a reconstituir a variante do pataxó falada mais ao norte da região de Porto Seguro (BA), a hãhãhãe.

- Os pataxós viveram perseguições e movimentos de dispersão. A partir dos anos 80, entretanto, conseguiram criar um espaço em que reivindicaram seu direito ao território tradicional que haviam perdido. Outras perdas acompanharam essa. Entre os bens perdidos, estava a língua. A posse da língua significa para eles o seu desejo de ser índio, em um momento de ameaça de extermínio - diz a pesquisadora.

Guardiã
A língua pataxó se mostrava ativa até o começo do século 20, quando começaram as pressões para que o grupo mantivesse contato mais regular com a sociedade. Devido à resistência, os pataxós ("índios do descobrimento do Brasil") começaram a ser alvos de massacres e deslocamentos forçados, como a grande expulsão ocorrida no governo de Getúlio Vargas para a criação do Parque Nacional do Monte Pascoal.

Ante a condição crítica, os pesquisadores contavam com meras listas de palavras coletadas no Brasil colônia e depois por missionários e indigenistas. Como tornar um conjunto minguado de itens lexicais em língua viva, pronta para ser falada?

"A pesquisa foi feita em condições difíceis: uma só informante, Baheta, muito idosa, sem interlocutores reais (só os da memória, imaginados), e experimentando dificuldades de lembrar; em condições de guerra à sua cultura; uma parte da identidade estigmatizada, já votada ao esquecimento", diz Orlandi no livro Terra à Vista, sobre o confronto discursivo nativos-colonizador, atualizado nas políticas do Estado.

SobrevivênciaGraças às reminiscências de Baheta, foram coletados dados suficientes para comparar as listas de palavras que já se possuía e estabelecer paralelos com línguas próximas, como o maxacali. Projetos de revitalização linguística usam muito o recurso de recuperar formas da língua por comparação com idiomas ainda falados, com os quais a língua extinta tem vínculo genético. Com a ajuda da linguística histórica, os pesquisadores estabelecem possíveis detalhes gramaticais, bem como mudanças no repertório de sons. Os ensinamentos linguísticos da anciã pataxó foram reunidos na cartilha Lições de Baheta, base para o atual ensino bilíngue nas aldeias do grupo.

Muitos grupos indígenas, principalmente do Nordeste, não falam mais a língua originária, só o português. Para muitos, trata-se de prova de que tais populações estariam descaracterizadas, sem o direito de se autoafirmar como indígenas. A recuperação de um idioma assume, com isso, um caráter político, portanto. Mas tal pensamento reflete o desconhecimento em relação ao processo de silenciamento das línguas nativas ocorrido na história brasileira.

Até o século 18, o português não era sequer língua corrente nos territórios do país. Tanto no eixo costeiro como no que vai da foz do Amazonas ao interior da floresta, as principais línguas faladas se baseavam nos idiomas tupis dos autóctones, a partir da codificação feita pelos jesuítas. Com o governo do Marquês de Pombal, segunda metade do século 18, as duas línguas francas tupis (a língua geral na costa e o nheengatu na Amazônia) foram proscritas na colônia.

Medidas similares foram adotadas em cada local para coibir os idiomas considerados selvagens e entrave ao processo civilizatório das províncias. Assim, a maioria dos povos indígenas abandonou o próprio idioma por causa de perseguições e sobrevivência. Só em tempos recentes encontraram espaço e apoio para reivindicar direitos tão elementares como falar o próprio idioma.

As pressões, no entanto, continuam. Por conta disso, muitos pesquisadores como Eni Orlandi defendem os projetos de recuperação linguística, mas não que o uso do idioma seja o critério para que os povos indígenas tenham acesso a direitos como o território tradicional, em virtude de tal quadro histórico.

Não são apenas projetos acadêmicos que visam preservar o patrimônio linguístico. Grupos indígenas têm estratégias de manutenção da língua.

Pressão
Os xavantes focam a salvaguarda do idioma no processo de aquisição.

- Para preservar a língua, os xavantes decidiram que as mulheres não devem frequentar a escola e ter contato estreito com os brancos. Isso porque toda criança aprende a língua xavante com elas. Assim, no momento da aquisição, as crianças são expostas à forma da língua com menos interferência do contato. É decisão política do grupo. A variante do xavante falada pelas mulheres permanece usada pelos garotos até os 5 anos. Só depois, quando vão para a casa dos meninos, é que se ensina a eles a língua que os homens adultos falam - diz Wellington Quintino, da Universidade Estadual de Mato Grosso.

Estratégia quase intuitiva foi tomada pelos krenak, que vivem em Minas Gerais. Por muito tempo se acreditou que a língua krenak, também pertencente ao tronco macro-jê, estava morta. Ocorre que os velhos, principalmente mulheres, tinham medo de usar o krenak em público, por causa do preconceito linguístico. Atualmente, o grande esforço do grupo é de que os membros mais jovens, falantes monolíngues do português, voltem a falar o idioma.

As iniciativas de revitalização, sob a forma de projetos acadêmicos ou de estratégias das próprias etnias, dão a dimensão da complexidade da diversidade linguística no Brasil.


Evandro Bonfim é jornalista e doutor em antropologia social no Museu Nacional da UFRJ.


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