É difícil falar de um autor de telenovelas que conseguiu criar um estilo próprio. O paulistano Silvio de Abreu, de 69 anos, pode orgulhar-se de ter dois. No horário das sete, suas tramas são marcadas pelo humor herdado das chanchadas, uma de suas referências. Nas novelas das oito, sua especialidade é o suspense, gênero que desenvolveu por conta do gosto cinematográfico.
Responsável pela nova versão de Guerra dos Sexos, revisão do sucesso da Globo em 1983 de sua autoria (a estreia é em setembro), Silvio conta que, antes de virar roteirista, estudou cenografia na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP). Foi ator em peças, filmes e novelas, estudou no Actor's Studio, de Nova York, trabalhou em teatro com Antunes Filho e Antônio Abujamra, dirigiu e escreveu roteiros para pornochanchadas na Boca do Lixo.
Considera as experiências em outras áreas da arte dramática fundamentais em sua maneira de escrever e no hábito de acompanhar cada detalhe da produção. Além de desfrutar do sucesso, Silvio se orgulha de estar formando uma nova geração de autores, por ele supervisionada quando escreveram seus primeiros trabalhos solos. A técnica da escrita de novelas e as dificuldades de uma produção que dura oito meses são os temas que Silvio de Abreu apresenta nesta entrevista.
Como é a experiência de produzir um remake?
Nunca havia feito antes. A história e os personagens são os mesmos, muda a forma de contar. Primeiro, porque você encontra pontos em que a trama pode ser melhorada, que não foram revisados em razão do ritmo de produção. Faço a sinopse e preparo 30 capítulos antes de a telenovela ir ao ar. O tempo depois passa a ser curto, pois preciso entregar um capítulo por dia.
Que outras mudanças são necessárias?
Temos de incorporar as mudanças de época. Há 30 anos, não havia computador nem celular. Hoje soa ridículo se coloco uma carta escondida em uma novela que se passa no presente. Afinal, ninguém escreve cartas atualmente. No caso de Guerra dos Sexos, o assunto é a disputa entre homens e mulheres por espaço na sociedade. De 1983 para cá, houve uma mudança significativa no espaço ocupado pelas mulheres na vida pública. Isso muda a psicologia do homem, que antes monopolizava os postos de comando.
Os diálogos precisam ser reescritos?
Sem dúvida. Além das mudanças sociais e tecnológicas, há alterações no jeito das pessoas falarem. Algumas gírias ficaram superadas, outras surgiram. Gosto de escrever do jeito que as pessoas falam nas ruas. Evito, no entanto, alguns erros, a menos que cometê-los seja um aspecto importante da maneira de falar da personagem. As gags das duas versões são as mesmas.
Mudou a forma de fazer novelas?
Há muita ignorância na crítica de que as novelas não evoluíram desde Beto Rockfeller [de Bráulio Pedroso, TV Tupi, 1968-69]. Além das inovações de produção, há mudanças significativas na intriga, no formato da narrativa e comportamento dos personagens. Talvez não tenha sido algo planejado, mas fomos acompanhando instintivamente mudanças que aconteciam na sociedade.
Por exemplo?
O público busca personagens com os quais se identifica. É preciso que as pessoas os vejam e pensem "parece minha mãe", "é igualzinha àquela tia" ou "no lugar dele, faria o mesmo". Não dá mais para imaginar a mocinha que se sujeita ao bandido enquanto aguarda passivamente pela chegada do herói. O telespectador passa a rejeitar esses personagens. Sofri isso em Belíssima [Globo, 2005-6]. O Cemil (personagem de Leopoldo Pacheco) era essencialmente bom, buscava sempre o caminho correto para fazer as coisas. Disputava a Mônica (Camila Pitanga) com um vilão, o Alberto (Alexandre Borges). Chegou uma hora em que as pessoas não queriam ver a Mônica com o Cemil porque achavam que ele era um bobo.
A teledramaturgia muda comportamentos sociais?
A telenovela não tem poder para mexer com a maneira de pensar das pessoas. A realidade tem mais poder para isso. Vivíamos a época do mensalão e a mensagem que as autoridades passavam é que era normal, pois todos os partidos faziam caixa 2 nas campanhas eleitorais. E a mensagem que ficou foi a de que os fins justificam os meios. Foi um exemplo mais forte do que um programa de TV. O nosso trabalho é capaz de mexer com hábitos de consumo, ditar moda, mas não altera o comportamento.
A telenovela é o produto mais influente da TV, não?
É importante entender que a telenovela não atinge apenas uma classe social, ou de um nível intelectual uniforme. Homens e mulheres assistem. É algo que é discutido em escritórios, almoços e serve de assunto entre a patroa e a empregada. O poder das Organizações Globo está nas telenovelas. Por isso os concorrentes também querem fazer teledramaturgia. TV é hábito. O problema é ter continuidade, fazer com que uma boa telenovela suceda outra.
Escrever uma novela exige que tipo de cuidado?
