JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Querido Diário,
Acabou o ano, o tempo passa cada vez mais depressa. Hoje vai aparecer ainda
mais gente, lá no boteco. Já viraram tradição da casa os cumprimentos de fim de
ano, bons desejos, muita paz, muita saúde, essas frescuras automáticas que todo
mundo diz da boca para fora e em que ninguém presta atenção. Eu retribuo tudo o
que me dizem, mas cada dia me exaspera mais a parte do "você está muito bem". Só
quem ouve essa conversa do "você está muito bem" é velho, ninguém diz isto a um
jovem. É um saco, até porque muitos falam estas coisas somente para receber a
retribuição e a gente tem de cumprir o ritual. Ôi, tudo bem, mas, cara, o tempo
não passa para você, você está muito bem, em grande forma! Não, você é que está
ótimo - e fica essa nênia ridícula de lá para cá, um bando de despencados
caquéticos querendo engabelar o calendário, para mim é triste.
E também procuram empregar palavras mágicas, como se alguma palavra
melhorasse a condição do velho ou de alguma maneira a homenageasse. Essas
palavras e expressões são ofensivas, porque dão a entender que a velhice é uma
condição tão vergonhosa que deve esconder-se por trás de eufemismos detestáveis.
Idoso é a mãe, ancião é a mãe, vovozinho é a mãe, melhor idade, terceira idade,
feliz idade, tudo isso é a mãe, não se discute. O certo é "velho", no máximo
"coroa". Os que são contrários ao uso da palavra "velho" alegam que ela soa
preconceituosa ou discriminatória. Mas é claro que soa, velhice é defeito.
Ninguém diz em voz alta que é defeito, mas todo mundo acha que é. É semelhante
ao que ocorre com "pobreza". Pobreza também é defeito. Do contrário não se diria
"pobre, porém honesto". Por que o "porém", por que a adversativa? Se ser pobre
não fosse defeito, dir-se-ia "pobre e honesto". Mas, claro, o que a frase afirma
é que, apesar de pobre, o sujeito é honesto. "Velho" é a mesma coisa, gosta
muito de ser seguido por uma adversativa, como, por exemplo, em "ele é velho,
mas entende tudo o que a gente fala".
Bem, o fato é que hoje deve aparecer no boteco um grande número de velhotes,
de todos os estilos. Tem seu lado bom. Vamos reconhecer que a juventude
impacienta um pouco os mais velhos e, como já se observou, conversar com jovem
cansa muito, porque se tem que falar demais. Vão chegando os velhotes, todos
invariavelmente cumprindo o ritual do "você está bem, você está muito bem". Em
seguida, a troca de novidades. Um tomou um porre de gim em agosto que o deixou
torto até hoje, de maneira que não tem saído. Outro está usando fraldão, mas sai
numa boa. Outros se foram definitivamente, ou estão com a partida mais ou menos
marcada. Dois ficaram viúvos, três viajaram a Buenos Aires e seis deixaram de
beber destilados. No mais, alguns relatórios de praxe, o animado cotejo de
resultados de exames e remédios, papos acalorados sobre colesterol,
triglicerídios, PSA, glicose, antidepressivos, artrite, implantes dentários,
pontes de safena, colonoscopia, esteatose hepática, função cognitiva, câncer de
pele, ultrassonografia abdominal, cataratas, perda óssea, estatinas, próstata e
o renomado exame da dedada. E, finalmente, todos professarão horror à ideia de
ver os fogos do réveillon.
Quando eu era jovem, achava bonito ter nascido num primeiro de janeiro,
começando a vida junto com o ano e fazendo aniversário num dia de festas e
foguetes. Quem me viu, quem me vê, hoje é exatamente o contrário. E quanto mais
velho fico, a sensação piora. Não gosto de confessar isto nem a meu diário, mas
a verdade é que, todo dia 31 de dezembro, quando os fogos começam a estourar, eu
acho que chegou minha hora, dali não passo. Já consultei até dois psiquiatras
por causa dessa maluquice, mas o medo de estuporar no fim do ano não passou, só
que agora eu tomo umas bolas que eles me receitaram e fico calmo. Cheguei a
pensar em me encher dessas bolas e romper o ano dormindo, mas dormir achando que
não vai acordar também não é uma boa, não tem jeito para minha situação.
Quem mais fez aniversário este ano? Às vezes parece que eu sou o único no
boteco que fica mais velho. Bem, as mulheres mentem ou escondem. Nessa questão
de idade, mulher não vale, elas diminuem a idade até para o IBGE. Mas os homens
não ficam muito atrás. O Silveirinha nega a idade sem a menor dúvida, já o
peguei em contradição mais de uma vez, ele não decorou direito o ano em que
nasceu de mentirinha. O Afonso, o Geraldo e, com quase toda a certeza, o Mariano
diminuem a idade. Para não falar no Macedinho, que não revela a idade, mas que
todo mundo sabe que foi proeiro da arca de Noé. Um dia destes eu me aporrinho e
corto uns dois anos também. Tenho mais cabelo que o Afonso, o Geraldo e o
Silveirinha e a menor barriga da mesa.
Se fizer sol, vamos viver um começo de tarde animado, com as mulheres
passando para a praia e a gente apreciando, na medida do possível. De modo
geral, as damas despertam nostalgia e às vezes memórias talvez um tantinho
fantasiosas. E há os rabugentos despeitados, como o Linhares e seu compadre
Arnaldinho, que desdenham a mulher atual e proclamam a superioridade da mulher
do tempo deles. Para eles, as mulheres daquele tempo eram melhores e não se
barateavam, se exibindo e transando a torto e a direito, como as de hoje em dia.
E os homens, claro, também eram melhores, não eram como esses meninões atuais,
que vivem tomando anabolizantes e surfando, deixando o mulherio completamente
desatendido. Eu fico assim olhando para o Linhares e o Arnaldinho falando
besteira e sempre recordo o grande filósofo que disse que o verdadeiro mal da
nova geração é que nós não pertencemos mais a ela. Bom domingo, querido Diário.
Mais um, quantos mais ainda?
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