sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Resenhando - Testemunho de ironia e desencanto




Nos tempos em que a Belle Époque declinava, mal escondendo suas contradições, artificialidade e violência, já se esboçava o triste fim do ensaísta, jornalista e funcionário concursado Lima Barreto (1881-1922), um dos mais importantes e combativos escritores brasileiros. Embora erudito e talentoso, a pecha de boêmio ligado às culturas populares foi um ítem a mais para torná-lo vulnerável a todo tipo de preconceito — étnico, social, cultural; afinal, interrompeu o curso de Engenharia por exclusão racial. Sua obra e personalidade vêm estimulando estudos de qualidade, como a biografia de Francisco Assis Barbosa. Agora, o professor Antonio Arnoni Prado, que já lhe dedicou uma tese e outros estudos, lança “Lima Barreto: uma autobiografia literária” (Editora 34). Usando como ferramentas a familiaridade com o autor, a pesquisa continuada e um refinado processo associativo, Prado seleciona textos de autoria do biografado (livros, crônicas, cartas, diário), e os agrupa por temas, numa espécie de colagem. Em um capítulo à parte, apresenta extratos críticos de Antonio Candido, Cavalcanti Proença, Antonio Houaiss etc.

A forma de organização do livro já indica a proposta de abordagem. Vejamos: além da morte, uma das poucas certezas é que a memória não opera em linha reta. Certos modelos (auto)biográficos tentam mostrar o contrário. São propostas — legítimas — de ordenar os fatos cronologicamente para tornar mais legível a história do biografado e, noutro extremo, obras com segundas intenções, que peneiram acontecimentos para erigir figuras notáveis. Há também as que adotam, como a de Prado, visões não totalizadoras; levam em conta a permeabilidade entre várias instâncias e fases da vida, sedimentando a dimensão humana do biografado, na medida exata para um autor que não separava a vocação literária do papel político e libertário da escrita, tampouco o indivíduo do cidadão e escritor.

Os termos roteiro, cena, projeção e enquadramento usados na apresentação do livro anunciam o contraponto de tempos e vozes. Lima Barreto, desencantado com o sistema capitalista e a República, usa da ironia em passagens corrosivas que atacam a “covardia mental e moral do Brasil” e o abuso econômico (“Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos”). E faz um apelo: “devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós”. Num jogo de espelhos o escritor mulato carioca emerge em múltiplas facetas. É como se o biógrafo pontilhasse, numa folha, contornos de vários corpos superpostos. O leitor os vê refletidos em transparências e sombras, percebe eixos que estruturam a obra e a personalidade de Lima Barreto e, ao mesmo tempo, identifica as veias subterrâneas entrecruzadas do pensamento dele. Menos do que uma imagem fixa, ressalta o turbilhão das forças criativas do autor e as contradições sociais da época.

Lima Barreto nos leva a um Brasil recém-tudo: republicano, ex-escravocrata, brasileiro, francês, português, aristocrático, proletário. Mostra interesse pela vida cultural carioca (ótimas notas sobre repertório e montagens teatrais), transita em diversos meios sem buscar glamour ou exotismo. O subúrbio pulsa em sua alma, pele e memória – é o território de lembranças da escravatura e da matéria humana que construiu o Brasil, sem medalhas ou glórias. Também a leitura de clássicos e contemporâneos lidos “de fora do Panteão” é uma paixão que o acompanha sempre. Nos momentos difíceis, como as internações devido ao alcoolismo e à depressão, há sempre um livro à mão.

De espírito polêmico e também melancólico, não poupa os outros e a si mesmo. Ao se avaliar, oscila entre reconhecer o próprio valor (“Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande” ) e o preço que pagou por isso: “Quase me arrependia de não ter querido ser como os outros”. Há passagens que lembram o “como e porque sou romancista”, numa inflexão sanguínea e engajada, antecipando nos trópicos o Sartre de “O que é literatura”. Um estilo trabalhado por leituras, sofrimento, princípios éticos e ideológicos, senso histórico, atenção para o mundo. Lima não observa de binóculos, nem de camarote. Daí a proposta literária humana, cidadã, afetiva e popular, que o fez precursor na representação sem preconceitos da periferia. Fora do circuito oficial, sem padrinho literário, apaixonado pelo ofício, deixa nas criações, sem pudor, as impressões digitais.

Outro lado da moeda cujo fica claro nesta edição é o desprezo dele por alpinistas sociais e literatos hipócritas. Ataca a hostilidade da crítica oficial que não sai do pedestal. Entorpecida pelas consagrações, não alcança um palmo além do nariz e, ao julgar um estreante, cega pelo sistema literário elitista, agrava os constrangimentos naturalmente impostos a um escritor como ele que era pobre, filho de escravos: “não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada”.

Se, conforme afirma a professora argentina Leonor Arfuch, o pensamento contemporâneo entende a biografia como uma relação complexa entre sujeito, sociedade, linguagem, real, imaginário, Arnoni Prado acertou ao abrir mão de analisar e deixar Lima Barreto se apresentar por si. Lima Barreto, apesar das frustrações e da dominância das ciências biológicas da época, invoca a sensibilidade como elemento que une escritor e homem, e a converte em critério para distinguir autores que se limitam a pensar e burilar o texto, dos que de fato se expõem ao vivido. Neste sentido, fez falta um espaço maior para a vida familiar e para as complicadas relações com as mulheres, embora a ausência não prejudique uma embora não prejudique uma obra tão cuidadosa e criativa.

Autor morreu há 90 anos, longe dos louros acadêmicos

Neste 2012 em que se comemoram os nascimentos de Jorge Amado e Darcy Ribeiro, escritores que também retrataram excluídos sociais e que publicamente se quiseram mestiços, vale lembrar a homenagem a nosso Lima Barreto. Pois a memória não é uma linha reta também em termos de critérios de consagração. Não se deve deixar de fora este que há 90 anos morria sozinho e miserável, longe dos louros acadêmicos, mas tendo em seu séquito gente simples do povo. Um escritor que se antecipou ao modernismo e que nos provoca até hoje, com sua poética e vontade de mudar o perfil dos leitores no país.

*Clarisse Fukelman é Professora do Departamento e  Comunicação Social da PUC-Rio

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