Ninguém assiste a uma novela da mesma forma que vê um filme ou lê um livro. O telespectador está ao mesmo tempo comentando com quem está ao seu lado sobre as roupas dos personagens, jantando com a família, discutindo outros assuntos ou falando ao telefone. Por isso, precisamos repetir várias vezes as mesmas ideias para fixar o que queremos passar na cabeça de quem está acompanhando a trama. Claro que não falamos sempre do mesmo jeito, para não ser enfadonho a quem já prestou atenção naquele ponto essencial da trama, mas explicamos várias vezes para que o público mais disperso também entenda o que está se passando.
O texto pesa no sucesso de uma novela?
O que atrai o telespectador é uma obra que consiga se comunicar bem com ele. Não falo de qualidade. Não gosto de relacionar qualidade com sucesso de público. O Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, executivo da Globo por mais de 30 anos] teve o mérito de criar um padrão de fazer TV que respeita as características de cada autor. O telespectador sabe que o meu trabalho é diferente do que faz o Benedito Ruy Barbosa, o Manoel Carlos ou o Gilberto Braga, mas acompanha o que todos nós fazemos na sequência. É algo diferente do que existe no México, por exemplo, onde todos os autores se encaixam em uma maneira única de fazer teledramaturgia.
Como é a inserção desse produto no exterior?
O que vem sendo feito no Brasil tem servido de referência para que outros países modernizem suas teledramaturgias. A Globo participa de produções em outros países, até no México, que é o principal concorrente do Brasil no mercado internacional. O Clone foi coproduzida com o canal hispânico Telemundo, da Flórida, e a Globo e a portuguesa SIC produziram juntas a novela Laços de Sangue, que não foi exibida aqui, mas ganhou o Emmy em novembro de 2011. A mexicana TV Azteca agora está fazendo uma nova versão da Rainha da Sucata (1990).
Como funciona um remake internacional?
Estão adaptando algumas coisas para a realidade deles. Não há, por exemplo, uma colônia armênia expressiva no México, por isso a dona Armênia (personagem de Aracy Balabanian) será uma turca lá. Eles receberam as sinopses e os capítulos originais, uma equipe lá reescreve e recebo o material aqui só para supervisionar. As ideias centrais não vão mudar.
De que forma se insere o humor nas telenovelas?
A primeira telenovela que fiz na Globo foi Pecado Rasgado (1978-9). Tive problemas com o diretor e o resultado não foi bom. Depois, fiz Telecurso Segundo Grau, na TV Cultura, colaborei com o Cassiano Gabus Mendes em Plumas e Paetês (1980-81) e voltei para valer como autor principal em Jogo da Vida (1981-82), baseada num argumento da Janete Clair. Era uma trama séria, mas sempre fui um fã das chanchadas e comecei a inserir pitadas de humor. Até então as novelas das sete eram água com açúcar, mais parecidas com aquelas das seis. Em seguida, fiz Guerra dos Sexos (1983), que já tinha o humor característico das minhas obras posteriores.
Depois você se tornou um especialista em suspense, não?
Estava feliz nas produções para as sete horas e havia conquistado um público com meu trabalho. Mas havia pressão da emissora para que passasse a escrever para o horário nobre. A linguagem das oito é diferente, o telespectador exige que sejam abordados temas importantes. Antes de me aventurar no novo horário, escrevi uma minissérie com tema criminal, A Boca do Lixo (1990). Depois da experiência, esperava um tempo para estrear no horário das oito, mas recusaram uma sinopse do Dias Gomes e tive de fazer a Rainha da Sucata.
Como é a rotina da produção de uma novela?
Geralmente trabalho com dois colaboradores, que me ajudam alternadamente no capítulo que preciso entregar a cada dia. Faço a escaleta [programação] de cada episódio. Escrevo as cenas principais e eles me ajudam nas demais. Cada autor tem uma característica. Sou melhor em tramas, como o Gilberto Braga é especialista em diálogos. Não revelo detalhes sobre o que planejo para a trama nem a meus colaboradores, prefiro que produzam acidentalmente pistas falsas. Costumo me reunir com diretores, atores, cenógrafos e a equipe para dizer o que quero. Como vim de outras áreas da dramaturgia, acabo me metendo um pouco em tudo, até nos trajes dos personagens.
Como constrói o texto?
Sou diferente de autores que vieram do rádio, como eram a Janete Clair e o Cassiano Gabus Mendes, que escreviam baseados nos diálogos. Imagino as cenas e vou montando os diálogos de maneira que cheguem aonde quero. Minha cultura é audiovisual. É curioso que não uso cartões com as cenas ou para saber o que tem acontecido com cada personagem. Guardo tudo de memória e depois, quando acabo de escrever, é como se apagasse a história toda. Sou feliz escrevendo novelas. É uma rotina que não me incomoda nem um pouco. É claro que há os momentos difíceis, com problemas na gravação e alterações de última hora. Mas tenho o prazer de criar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário